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O velho desafio das primeiras letras


Foto: Henrique Pita

País renova esforço e intenção de reduzir analfabetismo, que atinge cerca de 20 milhões de brasileiros

OSWALDO RIBAS

O mundo inteiro reconhece e aceita: a educação é o caminho mais eficiente e rápido para alcançar o desenvolvimento. Países asiáticos, como Japão e Coréia, aprenderam essa lição há muito tempo e foram aprovados com distinção. O Brasil, entretanto, continua em recuperação. Entre nós, as tentativas oficiais de eliminar o analfabetismo começaram em 1947, todas com nomes sonoros e pretensões arrojadas. Uma a uma, porém, foram sendo substituídas por outras igualmente ambiciosas e frustradas. O movimento mais recente, lançado em 2003, chama-se Brasil Alfabetizado, e representa um novo esforço de ensinar a ler e escrever um contingente de brasileiros que ultrapassa a população de Portugal.
Nesta reportagem, destacamos os números, os projetos, a opinião dos especialistas sobre essa tentativa, mais uma vez alimentada pela esperança de que o país finalmente se livre do vergonhoso obstáculo do analfabetismo.

É correto classificar uma criança de 5 anos, que ainda não tenha aprendido a ler ou escrever, como analfabeta? O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acha que sim. Em sua mais recente edição sobre o panorama da educação brasileira, a principal instituição estatística nacional colocou no universo dos iletrados desde anciãos, de 80 anos ou mais, que jamais pisaram numa escola, até crianças de 5 anos que, em muitos casos, ainda não tiveram oportunidade de matricular-se numa instituição de ensino.

Ao justificar a polêmica decisão, o IBGE argumenta que, pelos seus métodos de avaliação, crianças a partir de 5 anos deveriam estar freqüentando creches ou cursos da pré-escola e são, portanto, a primeira faixa etária para efeitos estatísticos do analfabetismo no país. Para os críticos, como o ex-ministro da Educação e atual consultor do setor educacional Paulo Renato Souza, a iniciativa do IBGE é política e tem a intenção de manipular dados, aumentando o contingente dos sem-instrução no Brasil. Com isso, segundo Paulo Renato, a instituição estaria colocando ao alcance da opinião pública nacional mais um instrumento de crítica às políticas oficiais educacionais desenvolvidas especialmente durante o governo anterior, do presidente Fernando Henrique Cardoso, destinadas a erradicar o analfabetismo do Brasil.

Se política ou técnica, o certo é que a inclusão de crianças de 5 anos no universo dos analfabetos, num país que ainda apresenta consideráveis taxas de crescimento demográfico como o Brasil, altera dramaticamente os números da educação (ou falta de educação) nacional. Para o IBGE, de acordo com a metodologia aplicada ao Censo 2000, somam 24 milhões os brasileiros sem instrução. Mas, se o segmento de crianças de 5 e 6 anos fosse excluído, esse número seria reduzido em 5,3 milhões. Mais: caso fosse mantida a prática de considerar analfabeta uma criança sem escolarização apenas quando completasse 10 anos, o contingente de brasileiros iletrados cairia para 16,5 milhões. "Uma coisa é ter 16% da população dentro dos padrões de analfabetismo, outra é trabalhar com uma fatia de 12%", admite Paulo Renato, reforçando sua tese de que essa análise tem propósitos ideológicos e não pretende fazer apenas uma radiografia imparcial da educação nacional.

Qualquer que seja a metodologia utilizada, contudo, o universo de analfabetos brasileiros mantém-se gigantesco (é muito mais do que toda a população de Portugal, por exemplo) e tem sido um dos fatores determinantes para o país ocupar posições humilhantes no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), levantado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em que tudo conta, desde ambientes políticos democráticos até o simples acesso a redes de água e esgoto. Não por acaso, em 2003 a ONU lançou o programa A Década da Alfabetização das Nações Unidas, destinado a reduzir o analfabetismo mundial, aqui entendido, estrategicamente, como um grande empecilho para o esforço coletivo internacional em direção à paz e ao intercâmbio no mundo globalizado.

Para tentar equacionar esse crônico problema educacional, o governo do presidente Lula, quase que simultaneamente à iniciativa da ONU, deflagrou uma nova e ampla campanha interna de alfabetização. Trata-se do Brasil Alfabetizado, principal programa da Secretaria Extraordinária Nacional de Erradicação do Analfabetismo (Seea), criada há um ano e vinculada ao Ministério da Educação (MEC). A meta é, até 2007, familiarizar com as letras uma massa de 20 milhões de pessoas com idade acima de 15 anos, sem acesso ao estudo.

A coincidência das prioridades entre a ONU e o governo brasileiro acabou rendendo ao presidente Lula o Prêmio Unesco 2003, exatamente pela relevância do programa Brasil Alfabetizado. Jorge Werthein, representante da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) no país, por ocasião da homenagem a Lula disse que "uma boa idéia, de fácil aplicabilidade, vale mais do que muitas outras sofisticadas que não saem do papel".

Entre os maiores entusiastas do Brasil Alfabetizado, o ex-ministro da Educação Cristovam Buarque garante que o programa é o mais ambicioso da história educacional do país. "Assim como houve no Brasil o movimento abolicionista, para acabar com a escravidão negra, o momento, agora, é de haver o movimento ‘alfabetizacionista brasileiro’, para abolir o analfabetismo." Ao contrário da abolição da escravatura, contudo, o ex-ministro admite que a eliminação do analfabetismo não poderia vir por meio de decreto ou lei, "mas por intermédio de um conjunto de políticas públicas que mobilize toda a sociedade".

Na prática, a Seea anuncia que está procurando incentivar parcerias entre o governo federal, estados e municípios, organizações não-governamentais, organismos internacionais e instituições civis a fim de sistematizar, qualificar e potencializar o esforço nacional de combate ao analfabetismo. "Promovemos uma verdadeira maratona de encontros, consultas, debates e conversações com centenas de entidades educacionais de jovens e adultos, em sindicatos, associações de bairro ou movimentos religiosos e instituições internacionais, para pôr em funcionamento o Brasil Alfabetizado", diz João Luiz Homem de Carvalho, secretário extraordinário de erradicação do analfabetismo.

Atualmente, segundo balanço preliminar da Seea, são mais de 2 mil os convênios firmados com as instituições alfabetizadoras, praticamente um para cada três municípios. Nas salas de aula, em busca do primeiro estágio de alfabetização estão atualmente 3 milhões de brasileiros, e a Seea espera que em 2004, com a ajuda de entidades da sociedade civil, esse número possa ser dobrado.

Para ter acesso aos recursos financeiros disponibilizados pelo MEC, segundo explica Homem de Carvalho, essas instituições conveniadas precisam ter seus projetos de alfabetização aprovados e credenciados no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). "Os termos desse convênio estabelecem o repasse de R$ 80 por alfabetizador capacitado e mais R$ 15 ao mês por aluno, para a remuneração dos alfabetizadores", explica o secretário. Conforme determinação da secretaria, cabe ainda às entidades manter a infra-estrutura necessária, como salas de aula, material didático e pedagógico. "As instituições conveniadas também são responsáveis pela capacitação dos alfabetizadores, promovendo cursos a todos os voluntários identificados com a causa da abolição do analfabetismo, e pela inscrição dos alfabetizandos – que devem ter nome e número de documento devidamente arquivados em computador."

Para ser voluntário do Brasil Alfabetizado, qualquer pessoa ou empresa pode contribuir com trabalho ou recursos. Além da função essencial de alfabetizador, é possível participar de muitas maneiras: pessoas físicas e jurídicas podem estimular um analfabeto a freqüentar os cursos, doar material escolar para as instituições alfabetizadoras ou até prestar serviços, como ajuda no transporte coletivo ou criação de espaços para salas de aula. "O meio mais fácil de canalizar as contribuições é entrar em contato com as secretarias de educação, as instituições alfabetizadoras, ONGs e o próprio MEC. O telefone 0800-616161 e o site www.mec.gov.br/alfabetiza foram disponibilizados para sanar dúvidas e dar esclarecimentos a todos", acrescenta o secretário.

Crítica

Apesar do otimismo oficial, no entanto, o Brasil Alfabetizado, para setores críticos da sociedade, é apenas mais um nome na ampla tradição brasileira de procurar atacar a questão do analfabetismo com mirabolantes megaprojetos de alfabetização em massa. Desde 1947, quando o Brasil saía do longo período da ditadura getulista, até hoje, em que se consolidam as instituições democráticas, esse é o oitavo programa de combate ao analfabetismo conduzido pelo governo federal (ver tabela abaixo). De todos, talvez o de maior notoriedade, até pelo longo período em que vigorou, de 1967 a 1985, foi o Movimento Brasileiro de Alfabetização, o Mobral, que, no auge do regime militar, chegou a alardear a eliminação do analfabetismo no país. Na época, apenas para efeitos estatísticos, era considerado alfabetizado o cidadão que conseguisse escrever o nome de próprio punho.

Mais do mesmo
A seqüência de programas federais para acabar com o analfabetismo no Brasil, de 1947 até hoje

1947-1958

Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos

1958-1960

Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo

1964

Programa Nacional de Alfabetização

1967-1985

Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral)

1985-1990

Fundação Nacional de Educação de Jovens e Adultos

1990-1992

Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania

1997-2002

Alfabetização Solidária

2003

Brasil Alfabetizado

Uma recente pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, chegou à constrangedora conclusão de que cerca de um terço dos analfabetos brasileiros, em algum momento de sua vida, já freqüentou um banco de escola. Ou seja, hoje, ir à escola não garante sequer as informações básicas que permitam a leitura de uma frase ou a realização de simples operações aritméticas, como somar ou subtrair.

O levantamento feito pelos técnicos do Inep mostra que desses 35% de analfabetos que foram à escola, 82% freqüentaram o ensino fundamental e 13% participaram de cursos de alfabetização de adultos. Os restantes 5% dividem-se entre passagem pela pré-escola e por creches. Confrontada com os números, a Seea confirma haver indicadores que apontam a existência, sob muitos aspectos contraditória, de um grupo significativo de analfabetos com experiência escolar. Segundo a secretaria, a maior causa dessa situação é o abandono escolar (devido à necessidade de a criança, adolescente ou adulto buscar colocação no mercado de trabalho para sustento próprio ou da família).

Preocupado, o secretário extraordinário de erradicação do analfabetismo considera que os dados estatísticos de analfabetos com passagem por escolas são engrossados pelo problema dos cursos de alfabetização malfeitos e pela falha das políticas públicas educativas que não proporcionaram uma continuidade de atividades aos brasileiros que conseguiram aprender a ler e a escrever. "Por falta de uso dos novos conhecimentos, a população alfabetizada mais tarde acabou voltando à condição de iletrada."

Duas iniciativas principais estão sendo introduzidas pelo MEC para garantir que, no caso do Brasil Alfabetizado, os alunos não possam, um dia, também se tornar casos de retrocesso educacional. A primeira, em implantação já para as turmas que concluíram a fase inicial do programa, é a distribuição de livros pelo Projeto Leituração, cuja meta é estimular o hábito de leitura entre os recém-alfabetizados. A segunda, de ordem mais estrutural, é permitir que os alunos que completaram os cursos de alfabetização continuem estudando numa base mais regular. Entre as propostas em avaliação está a de constituir o Fundo do Ensino Básico (Fundeb), que terá por função redistribuir recursos federais por todo o ensino básico, incluindo desde a educação infantil até os cursos destinados a jovens e adultos, de forma a garantir um investimento mínimo, por aluno, em cada estado da federação.

"É claro que seis meses de alfabetização – o período médio dos cursos do Brasil Alfabetizado – não são suficientes para resolver definitivamente o problema, e precisamos trabalhar para garantir uma continuidade", reitera Homem de Carvalho. Ele estima que cerca de 60% dos alunos poderão demonstrar interesse em prosseguir os estudos.

Para incentivar o gosto pela leitura, o governo está iniciando a distribuição de uma coleção de clássicos da literatura brasileira. Os primeiros títulos são A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e Garibaldi e Manoela: Uma História de Amor, de Josué Guimarães. Além disso, a Seea chegou à conclusão de que, devido à sua capilaridade, os Correios são a instituição com melhores condições de contribuir para a difusão do hábito da leitura. Com essa finalidade, uma equipe de carteiros está sendo especialmente treinada para servir como agentes incentivadores dessa prática. O governo também planeja criar, até 2006, 100 mil bibliotecas domiciliares, que funcionarão em casas de família de baixa renda, mas que atenderão toda a comunidade na qual estejam inseridas.

No inventário nacional que o Brasil Alfabetizado vem realizando, para saber as reais necessidades educacionais do país, descobriu-se que aproximadamente mil cidades brasileiras não dispõem sequer de uma biblioteca pública. Para começar a lidar com a questão, o governo de Minas Gerais lançou o programa Queroler, com a promessa de que em fevereiro deste ano os primeiros 135 municípios mineiros ganhariam acesso gratuito a livros e computadores.

Maria Augusta Cesarino, superintendente de bibliotecas públicas e coordenadora do Queroler, em Belo Horizonte, acha que até o fim do programa todas as cidades mineiras que não têm uma biblioteca pública contarão, no mínimo, com uma unidade. "O programa piloto mineiro servirá de referência para todo o país", afirma ela. A exemplo do que prega o Brasil Alfabetizado, o Queroler também tem, em suas raízes, uma ampla campanha de cooperação entre entidades públicas e privadas. O governador de Minas Gerais, Aécio Neves, por conta da iniciativa, chegou a declarar que a parceria público-privado, cujo debate ocupa uma das principais agendas desenvolvimentistas do governo federal, "pode ser o melhor caminho para o país resolver problemas estruturais crônicos".

Sistema perverso

Se o analfabetismo pode ser considerado um grave distúrbio do sistema educacional brasileiro, certamente ele não é o único. Na verdade, a imensa massa sem acesso ao ensino no Brasil, na avaliação de especialistas, como atesta a obra de Paulo Freire, é até um reflexo esperado de um sistema bem mais amplo, que, no decorrer da formação cultural nacional, tem realizado, com notável êxito, a tarefa de perpetuar uma espécie de apartheid, em que uma camada social mais abastada tem trânsito facilitado pelas escolas do país, enquanto a outra parte da população vive à margem, excluída. Politicamente, segundo essa corrente de pesquisa educacional, tal divisão tem criado uma interessante estratificação: a elite dirigente, minoritária, saída das universidades públicas, e a massa dirigida, conforme registram as estatísticas oficiais, uma parte da qual passa a vida sem nenhum acesso ao ensino formal.

Pior. Nas últimas décadas, o Brasil vem sendo palco de uma realidade educacional ainda mais perversa, em que a elite dirigente, além de monopolizar os recursos disponíveis do ensino superior, o faz gratuitamente, subvencionada pelos orçamentos federais. Conforme destacam os especialistas, no Brasil, bem como em outras nações do Terceiro Mundo, dá-se o que se convencionou chamar de o "X" da educação. Nele, ocorre o cruzamento injusto em que a camada mais rica da sociedade pode atravessar o ensino fundamental e médio na rede privada, preparando-se melhor para as futuras vagas nas universidades, enquanto a população mais pobre, quando pode, é obrigada a cursá-los numa decadente rede pública de ensino.

No momento dos exames vestibulares, o que normalmente ocorre é o aluno rico, proveniente da rede particular, ingressar nas universidades federais e estaduais, historicamente mais bem aparelhadas, enquanto ao estudante menos abastado, oriundo da escola pública, resta matricular-se em faculdades particulares, reconhecidamente mercantilistas, em que, de forma geral, o principal critério de seleção é a capacidade dos alunos de pagar as altas mensalidades que cobram.

Resultado: o Brasil é hoje um país de poucos diplomas universitários, conseqüentemente com baixo nível de pesquisas e desenvolvimento tecnológico, ferramentas essenciais para competir na economia globalizada. Ainda de acordo com os dados do IBGE, com base no Censo de 2000, só 6,8% da população com mais de 25 anos concluíram o curso superior. Em números absolutos, essa elite nacional atinge 5,8 milhões de pessoas, das quais 5,5 milhões possuem diplomas de graduação e 304 mil têm títulos de mestre ou doutor. Se a fatia das pessoas com nível superior no Brasil for tirada do total da população nacional (170 milhões de pessoas, pelo Censo de 2000), a proporção cai para 3,43%. Mesmo assim, segundo a análise do IBGE, no decorrer de uma década houve uma ligeira melhora no quadro. Em 1991, a parcela era de apenas 2,77%.

O perfil da desigualdade educacional brasileira, no entanto, vai ainda mais longe. A região sudeste, a mais rica do país, concentra 60% dos diplomas universitários, num universo em que seus portadores são na grande maioria brancos. Os negros constituem cerca de 2% do total de pessoas com graduação superior no Brasil, e aqueles com título de doutor chegam quase a ser uma raridade.

Espelho inegável desse atraso pôde ser captado pelo Banco Mundial (Bird) num amplo estudo comparativo entre países sobre o acesso à universidade. Utilizando um indicador chamado taxa bruta de escolarização no ensino superior, que mede o número de matrículas em faculdades em comparação com o contingente de jovens em idade universitária, o Brasil ficou com 15%. Para se ter uma idéia do que esse número representa, nos Estados Unidos essa taxa é de 73%, enquanto na França ela alcança 54%. Para mencionar países menos afluentes e mais próximos, o estudo mostra que o percentual argentino é mais que o dobro do brasileiro, 36%, e chega a 21% no México.

Numa evidente demonstração de que a situação em que se encontra o ensino superior se tornará a nova grande preocupação do governo, o ministro da Educação, Tarso Genro, declarou em sua posse, em janeiro, que a missão principal do MEC passará a ser a reforma da universidade brasileira. Embora admitindo que o fato de o ensino universitário estar a serviço das classes média e alta seja um fenômeno mundial e não apenas brasileiro, Genro já acena com uma política de democratização do acesso aos cursos superiores. "Não há uma solução simples para isso", afirmou ele. "Para resolver o problema, são necessárias macrossoluções que passem por programas de inclusão social e melhor distribuição de renda, até políticas específicas destinadas às classes populares, a fim de qualificá-las para alcançar a universidade." De forma geral, o ministro acena com um compromisso de sua gestão de manter a universidade pública e gratuita, embora, segundo ele, o governo esteja aberto a avaliar sugestões.

Polêmica

Dentro das iniciativas da sociedade civil destinadas a tornar mais democrático o acesso às universidades públicas brasileiras, a deputada Selma Schons, do PT paranaense, apresentou em dezembro de 2003 ao Congresso Nacional, em Brasília, uma proposta que tem despertado uma calorosa discussão em todo o país e, de quebra, servido para recolocar o tema do desvio educacional novamente no centro dos debates. No que muitos consideram um golpe contra a instituição do ensino público e gratuito, a deputada está propondo que todos os brasileiros formados pela rede pública de nível superior, bem colocados profissionalmente, paguem uma taxa extra ao governo. Esse dinheiro seria canalizado para um fundo que teria por função financiar cursos universitários para estudantes pobres, especialmente em carreiras como medicina, por exemplo, que exigem dedicação integral do aluno e, conseqüentemente, impedem-no de trabalhar para o próprio sustento.

A proposta, vista com bons olhos na gestão anterior, de Cristovam Buarque, aparentemente desagrada a Tarso Genro, que já chegou a alertar para sua inconstitucionalidade, bem como para a das cotas para negros nas faculdades, numa indicação de que poderá opor-se a elas.

"Do ponto de vista de justiça social, é inegável que a camada da população que se beneficiou com a educação pública deva contribuir, de alguma forma, para seu financiamento e, nesse sentido, a proposta da deputada Schons é muito oportuna", afirma Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE e atual presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets). "Mas, na minha opinião, de nada adianta dar dinheiro para as universidades públicas se elas não tiverem autonomia para gerir seu patrimônio e assim poder enfrentar com competência os desafios de uma educação de qualidade."

Para Schwartzman, o aumento de matrículas no ensino superior gratuito poderia acabar gerando um grande impacto sobre a qualidade dos cursos universitários, dadas as enormes deficiências do ensino médio e fundamental. Alertando contra os riscos de uma retórica demagógica, ele salienta ainda que uma universidade pública que atenda estudantes mais pobres, com má formação cultural, faz sentido socialmente, mas desde que apoiada em projetos educacionais bem concebidos para esse novo público. No momento, contudo, ele considera mais importante dar mais qualidade ao que já existe, evitando os riscos da massificação do ensino, que pode reduzir a já precária produção nacional de conhecimento técnico e científico.


Espécie em extinção

Embora ainda exista um grande número de iletrados no Brasil, é possível que em duas gerações o analfabetismo, enquanto fenômeno de massa, deixe de existir no país. Para o professor Francisco de Moraes, gerente de Desenvolvimento Educacional do Senac de São Paulo e membro do Conselho Estadual de Educação, o encerramento do programa Alfabetizando Jovens e Adultos, por absoluta falta de demanda, é um indicativo dessa perspectiva. Lançado em 1999, com investimentos de R$ 2 milhões, o programa chegou a contar com uma centena de turmas, espalhadas pelas unidades do Senac e do Sesc na Grande São Paulo e em 33 cidades do interior paulista.

Apesar de simpático ao esforço do governo federal em criar o Brasil Alfabetizado, Moraes acredita que hoje, no país, o analfabetismo esteja mesmo circunscrito a bolsões de miséria e a uma população com mais de 50 anos. Nos estados mais ricos da federação, como São Paulo, o problema praticamente se limita aos migrantes e a uma população com deficiências físicas e/ou cognitivas.

"O fato de a educação fundamental para crianças de 7 a 14 anos ter se tornado obrigatória por lei, sujeitando pais infratores a penalidades legais, contribuiu para alterar o quadro do analfabetismo no Brasil", argumenta Moraes, ele próprio envolvido, em sua trajetória profissional, com alfabetização de crianças e de adultos.

Em sua opinião, a sociedade brasileira, se quiser erradicar definitivamente o problema, terá de fazê-lo não apenas tratando os aspectos socioeconômicos da questão, mas também os psicossociais. Moraes comenta que uma das causas do analfabetismo era a repetência do aluno nas escolas públicas. "Após ficar retida vários anos numa mesma série, a criança com problemas de adaptação passava a ser estigmatizada como incapaz e se tornava potencial futuro adulto analfabeto ou semi-analfabeto", explica. "A mudança de método, que introduziu a promoção automática ou a progressão continuada, ampliou a inclusão social de crianças que, em muitos casos, não conseguiam acompanhar as aulas por uma simples falta de óculos ou aparelho de surdez."

 

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