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Autonomia em jogo

 


Henrique Pita

Agências reguladoras tentam manter independência

OSWALDO RIBAS

As agências reguladoras foram criadas para possibilitar a modernização do Estado brasileiro e a realização do projeto de desestatização dos setores de infra-estrutura, como energia, transportes e telecomunicações, permitindo a abertura do mercado interno à competição global. Segundo os especialistas, elas são uma forma de compensar a redução da ingerência do Estado na economia. Com seu poder de fiscalização e regulação independentes, surgem exatamente para ocupar o espaço deixado pelo esvaziamento das empresas estatais, com seu histórico de déficits crescentes nas contas públicas e casos freqüentes de corrupção administrativa.

"A crise do Estado brasileiro, sem recursos para manter suas grandes empresas deficitárias e ao mesmo tempo realizar os investimentos necessários para atender a demanda crescente da economia por energia e serviços públicos, forçou o governo a optar pelo desmantelamento do antigo modelo de monopólio estatal em atividades estratégicas", diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE) e professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "A opção de Brasília, seguindo o modelo neoliberal em voga a partir dos anos 80 em todo o mundo, foi a substituição do Estado pela participação crescente do capital privado, interno e externo, estabelecendo um ambiente de livre mercado nesses setores essenciais e criando a necessidade de órgãos reguladores independentes", acrescenta o especialista.

No Brasil, as agências se tornaram realidade em meados dos anos 90, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso empreendeu a política do Estado mínimo em substituição à estratégia do Estado-empresário que havia vigorado durante todo o regime militar.

Nesse novo jogo das forças econômicas, em que a reserva de mercado deixa de existir e as empresas estatais e privadas passam a ter direitos iguais, as agências reguladoras são chamadas a ocupar uma posição central no gerenciamento dos conflitos de interesses entre esses diversos agentes. Nele, o consumidor perde a tutela do Estado, mas assume um papel muito mais importante e ativo na defesa de sua própria causa, passando a contar com as agências reguladoras como canal de apoio e de relacionamento com as prestadoras de serviços.

"As agências, com seu poder de regulação, contratação, monitoração e fiscalização, têm por meta fazer com que a privatização e o livre mercado – com dezenas de empresas privadas atuando em setores que antes eram ocupados pelas estatais – funcionem adequadamente", relata a presidente da Associação Brasileira de Agências de Regulação (Abar), Maria Augusta Feldman. "É, portanto, atribuição delas tornar operacionais os contratos de concessão firmados pelo Executivo."

Assim, se antigamente os problemas das telecomunicações deveriam ser encaminhados a uma só fonte e dela cobrados, como por exemplo o Sistema Telebrás, hoje, a responsabilidade pelas comunicações no Brasil se dispersou por cerca de 40 empresas independentes que prestam serviços nesse setor. Nesse caso, portanto, é função da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em parceria com o Ministério das Comunicações, observar como cada uma dessas empresas concessionárias de serviços de telefonia, transmissão de imagens e de dados está se comportando no mercado.

A agência, conforme suas atribuições estabelecidas em lei, avalia se há necessidade de novos players no mercado para evitar a formação de cartéis ou situações de monopólio, monitora a flutuação das tarifas, procura informar e educar os consumidores sobre seus direitos e deveres. É sua tarefa também regulamentar contratos de prestação de serviços, cobrar os investimentos previstos e checar se as metas de atendimento, expansão e satisfação dos clientes estão sendo atendidas. Caso os contratos estejam sendo descumpridos, ou ocorra abuso de poder econômico ou prejuízo dos consumidores, as agências têm poder para advertir as empresas, aplicar multas e, eventualmente, rescindir contratos.

Assim como ocorreu maciçamente no setor das comunicações, o governo, em busca de parceiros empresariais, abriu o mercado interno à iniciativa e investimentos privados em áreas como a do petróleo – antes dominada totalmente pela Petrobras –, saúde, saneamento básico, energia elétrica e transportes. De repente, o consumidor e o mercado brasileiros passaram a lidar com as novas siglas da era pós-privatização – ANP, ANA, Aneel, ANTT – respectivamente Agência Nacional do Petróleo, Agência Nacional de Águas, Agência Nacional de Energia Elétrica e Agência Nacional de Transportes Terrestres –, para citar algumas das oito agências federais e 19 de abrangência estadual e municipal.

O país, no curto período de menos de uma década, passou a contar com um novo tipo de controle de mercado, mais moderno, no qual o papel das agências, embora seja também o de salvaguardar os interesses nacionais, é o de defender os consumidores e as próprias empresas, bem como seus acionistas e investidores. São elas as guardiãs dos chamados marcos regulatórios, ou seja, a garantia jurídica de que as regras do jogo econômico não mudarão e os contratos assinados agora entre o governo e as concessionárias serão respeitados até o fim.

"São bilhões de dólares envolvidos. Como se trata de áreas de infra-estrutura, as concessões são de longo prazo, algumas chegando a meio século, e, antes de colocar seu dinheiro nos projetos, empresas e investidores privados querem ter certeza de que os termos dos contratos que, em última instância, possibilitarão o retorno de seus investimentos no futuro são 100% garantidos", acrescenta Maria Augusta.

Para transitar com independência entre tantos atores sociais e econômicos, as agências reguladoras assumem a forma jurídica de autarquias, ou seja, órgãos administrativos autônomos, auto-administráveis, mas ainda assim vinculados à entidade estatal a que pertencem, como os ministérios públicos de suas respectivas áreas de atuação. Ou seja, a ANP e a Aneel estão ligadas ao Ministério de Minas e Energia, como a Anatel está vinculada ao Ministério das Comunicações e a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) ao Ministério da Saúde; todas, no entanto, preservam uma independência administrativa que impede que se transformem em simples extensões do poder ministerial, mantendo voz própria para fiscalizar o mercado.

Na condição de autarquias federais, as agências têm seu diretor-geral indicado pelo presidente da República, mas também legitimado pelo Congresso, de tal forma que o chefe da agência pode exercer seu cargo com autonomia suficiente para, em tese, não se submeter a interesses políticos, nem mesmo os do partido da situação.

"Deve ficar bem claro que no projeto original das agências reguladoras, e também conforme agem em vários países como Estados Unidos e Inglaterra, elas desempenham um papel de fiscalização, regulação e contratação dos seus respectivos setores de atividades de maneira absolutamente independente de qualquer ingerência política", declara a presidente da Abar. Na condição de porta-voz das 27 agências reguladoras que estão em operação atualmente no Brasil, Maria Augusta relata ser essa autonomia um ponto inegociável, já que significa a própria natureza das agências.

Questão polêmica

Mas é exatamente essa independência das agências, considerada seu maior atributo, que, no Brasil, acabou se transformando em seu ponto mais polêmico. "Ao herdar a instituição das agências como uma criação do governo anterior, de Fernando Henrique, a administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro publicamente, desde o início, que discordava do que considerava ser seu imenso poder de administrar a economia nacional", revela o deputado Ricardo Barros (PP-PR), vice-líder de seu partido e também coordenador da Frente Parlamentar de Defesa das Agências Reguladoras. "Essa surpresa do governo Lula com o poder paralelo das autarquias foi o que o levou a preparar o projeto, agora em consulta no Congresso, que pede várias reformas quanto ao papel original delas, logicamente buscando reduzir sua autonomia."

Lula e ministros como Dilma Rousseff, de Minas e Energia, chegaram a criticar o fato de ficar sabendo apenas no dia seguinte, pelos jornais, da elevação de tarifas de energia ou do preço do gás de cozinha engarrafado, o GLP, ou de remarcações dos preços nas bombas de gasolina dos postos de serviços. "Terceirizaram o poder político no Brasil", chegou a afirmar Lula numa famosa frase que levou o governo a iniciar os estudos para alterar o status das agências reguladoras.

Entre as mudanças pedidas no projeto de lei encaminhado pelo presidente Lula, a que mais tem revoltado os setores da sociedade contrários à submissão ao governo é a regra que trata do cumprimento de metas de fiscalização. De acordo com a proposta, essas metas serão estipuladas em um contrato de gestão que deverá ser assinado pelas agências, com o objetivo de dar transparência ao seu funcionamento, mas que, na avaliação dos críticos, significa o controle direto do Executivo nas atribuições das autarquias.

Além disso, o projeto exige que sejam realizados relatórios semestrais de acompanhamento do desempenho das agências e cria a figura de um ouvidor interno, que será a ponte direta do governo no interior delas.

A proposta, após um longo debate com vários setores da sociedade, acabou sendo flexibilizada, de modo a permitir a estabilidade para os presidentes e diretores-gerais das agências. A idéia do governo, antes, era que o Executivo pudesse dispensá-los quando julgasse conveniente, como ocorreu na prática com Luiz Schymura, presidente da Anatel, que havia se indisposto com o ministro das Comunicações e acabou sendo levado a se demitir. Segundo o novo projeto, os chefes das agências terão mandatos fixos de quatro anos e deverão ser sabatinados pelo Senado Federal. Depois da sabatina, os dirigentes indicados pelo presidente poderão assumir os cargos. A proposta prevê ainda que as indicações sejam feitas nos primeiros seis meses do segundo ano de posse do presidente da República, para que seus mandatos não sejam coincidentes.

Conforme estabelece ainda o projeto que deverá ser votado até o fim do ano, as agências que descumprirem as metas não vão sofrer graves punições, como cortes no orçamento, mas estarão sujeitas a medidas corretivas estabelecidas nos contratos, como, por exemplo, a possibilidade de ver suas metas de desempenho dobradas.

Preocupado com a posição do Planalto nessa questão, Adriano Pires, do CBIE, chegou a apurar a existência de duas correntes dentro do governo Lula. Segundo ele, uma delas, formada pelo ministro da Casa Civil, José Dirceu, e pela ministra Dilma Rousseff, quer ver as agências como apêndices ministeriais, apartadas de qualquer poder decisório. A outra, encabeçada pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, já acha essencial a existência das agências como órgãos moderadores dentro do mercado. Na visão do ministro Dirceu, está em jogo a capacidade do governo de realizar suas políticas públicas; para Palocci, a questão mais importante diz respeito aos marcos regulatórios e à segurança e estabilidade que precisam ser transmitidas aos investidores para que apliquem recursos onde o Brasil tem maior carência, até para voltar a crescer e gerar empregos: infra-estrutura.

Para os críticos, como o deputado Ricardo Barros, o Executivo precisa, de fato, conversar com as partes envolvidas, especialmente os investidores. "Se deixar, o governo transforma as agências em departamentos dos ministérios. É essa a intenção. Desde o início deste mandato, havia uma vontade política do Partido dos Trabalhadores de subordinar essas autarquias aos ministérios. Com o tempo, o PT percebeu que os investidores não aceitam essa fórmula e que a própria parceria público-privada (PPP) fica totalmente prejudicada se não existir uma agência para mediar as questões entre o governo e seus sócios privados," alega Barros.

O deputado adverte ainda para a sensível questão das concessões. Com o projeto do Executivo, o poder concedente fica completamente fora do âmbito das agências e volta a se concentrar nas mãos dos ministérios. Segundo Barros, a nova regra é uma demonstração clara da tentativa de enfraquecer a atuação das agências. Mas, para o governo, é apenas uma correção, já que a administração anterior conferiu indevidamente a elas competências que deveriam permanecer exclusivas dos ministérios, uma vez que são intrínsecas a decisões políticas. Assim, na avaliação do Executivo, o que o projeto está pretendendo é restituir aos ministérios uma prerrogativa que foi suprimida pela legislação em vigor.

Na avaliação de Ruy Altenfelder, presidente do Instituto Roberto Simonsen (IRS), entidade de estudos avançados da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), nada vai mudar no que respeita às competências de ministérios e agências com o novo projeto do governo. "O que acontece é que, desde sua criação, algumas agências assumiram o poder das concessões, pelo fato de terem ocorrido casos de omissão em um ou outro ministério. De fato, sempre coube ao Executivo, de forma direta, decidir sobre licitações e firmar contratos de concessões com a iniciativa privada", afirma. "As agências se encarregam da operação, fiscalização e regulação dos contratos e do mercado, livres da ingerência ideológica e política em questões que são absolutamente técnicas."

Para Altenfelder, o governo Lula, a tempo, acordou para o fato de que poderia levar o país a sofrer com o recuo dos investimentos privados em infra-estrutura, caso prevalecessem as ameaças à estabilidade, independência e atuação das agências. "Passado o susto, é necessário, agora, dizer ao mundo que o Brasil está conduzindo o Estado ao século 21 e desistindo de engessar os grandes investimentos em infra-estrutura, responsáveis por um dos maiores fluxos de ingresso de capital produtivo em toda a história."


Interesse público

As agências são também uma fonte de irradiação de conhecimento dos setores regulados sob a forma de estudos, consultorias e pesquisas. A seguir listamos as oito agências reguladoras de âmbito federal, com suas respectivas atribuições, áreas de atividades e vinculação aos ministérios públicos.

Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) – Sua principal atribuição é implementar a política nacional de telecomunicações, atuando na defesa e proteção dos direitos dos usuários e administrando os conflitos de interesses entre as empresas concessionárias. Estabelece a estrutura tarifária de cada modalidade de serviços prestados e cumpre metas para universalização do atendimento. Com sede em Brasília, onde era a antiga Telebrás, ela tem autonomia financeira assegurada pelos recursos do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel). Vincula-se ao Ministério das Comunicações. Endereço na internet: www.anatel.gov.br

Agência Nacional do Petróleo (ANP) – Ligada ao Ministério de Minas e Energia, a ANP promove a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades da indústria petrolífera. A ANP segue as diretrizes do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), e entre suas atribuições está a de verificar a qualidade dos combustíveis, evitar fraudes e manipulações. Endereço na internet: www.anp.gov.br

Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) – É dela a função de regular e fiscalizar a geração, transmissão, distribuição e comercialização da energia elétrica. Na mediação dos interesses entre os agentes do setor elétrico e os consumidores, busca garantir a qualidade do serviço e tarifas justas. Associada ao Ministério de Minas e Energia. Endereço na internet: www.aneel.gov.br

Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) – Atua na exploração da infra-estrutura rodoviária e ferroviária e dos terminais de carga, e realiza o cadastro de dutovias e a habilitação de operadores de transporte multimodal. Ligada ao Ministério dos Transportes, a ANTT é quem autoriza o transporte coletivo regular de passageiros pelos meios rodoviário e ferroviário, por empresa de turismo e sob regime de fretamento. Endereço na internet: www.antt.gov.br

Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) – Seu objetivo é supervisionar a prestação de serviços e a exploração de infra-estrutura do transporte aquaviário e do sistema portuário. A meta é garantir a movimentação de pessoas e bens sob os padrões de eficiência, segurança e conforto, com tarifas e fretes justos, por parte das empresas concessionárias, permissionárias e arrendatárias de transporte marítimo e fluvial. É vinculada ao Ministério dos Transportes. Endereço na internet: www.antaq.gov.br

Agência Nacional de Águas (ANA) – Junto com o Ministério do Meio Ambiente, é responsável pela implantação da Política Nacional de Recursos Hídricos e da Lei das Águas, que disciplina o uso e exploração dos recursos hídricos no Brasil, como rios e lagos de domínio da União. Sua maior missão é buscar soluções para graves problemas nacionais, como as secas prolongadas no nordeste e a poluição dos rios. Endereço na internet: www.ana.gov.br

Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – O perfil do órgão é centrado na defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde. Regula as operadoras setoriais, suas relações com os consumidores, e pretende contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país. Vinculada ao Ministério da Saúde. Endereço na internet: www.ans.gov.br

Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – Também ligada ao Ministério da Saúde, promove o controle sanitário da produção e comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária. A agência exerce o controle dos portos, aeroportos e fronteiras. Endereço na internet: www.anvisa.gov.br

 

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