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Nem tudo está perdido

 


Orlando Maver


Relatório do IBGE alimenta o debate sobre a criminalidade

LOURENÇO DANTAS MOTA

Será que os brasileiros pararam para pensar, como deveriam, nos números sobre a criminalidade constantes da Síntese de Indicadores Sociais de 2003, recentemente divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)? Ou será que a violência se incorporou de tal forma a seu cotidiano que amorteceu sua sensibilidade? Seria bom que prestassem atenção a eles, porque a realidade pode ser ainda pior do que sugerem suas dramáticas experiências pessoais.

Em geral, os números desmentem ou corrigem os exageros retóricos, como a afirmação, muito freqüente, de que o Brasil vive uma guerra civil disfarçada. Nesse caso, entretanto, a retórica está muito próxima da realidade. O emprego do conceito de guerra civil pode ser discutível, mas o nível de violência, o número de "baixas", a insegurança e o medo que tomam conta da população não ficam muito a dever aos dos países às voltas com esse tipo de conflito. Ou com aquele em que está mergulhado o Iraque.

Em 20 anos, de 1980 a 2000, nada menos que 600 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, o que dá uma média de 30 mil por ano. O crescimento da taxa de homicídios nesse período foi de 130%. Para que se tenha uma idéia do que isso significa em termos comparativos, a guerra civil que devastou Angola durante 27 anos deixou um saldo de 350 mil mortos. Outra comparação: em 2000, no Brasil, a taxa de mortes por armas de fogo foi de 71,7 por 100 mil habitantes, 13 vezes superior à dos Estados Unidos no mesmo período, de 5,5 por 100 mil habitantes.

O coordenador no Brasil do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Carlos Lopes, afirma, a partir de dados reunidos por ele, que estão muito próximos dos do IBGE, que 40 mil pessoas foram assassinadas no país em 2002: "Num país que está em paz, é difícil conceber tantas mortes resultantes do uso indevido de armas. Esse número é maior do que o de mortos na Guerra do Iraque, e está aumentando". Com 2,8% da população mundial – acrescenta ele –, respondemos por 11% dos homicídios no mundo.

Todos os outros dados do trabalho do IBGE são igualmente inquietantes, mas dois deles merecem especial atenção. Daquele total de 600 mil assassinatos, mais da metade – 369.101 – ocorreu na década de 1990, o que quer dizer que o problema está se agravando com muita rapidez. E os jovens são os mais atingidos pela violência. Em 2000, por exemplo, 57,1% das mortes por homicídio de homens se concentraram na faixa entre 15 e 24 anos, o que reduz a expectativa de vida dos moradores das grandes cidades, onde são mais elevados os índices de criminalidade. Nessa mesma faixa etária, os acidentes de trânsito respondem por 18,3% das mortes.

A violência atingiu tais níveis, que está anulando importantes progressos obtidos nos últimos anos pelo Brasil, com grande esforço, na área de saúde pública. "Conseguimos diminuir a mortalidade infantil para nossos jovens começarem a morrer de maneira estúpida" – é a melancólica e desanimadora conclusão do sociólogo Celso Simões, um dos coordenadores da pesquisa do IBGE.

Diante desse quadro, se alguém disser que a violência se transformou numa verdadeira tragédia nacional, não estará cometendo nenhum exagero. O que fazer para enfrentar essa situação?

Seus componentes econômicos e sociais, lembrados por Simões – tais como a falta de emprego, educação e saúde, e a reduzida renda das populações carentes –, só podem ser atendidos em médio e longo prazos. O que é possível e se deve fazer de imediato, ao mesmo tempo em que se busca melhorar as condições de vida da população, é aumentar a eficiência do aparelho policial, especialmente no combate ao crime organizado. Nesse caso, com destaque para o narcotráfico, que, além de ampliar continuamente o controle que exerce sobre importantes áreas de grandes cidades, como o Rio de Janeiro, está expandindo seus domínios também em todo o interior do país. E nessa tarefa salta aos olhos que tanto os governos estaduais como o federal têm falhado.

Dentre as pessoas mais qualificadas para sugerir caminhos para atingir aquele objetivo está o coronel José Vicente da Silva, ex-secretário Nacional de Segurança Pública no governo Fernando Henrique Cardoso e pesquisador do Instituto Fernand Braudel, um dos maiores especialistas brasileiros no assunto.

Sempre que os governadores querem mostrar empenho em combater a criminalidade – forçados pelo clamor da opinião pública contra a escalada da violência – apelam para a velha política de segurança que privilegia a compra de viaturas e outros equipamentos, além de um aumento, este sempre modesto, do efetivo das polícias militar e civil. Para José Vicente da Silva, essa concepção de polícia, que chama de "policiamento reativo", está ultrapassada. Ele considera essa opção por equipamentos "para serem vistos" – reforçada pela disposição de viaturas estacionadas em esquinas movimentadas ou praças – uma estratégia de marketing: "Afinal, viaturas são outdoors ambulantes".

Em sua opinião, os principais erros dessa velha concepção de polícia são:

1) a velocidade de atendimento não assegura a prisão do criminoso. As pesquisas mostram que não chegam a 3% os casos de detenção;

2) o patrulhamento aleatório é um desperdício de tempo e de recursos, porque os crimes quase sempre se concentram em alguns pontos das cidades. É lá, portanto, que os policiais devem atuar;

3) não é prendendo o máximo de infratores da lei que se melhora a segurança, ao contrário do que se imagina. Prender, sim, mas principalmente os mais violentos e contumazes, os ligados aos grupos criminosos;

4) quanto aos efetivos policiais, é preciso lembrar que os do Brasil são proporcionalmente maiores que os de países desenvolvidos como Estados Unidos, Inglaterra e Japão.

Para substituir a "concepção obsoleta" que predomina no país, o coronel José Vicente da Silva propõe um conjunto de medidas.

A primeira delas é a decisão dos governos, a começar pelo da União, de eleger a segurança pública como prioridade, "e não dar-lhe ênfase apenas quando a violência passa da última para a primeira página dos jornais".

Sua opinião sobre o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) é negativa: "Ele é apenas uma expressão de marketing para mostrar a intenção de fazer algo diferente. Não tem nada de novo. Nunca vi isso funcionar nos meus 41 anos voltados para a atividade policial, em nenhum dos 22 estados por onde passei. As unidades da federação aderiram ao Susp apenas para poder conseguir dinheiro do Fundo Nacional de Segurança Pública".

As outras medidas que a seu ver se impõem são, resumidamente:

1) unificar a polícia, pois sua divisão em militar e civil dificulta o empreendimento de esforços coordenados e eficazes tanto para a prevenção como para a repressão do crime. "A idéia de ‘integrar’ as polícias, para levá-las a trabalhar harmonicamente, nunca se concretizou nem se concretizará, a não ser ocasional e pontualmente";

2) promover amplo programa de valorização dos recursos humanos, compatível com as exigências e dificuldades da função policial, por meio de seleção e treinamento rigorosos, oportunidades de progressão na carreira, assistência médica, etc. "A situação dos policiais hoje é dramática, com baixos salários e falta de assistência de todo tipo";

3) investir em estruturas e processos de inteligência, desde bancos de dados em delegacias distritais até centros de coordenação de todos esses bancos. Essa é a melhor maneira de possibilitar à polícia conhecer os padrões e tendências criminais de cada área das grandes cidades e, com base nisso, antecipar ações que reduzam as oportunidades para os crimes e forneçam evidências para condenação rápida dos criminosos;

4) dar ênfase à moralização da polícia, por meio de medidas como sistema de supervisão, corregedoria descentralizada, extremo rigor na apuração das denúncias e punições rápidas;

5) promover a interação polícia-comunidade. "A população tem uma coisa valiosa de que a polícia precisa: informação, a matéria-prima do trabalho policial. Se lhe forem oferecidos canais abertos e receptivos, colaborará e apoiará o trabalho policial."

O combate à criminalidade não se esgota, contudo, na ação policial, embora ela seja, é claro, fundamental. É preciso atentar para seus componentes sociais e econômicos. Não se pode estabelecer uma relação simplista e mecânica de causa e efeito entre a pobreza e a violência – do contrário, como se explicaria a presença desta última, em altas doses, em países ricos, em especial os Estados Unidos? Mas que as condições precárias de vida na periferia das grandes cidades de países como o Brasil agravam o problema da violência também não parece haver dúvida.

Atento a esse aspecto do problema, afirma José Vicente da Silva ser evidente "que, além da má distribuição de renda, as populações da periferia das grandes cidades, cujas condições de vida se degradaram muito nas últimas décadas, sofrem com a falta de atenção do poder público. Especialmente seu segmento mais jovem. E é lá que estão concentrados os focos de homicídio. A pobreza está sendo literalmente eliminada por meio da supressão anual de 40 mil pobres, principalmente jovens, inclusive com a ‘ajuda’ do Estado – foram quase 2 mil mortos no ano passado só pelas polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo, enquanto todos os policiais dos Estados Unidos mataram 339 pessoas em 2002".

Embora a melhoria geral das condições socioeconômicas dessas populações seja tarefa de médio e longo prazos, como já foi dito, há muita coisa importante que pode e deve ser feita em menos tempo. José Vicente da Silva cita dois exemplos. A cidade de Diadema, na Grande São Paulo, reduziu a taxa de homicídios em mais de 50% em cerca de dois anos, com uma conjugação de ações policiais e sociais. Em São José dos Campos (SP), maciços investimentos em bairros violentos (creches e escolas, asfaltamento e iluminação de ruas, transporte, habitação) e numa fundação municipal que cuida de 6 mil jovens carentes contribuíram decisivamente para que a cidade tivesse, em 2003, índice de homicídios inferior ao de 1995.

Ele adverte, contudo, que ações isoladas não produzem efeitos substanciais na redução da violência em áreas críticas. É indispensável que a instalação de equipamentos urbanos e a implementação de programas sociais e ações policiais sejam bem coordenadas para funcionar "como um feixe de raios X orientado para um tumor". Outra providência de grande valor é "a restauração da ordem nos espaços urbanos degradados. Esse é um poderoso instrumento de redução dos emuladores da violência, daí o sucesso da renovação do centro histórico do Recife e da redução do horário de funcionamento dos bares em cidades como Diadema, Barueri e Hortolândia, no estado de São Paulo. A combinação de espaços urbanos degradados e ausência ou insuficiência da presença do Estado cria um ambiente de ‘ninguém se importa’ e ‘aqui a lei vale pouco ou nada’, que incentiva a desordem e a tolerância ao crime, de que é exemplo a ‘feira’ de drogas que funciona livremente nas favelas cariocas".

Análises e sugestões como as de José Vicente da Silva – em muitos pontos coincidentes com as de outros especialistas – mostram que nem tudo está perdido, como pode sugerir o desânimo provocado pelos números do IBGE. Muito deve ser feito e a custo razoável – a curto e médio prazos – para conter o avanço da criminalidade.


Ações integradas

Paulo Mesquita, secretário executivo do Instituto São Paulo contra a Violência – organização que reúne um grupo de empresários e idealizou e mantém o Disque-Denúncia, por meio de convênio com a Secretaria de Segurança Pública –, é um estudioso da questão da criminalidade. Para enfrentá-la, propõe um conjunto de ações destinadas a aumentar tanto a eficiência da polícia na prevenção e na investigação dos crimes como a confiança que a população deve ter na instituição. A fim de atingir esse objetivo ele sugere que se invista no aperfeiçoamento da gestão das organizações policiais, em seus mecanismos de controle interno e externo e na constituição de bases de informação e estatísticas sobre segurança pública e justiça criminal, assim como no treinamento de policiais para produzir, analisar e utilizar esses dados.

Insiste também na necessidade de formulação de políticas federais, estaduais e municipais para a prevenção do crime e melhoria da segurança pública, de forma a integrar as ações das polícias federal e estaduais e das guardas municipais, assim como de organizações da sociedade civil. Observa que "policiamento comunitário, delegacias participativas, qualidade total, cursos e treinamentos para limitar e controlar o uso da força, ouvidorias de polícia, controle externo pelo Ministério Público, julgamento dos policiais acusados de crimes praticados no exercício da função pela Justiça comum, entre outras, são medidas positivas adotadas em vários estados nos últimos anos para aperfeiçoar o trabalho policial". Entretanto, ressalva, "o alcance e o impacto dessas providências são ainda bastante limitados, praticamente imperceptíveis para a maioria da sociedade".

 

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