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Reservas avançam

 


Orlando maver / Henrique Pita


É nítido o esforço do país para reduzir a dependência externa

MARIA HELENA PASSOS

Não se tem notícia a respeito de enquete recente sobre a imagem do Banco Central (BC). Mas não seria espantoso se, aferida em pesquisa de opinião pública, ela se revelasse pouco satisfatória. Seria fácil compreender que o cidadão associe a salgada taxa de juros com que convive – e até mesmo parte da responsabilidade pela falta de emprego na praça e de dinheiro em seu bolso – à atuação da instituição governamental, incumbida de definir seu parâmetro básico a cada mês.

Freqüentemente no centro da polêmica sobre a retomada do crescimento econômico no Brasil, o trabalho da equipe capitaneada desde janeiro de 2003 por Henrique Meirelles, ex-executivo do BankBoston, apresenta, porém, um lado que, a julgar pela observação consensual dos especialistas, tem dado mais certo. É um lado que fica bem mais distante do cotidiano do cidadão, ainda que seja parte substancial dos fatores que o condicionam.

Trata-se do gerenciamento internacional – aquele que cuida da política cambial, mercado que define o preço do dólar, e das reservas internacionais do país, recursos que são a última instância de disponibilidade de uma economia e que expressam a robustez financeira de um país. Em 2003, o BC conseguiu recuperá-las em um regime de taxas cambiais flutuantes. Uma tarefa muito relevante para uma economia com a crônica vulnerabilidade externa da brasileira.

Auxiliado pela farta liquidez internacional que marcou 2003 e os primeiros meses de 2004, o BC contou ainda com uma mãozinha do Tesouro Nacional. Em expediente inédito, de setembro do ano passado até janeiro último ele comprou no mercado de câmbio à vista US$ 6,641 bilhões, o suficiente para pagar metade de sua dívida externa que vence em 2004. Isso permitiu que o BC tivesse de desembolsar menos recursos das reservas internacionais do país.

Ao final do primeiro trimestre de 2004, o país dispunha de US$ 21,4 bilhões de reservas líquidas ajustadas, contabilizadas nos moldes definidos pelo memorando de entendimento da terceira revisão do acordo firmado com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Por tais critérios, esse saldo não computa o dinheiro emprestado pela instituição multilateral, depósitos no exterior e recursos referentes a títulos da dívida externa brasileira acima de um valor máximo.

Pois os US$ 21,4 bilhões representam um avanço de 23% em relação ao total alcançado pelas reservas internacionais líquidas ajustadas em dezembro do ano passado. Significam também que o Brasil conseguiu retornar ao patamar que exibia em agosto de 2002, quando as especulações pré-eleitorais ameaçaram a saúde do setor externo brasileiro, com o dólar chegando a bater na casa dos R$ 4 às vésperas do pleito.

Para atingir tal patamar no primeiro trimestre de 2004, além da citada compra de dólares no mercado à vista por parte do Tesouro, o próprio BC adquiriu a moeda norte-americana durante esse período. Foram US$ 3,8 bilhões comprados – dólares que engrossaram as reservas internacionais, favorecendo o pagamento das obrigações externas do país sem usar os recursos renegociados com o FMI em dezembro de 2003, obtidos como um "cheque especial", conforme o Ministério da Fazenda, que o governo não via necessidade de usar à época de sua contratação.

Vigor comercial

É fato que nada disso teria sido possível não fora o brilhante desempenho da balança comercial do país, que bate recordes sucessivos. Gerou um superávit de US$ 24,8 bilhões em 2003. No primeiro trimestre de 2004, acumulou outros US$ 6,172 bilhões, um crescimento de 162,16% em relação ao mesmo período do ano passado. Até maio, o saldo acumulava US$ 11,248 bilhões – um avanço de 39,77%, em comparação similar.

A balança comercial é o primeiro item do balanço de transações correntes, que, ao lado da conta de capitais e financeira, resulta no balanço de pagamentos do país – a síntese da situação externa de uma economia. Dela depende a saúde das reservas internacionais.

Assim, como analisa o economista Carlos Urso, o vigor das exportações brasileiras, que tem permitido ao país um saldo comercial relevante, é o principal aliado do governo para manter o bom estado das reservas internacionais em 2004. Até dezembro, o governo estima que o superávit poderá chegar a US$ 25 bilhões. Cálculos da LCA Consultores, divulgados em sua carta de junho, previam US$ 27,8 bilhões, o que representaria um avanço de 12% sobre o excepcional resultado do ano passado.

Pode-se comparar a balança comercial ao resultado do que uma família gasta com bens e serviços, além de outras despesas para poder comer, viver e trabalhar, e o que efetivamente consegue ganhar com seu trabalho ou a venda do que produz no mercado.

A esse resultado soma-se o crédito que possui – o que ela, digamos, tomar emprestado num banco ou financiar no cartão de crédito, cheque especial ou o que seja. No caso do balanço de pagamentos, esses recursos são as captações externas, que, ao lado de outros fluxos como investimento estrangeiro direto ou em carteira de ações, obrigações de pagamentos de juros e principal da dívida externa, compõem a conta de capitais e financeira.

Em 2004, só o governo pretende captar US$ 5,5 bilhões com a emissão de bônus", lembra Urso. Dados da Associação Nacional dos Bancos de Investimento (Anbid) registram US$ 4 bilhões angariados no exterior pelos setores público e privado do Brasil até março. Em abril e maio, o resultado foi mais fraco: apenas US$ 800 milhões foram somados a tal valor. A previsão de Urso é que, até o final do ano, o país possa obter entre US$ 30 e US$ 31 bilhões em captações externas.

A esses ingressos deverão ser acrescentados ainda, em 2004, os investimentos diretos de, no mínimo, US$ 11 bilhões, segundo o consultor, para dar conta do calcanhar-de-aquiles do setor externo brasileiro – a historicamente deficitária conta do pagamento de principal e juros da dívida externa.

Neste ano, o país desembolsará ao redor de US$ 15 bilhões só para pagamento de juros. Desse total, pouco mais da metade se refere a dívidas do setor público e equivale a 37% das reservas líquidas ajustadas que possuía ao final de maio. Para dar conta do principal com vencimento em 2004, o Brasil terá de desembolsar mais do que o dobro: cerca de US$ 37 bilhões.

Em março, o país pagou US$ 1,4 bilhão ao FMI – a inicial de um total de quatro que vencem este ano. Ainda assim, fechou o balanço de pagamentos no primeiro quadrimestre com superávit de US$ 2,183 bilhões.

Inflexão na curva

Pagamentos substanciais de principal e juros da dívida externa – mais de US$ 5 bilhões – e o arrefecimento desde fevereiro, acentuado em abril, do frenético ritmo das captações externas por empresas brasileiras registrado no primeiro mês do ano – quando entraram US$ 1,8 bilhão em bônus para o setor privado e US$ 1,5 bilhão em títulos soberanos emitidos pela União – pesaram de modo preponderante para que a evolução das reservas internacionais brutas do país registrasse uma inflexão na curva em abril.

No quarto mês do ano, o país pagou US$ 8 bilhões de juros e principal da dívida externa pública e privada. As captações externas foram modestas, e a balança comercial gerou superávit de US$ 1,958 bilhão, recorde histórico em todos os meses de abril precedentes.

Porém, em termos líquidos ajustados, as reservas ficaram em US$ 22,4 bilhões, porque a redução obtida com o pagamento ao FMI superou o efeito causado pelos desembolsos maiores com os compromissos da dívida e o fluxo menor de investimento direto. Em maio, o tranco desses dois fatores foi mais sentido, e as reservas líquidas recuaram ligeiramente, para US$ 22,1 bilhões.

Não fosse a inédita iniciativa de o Tesouro captar recursos, certamente teria sido pior. E se o próprio BC não tivesse comprado maciçamente dólares em janeiro, seria pior ainda. Suas aquisições se estenderam até 8 de fevereiro.

Para alguns, o BC foi cauteloso – poderia ter ido além dos US$ 3,8 bilhões. "Tímido demais", define a economista Monica Baer, da Mendonça de Barros e Associados, capitaneada pelo ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, José Roberto Mendonça de Barros. Ela sustenta que o BC poderia ter aproveitado com maior intensidade o cenário de virtuosidade total que se verificou no mercado internacional, sobretudo por conta do longo período de juros de 1% anuais praticados nos Estados Unidos.

Igualmente, a carta mensal produzida pela LCA ao final de abril qualificava de "fugaz" a atuação do BC no mercado de câmbio, apesar de saudar a iniciativa como mais do que oportuna. "O banco só comprou divisas nos poucos dias em que o país vinha sendo inundado de capitais externos, na esteira da euforia que tomou conta dos mercados internacionais no início do ano", diz o texto. Uma torrente de moeda estrangeira que se mostrou "circunstancial", definia a consultoria, cuja avaliação era que, ao agir desse modo, "a autoridade monetária mostrou que não tem, propriamente, uma política de acúmulo sistemático de reservas".

Ao aplaudir as compras de dólares no mercado à vista pelo BC, a LCA se une à opinião de outros especialistas, embora seja, como a economista Baer, crítica quanto ao grau de atuação do banco.

Entre esses especialistas está também a economista Maristella Ansanelli, da Tendências Consultoria Integrada, da qual é sócio o ex-ministro da Fazenda do governo José Sarney, Maílson da Nóbrega. Ela acredita que o BC comprou o que pôde. Se fosse além ou se continuasse a adquirir a moeda norte-americana depois de 8 de fevereiro, poderia ter depreciado muito o real. Tal efeito é inconveniente, porque impele o BC a emitir papéis da dívida pública no mercado interno, de modo a evitar que um aumento de circulação de reais na economia permita espaço para a elevação de preços, pressionando a inflação.

Um economista de um banco norte-americano que acompanha igualmente o tema julga que não houve timidez. Em suas contas, somados os recursos adquiridos pelo Tesouro e pelo BC no mercado no segundo semestre de 2003 e no primeiro bimestre de 2004, chega-se a mais de US$ 14 bilhões.

Altamir Lopes, chefe do Departamento Econômico do BC, já informou que o Tesouro não retornará ao mercado para captar o que falta para dar conta de sua dívida externa, pois já esgotou o limite fixado pelo banco. Nada impede, porém, que o BC volte a fazê-lo, caso a situação da inflação, meta precípua de sua política, por um lado, e a disponibilidade de moeda estrangeira no mercado de câmbio tornem a favorecer a operação.

É nítido o empenho do governo em recompor as reservas do país. Tanto é assim que usou, pela primeira vez, o expediente de o Tesouro ir a mercado para comprar dólares que ajudem a pagar sua dívida. Usualmente, o Tesouro saca sobre as reservas internacionais do BC, mas também pode fazer, como agora, o contrário, captando moeda no exterior", afirma o economista Celso Martone, da MCM Consultores Associados e professor da Universidade de São Paulo (USP). Ele acredita que haverá espaço ainda neste ano para que o BC volte a adquirir dólares no mercado para avançar na tarefa de recomposição das reservas.

Previsões convergentes

A despeito das nuvens cinzentas que começaram a irromper no céu de brigadeiro que inundava de liquidez o mercado internacional, favorecendo economias emergentes até o primeiro trimestre de 2004, quatro importantes consultorias brasileiras prevêem uma evolução relevante das reservas líquidas do país até dezembro. O cenário que traçam é dos mais conservadores. Nele, o BC não voltaria ao mercado para comprar dólares, e o governo emitiria o valor remanescente em suas previsões de mais US$ 2,5 bilhões em bônus para captação externa.

Para Ansanelli, da Tendências, o país chegará a dezembro com US$ 20,3 bilhões em reservas líquidas ajustadas, o que representa uma evolução de 16% em relação ao ano passado. Ela considera que o Banco Mundial (Bird) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) emprestariam ao país US$ 1,5 bilhão ainda este ano. Seu cenário embute uma redução da liquidez internacional, mas ela não vê a anunciada perspectiva de alta de juros nos Estados Unidos como um sinal desfavorável. "Ao contrário, ela é boa porque pressupõe crescimento da economia norte-americana, o que tende a favorecer nossas exportações", diz a economista.

O resultado de suas contas indica ainda um recuo de 7% nas reservas brutas, de US$ 49,3 bilhões em 2003 para US$ 46 bilhões em 2004, que ela julga "natural". Como o país este ano pagaria integralmente as parcelas do acordo do FMI e abriria a possibilidade de não renová-lo em dezembro, conforme o governo já declarou, a parcela de recursos do Fundo nas reservas brutas se reduziria. O que, a rigor, é um ótimo sinal.

Um exercício feito por Urso especialmente para Problemas Brasileiros levou em conta as mesmas premissas do cenário conservador e considerou a retomada da captação externa através de bônus governamentais em junho no valor remanescente total. E, ainda, que as rolagens de vencimentos e captações externas serão moderadamente afetadas pela elevação dos juros norte-americanos, evitando sangria maior de capitais no segundo semestre. O resultado indica que as reservas líquidas ajustadas encerrarão o ano acima de US$ 25 bilhões, o que significaria um crescimento expressivo.

Essa perspectiva não é de todo absurda. Nos difíceis meses para a captação externa de março, abril e maio, o patamar das reservas líquidas ajustadas subiu para US$ 22 bilhões.

Baer, da Mendonça de Barros e Associados, estima que o país chegará a dezembro com US$ 24 bilhões em reservas líquidas, mesmo que o ambiente externo seja desfavorável. "Trabalhamos com a hipótese de que o dinheiro pode, daqui para a frente, ficar mais caro no mercado internacional, mas não vai desaparecer", diz a economista.

Martone, da MCM, igualmente não acredita que o cenário internacional azede a ponto de obstar o acesso do Brasil ao mercado internacional de capitais. Ele calcula que o país chegará ao final do ano com reservas líquidas ajustadas ao redor de US$ 25 bilhões.

No Citibank, onde os especialistas também trabalham com um conceito de reservas líquidas distinto daquele definido no acordo com o FMI, a evolução deve ser mais discreta. O cálculo pressupõe o pagamento de US$ 4,6 bilhões ao FMI até dezembro, e a partir de abril a emissão de US$ 2,5 bilhões e o ingresso de US$ 1,5 bilhão do Bird e do BID. E não prevê que o BC volte a comprar dólares no mercado.

É certo que turbulências no mercado financeiro e cambial são chuvas e trovoadas que podem no limite modificar todas as previsões feitas pelas consultorias. Mas vale ressaltar que os exercícios embutiram alguma deterioração do cenário externo a partir do segundo trimestre.

Nesse período, a turbulência certamente teria sido pior se o BC não tivesse reduzido a patamares bastante modestos os títulos que no passado emitiu com variação cambial, resgatando-os de forma crescente nos últimos meses, admitem os especialistas.

Todo esse esforço converge na direção de que o país não apenas não precise como também, de fato, não faça novo acordo com o FMI em dezembro. "Não renovar tem um custo zero, economicamente. Mas a questão envolve outro tipo de custo. Renová-lo trava o rating (avaliação de risco que os investidores estrangeiros correm ao aplicar seus recursos em papéis emitidos por determinado emissor, no caso o chamado risco-país). A imagem do Brasil no mercado internacional é a de que desde 1998 ele tem precisado de uma babysitter. Será muito saudável se chegar a dezembro sem, de fato, necessitar disso", afirma Martone.

São esforços ainda tímidos, mas aplaudidos pelos especialistas. Eles revelam um BC mais atento às contas externas do que no passado, a construir nesse campo uma imagem mais simpática do que aquela que os 16% dos renitentes juros básicos suscitam tanto na opinião pública como em parte substancial da platéia de empresários, executivos, analistas financeiros e economistas.


Do petróleo à soja

No cenário internacional, uma das mais recentes nuvens estacionadas sobre o céu de brigadeiro que a farta liquidez internacional e a alta do preço das commodities criaram para o balanço de pagamentos do Brasil foi a elevação do preço do petróleo.

Não por outro motivo, em 21 de junho último o BC divulgou boletim a respeito do assunto, no qual defendeu, em resumo, a tese de que, com a evolução da produção nacional, o Brasil vem tratando, há algum tempo, de reduzir sua vulnerabilidade em relação às importações do produto e a suas variações de preço. "Na prática, o efeito atual sobre a balança comercial de um aumento do petróleo é inferior ao de uma queda de igual proporção do preço da soja", conclui o documento.

A comparação não podia ter sido feita em oportunidade mais incômoda, exatamente quando um ruidoso caso sobre o grão acabava de ser alvo de gestões diplomáticas e esboçou a aproximação de outra nuvem no panorama das contas externas. Na última semana de junho, estava muito longe de se transformar em um fator capaz de deteriorar gravemente o desempenho comercial do país. Mas, mesmo que não seja por causa da perspectiva de queda de preços das commodities no mercado internacional de modo geral, a soja é objeto digno de atenção especial por parte do governo.

Carro-chefe das exportações agrícolas do país, estrela maior do setor que mais se expande na economia brasileira, mesmo quando o PIB não sai do lugar, a soja pode ser classificada dentro do padrão internacional de mistura quando tem no máximo três sementes tratadas com fungicida por quilo de grãos. A que foi vendida à China – e sofreu embargo – continha mais. O fato provocou perdas aos exportadores. Enquanto isso, o preço da tonelada seguiu descendo a ladeira – de US$ 360, no pico de 2003, chegou a US$ 260 quando o Brasil fechou acordo com o governo de Pequim, adotando no país norma bem mais rígida – um grão modificado por quilo – do que aquela que norteia os critérios observados por seus concorrentes no comércio exterior.

Especialistas em comércio exterior enxergaram claramente que a manobra chinesa pretendia o que se deu: queda maior do preço da soja. Deficiências na fiscalização do produto antes do embarque e o desleixo de exportadores deram a chance aos chineses para chegar aonde queriam.

Sozinho, o complexo soja respondeu por 10% do valor total das exportações brasileiras nos primeiros cinco meses de 2004, segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. Só teve participação menor do que bens intermediários – minério de ferro, aço, alumínio e papel e celulose.

 

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