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Modernidade analisada


Octavio Ianni / Foto: Sidney Corrallo

Autor decifra enigmas e contradições da atualidade

CECÍLIA PRADA

O sociólogo Octavio Ianni, um pioneiro na análise dialética dos enigmas da nossa nacionalidade, dá-nos agora um fascinante estudo das complexas questões que caracterizam o concerto das nações e dos povos do mundo, neste início de milênio. Em seu último livro, Enigmas da Modernidade-Mundo (Civilização Brasileira, 320 páginas), ele investiga em profundidade as contradições mundiais inerentes ao processo de globalização, somando ao conhecimento específico de sua disciplina os judiciosos aportes de especialidades diversas – antropologia, política, história, temas culturais e estéticos. O resultado é uma obra de caráter polissêmico, expressa em um estilo extremamente fluente e agradável, capaz de prender a atenção de uma grande gama de leitores.

Como instrumental de sua reflexão ele parte do elemento "viagem", que como metáfora ou realidade atravessa a história de todos os povos, e focaliza o Novo Mundo – cuja descoberta, ou "invenção", marca o momento em que o homem ocidental se define como senhor nato do cosmo. Com a alteração da geografia e da história, transformam-se radicalmente os quadros de referência da sociedade antiga. É o Novo Mundo "um momento primordial e seminal da modernidade", um enigma "que se reitera periodicamente", um emblema do início de um novo ciclo histórico. Sob vários aspectos parece mesmo um vasto laboratório de modos de ser e devir, pois nasce e se desenvolve sob o signo da modernidade, e esta, para o sociólogo, pode ser vista "como uma espécie de revolução permanente".

Na análise de dicotomias como Ocidente/Oriente, razão/imaginação, Ianni consegue estabelecer os nexos mais sutis e trazer à tona diferenciações, ou contaminações, nunca suficientemente estudadas em controvérsias antigas e periodicamente renovadas. No primeiro caso (Ocidente/Oriente), traça um quadro de todo o processo da modernidade em âmbito mundial, desde a descoberta do caminho das Índias por Vasco da Gama em 1498 até a chegada do "toyotismo" japonês aos Estados Unidos, no final do século 20. Contrapõe o "fundamentalismo ocidental" – construído em quatro séculos de capitalismo multiforme imposto aos países orientais (capitalismo em que inclui o próprio socialismo soviético) – ao fundamentalismo religioso islâmico e revanchista de nossos dias, ressaltando o caráter "em devir" dos dois elementos analisados: não são duas civilizações acabadas, mas dois "processos civilizatórios", pois "cada um desenvolve sua dinâmica interna, modificando-se e recriando-se ao longo da história e ao largo da geografia".

Os diversos aspectos da transnacionalização de nosso tempo, ou globalização, acarretam, segundo Ianni, a ocidentalização do mundo – contrabalançada por processos idênticos vistos como "orientalização, africanização, indigenação". São intrincadas interações socioculturais que ocorrem em todo o planeta e que permitem que a história do mundo contemporâneo seja vista como um gigantesco processo de transculturação – mais "enigmas" que o autor estuda valendo-se de toda a sua erudição, ou define, dando asas ao seu pendor literário, como "capítulos de uma narrativa mais ampla", visto que para ele "o mundo pode ser lido como um texto, uma imensa e babélica narrativa".

Essa fluidez estilística, caracterizada por uma adjetivação exuberante, por vezes até barroca, poderia surpreender em um ensaísta especializado em ciências sociais, em tempo de securas acadêmicas como o nosso. Mas transforma-se, justamente, em trunfo maior de sua obra. Não por nada ele consagra um capítulo à análise da dicotomia razão/imaginação, ciência/arte – desenvolvendo em outros o contraponto entre esses dois domínios, uma controvérsia muito antiga e quase insolúvel pela multiplicidade de elementos que incorpora. Por esse motivo Ianni limita seu exame às diferenças e semelhanças entre dois tipos de "narrativas", a sociológica e a literária.

Como o diálogo entre a sociologia e a literatura envolve vários enigmas de caráter fundamental, o autor procura especificá-los seguindo sempre a técnica dos pares complementares: texto e contexto, sociologia e ficção, literatura e conhecimento, tipos e tipologias, narração e fabulação, categorias e metáforas, estilos de pensamento e visões do mundo. E se o processo de "narrar" é comum não só ao sociólogo e ao escritor, mas também ao historiador, ao filósofo e outros cientistas sociais, e até mesmo ao poeta, ao pintor, ao cineasta e outros artistas, genericamente pode-se estabelecer que a literatura prioriza a compreensão, enquanto as ciências sociais enfatizam a explicação.

É nesse ponto da sua viagem pelos enigmas da modernidade que Octavio Ianni se desdobra em toda a riqueza de uma erudição humanística acumulada em mais de 40 anos de produção teórica. Na grande literatura de todos os tempos, ele busca exemplos permanentes de "narrativas fundadoras", capazes de inaugurar uma nova visão de mundo – aptas a transmitir em um instante o insight exato sobre a realidade de um fenômeno social, de uma época histórica, de uma tendência profunda do ser humano, enquanto os partidários da racionalidade científica a custo tropeçam pelos áridos caminhos da definição e do conceito. Nesse sentido, valem muitos dos capítulos do livro também como verdadeiras aulas de teoria literária.

Como se não fosse ainda bastante, o seu exame da "linguagem" como elemento fundamental abrange todo o período que vai da Renascença ao Romantismo/Realismo, embrenhando-se depois pelo "giro lingüístico" do século 20. Debates lingüísticos abriram, no decorrer da modernidade, novos horizontes à literatura, às artes, à própria filosofia e às ciências sociais. No último quartel do século 20 a humanidade estarrecida assistiu ao estabelecimento de mais um poder supranacional – o império da comunicação. E se Gramsci já contrapunha ao renascentista "Príncipe" de Maquiavel o "moderno Príncipe" encarnado no partido político, e questionava as figurações fundamentais da política do seu tempo, no mundo de hoje é o "Príncipe eletrônico" que reina absoluto – "uma figura política nova e diferente de todas as outras, passadas e presentes", já que capaz de atuar diretamente sobre o social e coletivo.

Dando expressão mais uma vez a seu desejo de metaforizar em escala universal, Octavio Ianni define o século 20 "como uma vasta, complicada e infindável controvérsia sobre a linguagem, em todos os seus aspectos" – da qual os paradoxos da modernidade e da pós-modernidade emergem, caracterizando estilos diversos de pensamento. O "romantismo" de ideais unificava o discurso da modernidade, baseado na mímesis; na obra de importantes criadores do passado, de Shakespeare e Cervantes, Maquiavel e Bacon, Rousseau, Goethe, aos grandes pensadores e romancistas do século 19, como Comte, Marx, Dickens, Poe, Tolstoi e Sarmiento, entre muitos outros, o "estilo romântico" impunha a crença na razão e nos processos sociais, no conhecimento e na emancipação política e moral. Ao passo que, fragmentário, paroxístico, expressionista, o discurso do homem da pós-modernidade tende para o descolamento, para o virtual e o simulacro, para a desconstrução ad infinitum. Tudo o que Nietzsche já havia preconizado no século 19 desenvolve-se no século 20 nos escritos de Kafka, Borges, Wittgenstein, Beckett, Musil e James Joyce. Mas se os físicos já vêem um "sistema" no próprio caos, aproveitando a riqueza dos revoltos elementos inseridos no grande questionamento do século 21 a pós-modernidade realiza "uma travessia que acena para a terceira margem do rio, envolvendo implicações ontológicas e epistemológicas".

Nessa travessia, nesse projeto, ressoa a grande pergunta colocada por Italo Calvino: "Em que língua o livro do mundo está escrito?" – por ele próprio respondida: "O nosso mundo cotidiano parece estar escrito num mosaico de línguas, como uma parede coberta de grafites, cheia de rabiscos sobrepostos, como um palimpsesto [...], uma combinação de alfabetos, citações heterogêneas, gírias e impressos de computador". Da destemida análise dessa complexidade de linguagens várias, virá a salvação, pois – como nos diz Ianni –, "desde que se dê nome ao caos, ou à nebulosa, tem-se a impressão de que se dá o primeiro passo para o esclarecimento, a compreensão, a explicação, a emancipação e a redenção".

O ideário humanista e iluminista pode perfeitamente encontrar um abrigo, neste mundo de caótica pós-modernidade, na vastidão daquela biblioteca de Babel – que profetas como Borges, García Márquez, Thomas Mann, Foucault, Derrida, Habermas, Umberto Eco e tantos outros teimam em preservar.

 

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