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Potencial orgânico

 


Melão cultivado sem agrotóxicos / Foto: Divulgação

Produtos certificados conquistam espaço dentro e fora do país

SUELI MELLO

A crescente procura por alimentos mais seguros e o aumento da consciência ecológica dos consumidores vêm transformando a agricultura orgânica, nos últimos anos, num autêntico e disputado nicho de mercado. Em geral, a idéia que se tem desses produtos é que eles são "isentos de agrotóxicos". O conceito, entretanto, é bem mais amplo, pois envolve todo um sistema de produção que se apóia no manejo equilibrado do solo e dos demais recursos naturais, partindo do pressuposto de que a fertilidade da terra deve ser buscada na matéria orgânica, rica em microorganismos capazes de fornecer os elementos necessários ao desenvolvimento das plantas ao mesmo tempo em que as torna resistentes a pragas e doenças.

Essa modalidade de cultura surgiu na década de 1920 e contou com importantes contribuições até chegar ao estágio atual. A compostagem (produção de adubo orgânico), por exemplo, foi trazida para o Ocidente pelo pesquisador inglês Albert Howard, que numa viagem à Índia aprendeu com os camponeses locais essa técnica destinada à fertilização do solo. Na mesma época, um sistema de rotação de culturas que utilizava adubos verdes, esterco, outros resíduos vegetais ou animais e o controle de pragas e doenças característico da agricultura biológica era criado na França pelo engenheiro agrônomo Claude Aubert.

Poucos anos depois, em 1924, a agricultura biodinâmica era lançada na Alemanha por Rudolf Steiner, que defendia a tese de que a saúde do solo, das plantas e dos animais seria influenciada pelo sol e pela lua. Steiner, o idealizador da antroposofia, foi também o criador do princípio denominado "auto-sustentabilidade", empregado até hoje em projetos voltados para a preservação ambiental.

Na década seguinte, em 1935, no Japão, Mokiti Okada, fundador da Igreja Messiânica, delineou os preceitos da agricultura natural, segundo os quais todos os seres vivos (vegetais e animais) possuem espírito e sentimentos, e da harmonia e prosperidade entre eles resulta a conservação do meio ambiente.

A origem no Brasil

Durante os anos 1970, a agricultura orgânica entusiasmou aqueles que buscavam um modo de vida alternativo, em maior contato com a natureza, e que repudiavam a utilização de insumos sintéticos em suas lavouras. Praticada predominantemente por pequenos produtores, cujo mercado consumidor foi se formando entre o público que acreditava que alimentos livres de agrotóxicos seriam mais benéficos à saúde, essa corrente agroecológica era, então, encarada como uma atividade marginal.

Na década seguinte, esse segmento cresceu e começou a se organizar, dando origem a diversas associações. Com o estabelecimento pela União Européia, a partir de 1994, de normas relativas à importação de produtos agrícolas, surgiu, especialmente entre aqueles que desejavam vender sua produção no mercado externo, a necessidade de se adequar à nova realidade.

No Brasil, a entrada dos orgânicos nos supermercados ocorreu a partir de 1997, o que contribuiu para aumentar sua visibilidade. Paralelamente, outros canais de comercialização foram criados, como a entrega em domicílio, as feiras e, mais recentemente, seu uso em restaurantes, escolas e pousadas.

A expansão do consumo interno e a perspectiva de conquistar mercados também no exterior levaram ao crescimento da produção, que veio acompanhado da necessidade de garantia da qualidade, e a certificação acabou por se tornar uma exigência. Para atendê-la, o produtor precisa contratar uma empresa certificadora. Esta realiza uma auditoria em sua propriedade, verificando desde a correção dos procedimentos técnicos até a conservação de matas nativas e as condições de vida e de trabalho dos agricultores. O processo envolve análises de laboratório para atestar a qualidade do solo, dos insumos e da água utilizada, o que implica despesas com as quais os pequenos proprietários, muitas vezes, não têm capacidade de arcar. Nesses casos, a certificação em grupo torna-se a melhor opção.

Vale ressaltar que, para passar da agricultura convencional para a orgânica, é necessário realizar um processo de conversão. Isso significa que, durante um período, o uso de fertilizantes é suspenso e a terra deve ser trabalhada até que o solo esteja livre de produtos químicos e a quantidade de nutrientes atinja um nível adequado. Esse procedimento leva cerca de três anos e precisa também ser certificado.

Bom negócio

O presidente da Bonafrux Agrícola, Flávio Pinto, sonha em aumentar a exportação de frutas produzidas em sua propriedade, de 240 hectares, localizada no perímetro irrigado da região do baixo Acaraú, no Ceará. Sua meta é vender para o exterior toda a produção, estimada em 240 toneladas. "Optamos pela agricultura orgânica após observar a quantidade de agrotóxicos que era empregada na fruticultura e como, apesar do uso de equipamentos de proteção, os trabalhadores ainda se contaminavam."

Quanto ao aspecto financeiro, o produtor avalia que os orgânicos "são tão rentáveis quanto os convencionais, mas constituem um bom negócio, porque, se houver qualidade e valor agregado, são mais fáceis de vender". Embora o solo daquela região seja muito pobre, e os insumos caros e difíceis de encontrar, ele aponta como principal problema a falta de financiamento. A solução foi produzir em menor quantidade, com recursos próprios, e buscar adiantamentos para custeio. A Bonafrux está também montando uma joint venture com um grupo investidor nacional, que trabalha na instalação de uma empresa de comercialização no Canadá.

A GaMa Alimentos, de maior porte, tem sede no Paraná e produz alimentos processados e in natura. No ano passado, suas exportações de soja atingiram 3,8 mil toneladas. Entre as atividades que desenvolve, a empresa fez parcerias com prefeituras e sindicatos de agricultores familiares em algumas cidades das regiões sul, nordeste e centro-oeste para incentivar 400 proprietários rurais a adotarem a produção de orgânicos. Para isso, oferece treinamento e assistência técnica. Segundo seu diretor de marketing, Leonardo Nasser Gardemann, nesses casos as maiores dificuldades são as dimensões continentais do país e a carência de transporte ágil, como ferrovias, o que dificulta a comercialização. Na área de exportação, ele reclama da infra-estrutura dos portos e das condições das estradas, além da burocracia e da pouca eficiência dos órgãos governamentais.

Comércio externo

Não existe um estudo aprofundado que mostre a real capacidade de produção e de exportação de orgânicos no país. Segundo a Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (Faesp), alguns levantamentos indicam que a área ocupada por esse tipo de cultura no Brasil é de aproximadamente 841,7 mil hectares, em cerca de 19 mil propriedades, com movimento anual próximo de US$ 300 milhões. As estimativas de vendas externas feitas pela Agência de Promoção de Exportações do Brasil (Apex-Brasil) para este ano giram em torno de US$ 115 milhões.

Segundo Liliane Rank, gerente da agência, a produção orgânica brasileira é bem diversificada. Os destaques são as frutas tropicais (açaí, acerola, melão, etc.) e produtos processados ou semiprocessados, como derivados de banana, fécula de mandioca, castanha-de-caju, especiarias (canela, guaraná) e óleos essenciais. E ainda gordura vegetal, açúcar, soja, café e suco de laranja, entre outros. Para ela, "o grande potencial para a exportação está nos produtos processados, em que há maior valor agregado. Mas esse segmento ainda é incipiente e apresenta poucas opções de oferta".

Dados do Centro Internacional de Comércio (ITC), organismo vinculado à Organização Mundial do Comércio (OMC) e à Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), cujo objetivo é auxiliar nações em desenvolvimento a exportar, apontam perspectivas de negócios de produtos orgânicos no varejo de U$ 31 bilhões até 2005. Segundo informações da Apex-Brasil, no Japão o mercado de artigos certificados gira em torno de US$ 450 milhões e o consumo de produtos orgânicos e naturais vem crescendo a uma média de 20% ao ano. O mesmo ocorre em países como Alemanha, França e Suíça.

Legislação

Os planos dos produtores de orgânicos voltados para a exportação poderão ser mais facilmente concretizados a partir da regulamentação, prevista para o início do próximo ano, da lei 10.831, assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro passado, e da criação, em março, da Câmara Técnica de Agricultura Orgânica.

Na visão de Liliane Rank, da Apex-Brasil, "a lei cria e regula toda uma sistemática que facilitará o relacionamento com o mercado externo. Poderemos requerer equivalência da legislação com outros países e, como conseqüência, os trâmites de exportação serão mais facilitados".

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), organizações não- governamentais (ONGs) e outras entidades representativas do setor estão se mobilizando para discutir os termos da regulamentação. Segundo o engenheiro agrônomo Marcelo Laurino, fiscal federal agropecuário que vem coordenando as reuniões, a grande expectativa em relação à lei é que a certificação emitida pelo governo brasileiro tenha credibilidade internacional. Para isso, explica, seria necessário que ela correspondesse às diretrizes para produção de orgânicos estabelecidas no "Codex Alimentarius" pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

O ponto polêmico da nova lei está contido em seu artigo 3º, parágrafo 1º, que faculta aos agricultores familiares a certificação para comercialização direta aos consumidores desde que, inseridos em processos próprios de organização e controle social, sejam capazes de garantir a qualidade de sua produção e estejam previamente cadastrados no órgão fiscalizador. Na prática, isso significa que os agricultores fiscalizariam uns aos outros, apoiados numa associação de produtores, e seriam liberados de pagar pela certificação para a venda direta, em feiras.

A medida, obviamente, pode significar perda de mercado para as certificadoras. Porém, para Fernando Augusto de Souza, presidente da Associação do Agronegócio Orgânico Certificado (Aeco), entidade que congrega diversas empresas de certificação, a maior preocupação são as fraudes. "A idéia pode ser muito positiva, mas não podemos ser inocentes a ponto de achar que não vai haver algum tipo de burla no processo", afirma ele.

André Malzone, presidente da certificadora da Associação de Agricultura Orgânica (Aaocert), relata uma experiência no sul do país, onde uma comunidade rural típica, de tradição associativista, construiu uma relação comercial direta entre o agricultor e o cliente baseada em confiança e responsabilidade. "A nosso ver, essa realidade, originada da cultura européia, não pode ser desconsiderada. Sob o ponto de vista dos ideais do movimento orgânico, o procedimento é legítimo."

Mercado interno

A despeito das controvérsias, a certificação também já é uma realidade bastante presente para os produtores que vendem internamente. As grandes redes de supermercados em geral exigem a garantia fornecida por uma determinada empresa certificadora, que nem sempre é aquela que o fornecedor já havia contratado, o que o obriga a arcar com nova despesa para não perder o cliente. Essa dificuldade deve ser eliminada com a regulamentação da lei 10.831, que tornará equivalentes todas as certificações emitidas por entidades autorizadas.

No Parque da Água Branca, em São Paulo, acontece nas manhãs de sábado uma feira de produtores vinculados à Associação de Agricultura Orgânica (AAO). Lá todos os produtos são certificados. Os preços são altos, embora mais em conta do que os oferecidos em grandes redes de supermercados, que geralmente impõem uma margem muito maior de lucro. E os compradores, cativos, aproveitam para se encontrar.

Quando perguntado por que esses alimentos seriam tão caros, Roberto Ribeiro Machado, produtor que comercializa verduras, diz que é preciso valorizar o trabalho do agricultor. E brinca: "Caro é o remédio que se compra na farmácia".

Na feira, predomina a venda de legumes, verduras e produtos processados como queijos, doces, pães, bolos, etc. Já a oferta de frutas é escassa. André Malzone informa que existe boa produção delas no norte e nordeste, em função do clima, dos incentivos de cada estado e do empreendedorismo de agricultores e empresas voltadas ao comércio exterior. "Mas trazer essas frutas para o sudeste, onde há maior mercado para os produtos orgânicos, ainda é um desafio, pois a logística tem alto custo e é complicada."

Nas regiões sul e sudeste do Brasil, segundo Malzone, existem culturas de banana, mamão, laranja, morango e uva. Mas, na maioria das vezes, a produção é pequena e voltada ao mercado local, enquanto as maiores visam à exportação. "A escassez de frutas e de cereais orgânicos deve-se basicamente à falta de informações técnicas, ao maior ciclo de produção, ao alto custo do investimento inicial para a implantação da cultura e ao risco de insucesso, mais elevado quando comparado ao das hortaliças", conclui.

Vozes contrárias

Antítese da produção de alimentos geneticamente modificados, a agricultura orgânica apresenta perspectivas de desenvolvimento que não estão agradando a diversos setores. Um exemplo é o artigo veiculado no jornal "O Estado de S. Paulo", no dia 8 de maio: "O Custoso Malogro dos Alimentos Orgânicos", assinado pelo presidente da Sense About Science, Dick Taverne. O autor afirma que a Food Standards Agency (Agência de Padrões Alimentícios) se recusa a endossar alegações em favor dos alimentos orgânicos, pois entende que eles "não são significativamente diferentes, em termos de segurança e nutrição, dos convencionais" e "não se tem notícia de mortes atribuídas a resíduos de pesticidas ou a alimentos transgênicos". Cita a existência de estudos que demonstram que "os efeitos sobre o meio ambiente dependem do estilo de administração e não do sistema agrícola" e que "o mais benéfico (...) é a agricultura de baixo impacto, possível pelo cultivo de plantações geneticamente modificadas". E ressalta ainda que a maior desvantagem dos orgânicos é a ineficiência. Eles "custam mais caro porque seu rendimento médio é 20% a 50% menor", o que é relevante diante da necessidade de "triplicar a produção de alimentos nos próximos 50 anos para alimentar um adicional de mais 3 bilhões de pessoas".

No entender de Geraldo Stachetti Rodrigues, chefe adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Meio Ambiente, não se pode afirmar que qualquer alimento orgânico seja melhor que o equivalente convencional. "Todos são bons desde que produzidos adequadamente. Mas é preciso ponderar que o cultivo orgânico traz menor risco ao produtor, uma relação mais justa com o mercado e menor dependência de tecnologia de alto impacto. Seus seguidores se preocupam com a cadeia de produção como um todo, pensando na conservação da água e da biodiversidade."

Rodrigues afirma que, "mesmo que os pesticidas sejam considerados aceitáveis pelos consumidores, é preciso avaliar os riscos que esses produtos impõem ao homem do campo. Há necessidade do uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), e se eles não estiverem disponíveis (e muitas vezes não estão) o risco é muito grande". E acrescenta: "Ao mesmo tempo em que são freqüentes as notícias sobre agricultores intoxicados por pesticidas, o mesmo não ocorre com os que cultivam orgânicos".

Para ele, o sistema de baixo impacto mais benéfico é justamente a agricultura agroecológica, que não necessariamente é menos produtiva. Pelo contrário: "Existem produções orgânicas tão eficientes quanto a melhor convencional. A questão é de gerenciamento. E nisso a agricultura orgânica leva vantagem, pois tem de ser certificada". Em sua opinião, a quantidade de alimentos produzidos no mundo é suficiente. "O problema crucial é a distribuição e a capacidade de compra."


Os orgânicos na Internet

Os interessados em agricultura orgânica podem conseguir mais informações nos sites das seguintes entidades:

• Planeta Orgânico: www.planetaorganico.com.br

• Grupo de Agricultura Orgânica: www.sitiodogao.com.br

• Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae): www.sebrae.com.br

• Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (Faesp) / Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar): www.faespsenar.com.br

• Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha de São Paulo (AHK): www.ahk.org.br/organicbrasil/index.asp (informações sobre a participação de produtores brasileiros na BioFach – Feira Internacional de Produtos Orgânicos)

 

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