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A depressão e os idosos


Foto: Eron Silva

Tratamento adequado pode melhorar qualidade de vida

ABRAHAM PFEFERMAN
(Professor adjunto do Departamento de Medicina e Cardiologia da
Escola Paulista de Medicina da Unifesp)

Como diz um antigo e popular provérbio, "a expressão facial é o grande delator do estado de espírito" de uma pessoa. Pode demonstrar alegria, tristeza, dor ou desespero. O indivíduo em idade avançada carrega uma história de vida que influi em seu comportamento, bem como fatores genéticos que podem predispô-lo a quadros depressivos. Não são exatamente as rugas ou imperfeições de pele que refletem o que se passa nas profundezas de sua alma.

Antes, porém, de entrar no assunto, deve-se fazer cuidadosamente a distinção entre tristeza e depressão, como bem define Raul Gorayeb, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Tristeza é um sentimento normal diante de determinadas circunstâncias da vida, que não costuma ser de longa duração, a ponto de não causar grandes complicações no cotidiano e não comprometer a maior parte dos relacionamentos. Já a depressão faz com que a pessoa idosa apresente sentimentos de tristeza geralmente sem razão aparente, mas que chegam a perturbar sua rotina de vida muitas vezes com respostas físicas, e que podem atingi-la organicamente. Pacientes com insuficiência cardíaca, por exemplo, têm sua sobrevida acentuadamente reduzida com a depressão.

A linha que separa a tristeza e a depressão é tão sutil que, segundo Gorayeb, muitos correm ao consultório atrás de uma pílula mágica que cure seu mal, sem o conhecimento adequado da situação em que vivem. Na verdade, o idoso depressivo foge dos sintomas da doença e evita principalmente o psiquiatra, pois considera o diagnóstico vexaminoso. "Vocês acham que estou louco?" é o argumento mais freqüente que apresenta à família ou aos amigos.

Hoje em dia, graças a minuciosos exames de imagens cerebrais, a medicina nuclear tem contribuído para o entendimento dos mecanismos biológicos envolvidos na depressão. Quando se trata de pacientes idosos, porém, ainda há dificuldades e desafios de diagnóstico para médicos clínicos, inclusive psiquiatras ou psicólogos. Sabe-se atualmente que essa doença é o resultado de uma desordem química tanto na formação das substâncias cerebrais, a serotonina e a noradrenalina, como em sua transmissão para a célula nervosa através dos neurotransmissores. No indivíduo normal, elas circulam livremente, propagando os estímulos. No paciente deprimido, por razões ainda desconhecidas, elas se tornam escassas e são recaptadas pelas células.

A depressão no idoso, em suas diferentes apresentações, sem dúvida nenhuma é um problema de saúde pública, de alta incidência em pacientes acima de 65 anos. Freqüentemente associada a condições orgânicas, influi negativamente em sua qualidade de vida, visto que as grandes depressões carregam forte potencial de suicídio.

A depressão é, de um modo geral, uma síndrome polimórfica de variadas nuances clínicas, que incluem a grande depressão, o transtorno distímico e o transtorno de ajustamento (ver quadros abaixo), este último com intensa carga depressiva. A melhor solução é o reconhecimento e diagnóstico precoce, seguido do imediato início de tratamento, que oferecem aos pacientes a oportunidade de aprimorar seu padrão de vida, mantendo um nível adequado de função social e independência e evitando o sofrimento ou morte prematura.

Sintomas da grande depressão

1. Humor deprimido
2. Perda de interesse
3. Perda de peso ou alteração do apetite
4. Insônia ou sonolência exagerada
5. Agitação psicomotora ou retardo motor
6. Perda de energia ou fadiga
7. Sentimento de culpa e de desvalorização
8. Dificuldade de concentração e de decisão
9. Pensamentos suicidas

Fonte: Michael Serby, MD – "The Mount Sinai Journal of Medicine", janeiro/2003

Sintomas da depressão distímica

1. Depressão de humor
2. Inapetência ou fome exagerada
3. Insônia e sonolência
4. Falta de energia e fadiga
5. Baixa auto-estima
6. Dificuldade de concentração e de decisão
7. Sentimento de desesperança

Fonte: Michael Serby, MD – "The Mount Sinai Journal of Medicine", janeiro/2003

Segundo George Alexopoulus, entre a população geriátrica a grande depressão atinge 0,4% dos homens e, devido a condições socioculturais e biológico-hormonais, 1,4% das mulheres. Esses números correspondem a 1% da população como um todo. Também entre os idosos, 2% sofrem de desordem distímica, 4% de desajustamento com depressão de humor e cerca de 15% apresentam sintomas depressivos que não preenchem os critérios específicos da doença relacionados no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV).

Dickens, um precursor

Para ilustrar todas essas dificuldades, o sucesso do diagnóstico, o tratamento e a conseqüente reabilitação social, vale a pena invocar o famoso escritor inglês Charles Dickens, cujas obras sempre estiveram ligadas à medicina. A obra que se refere ao assunto foi publicada em Londres em 1843, com o nome A Christmas Carol (Canção de Natal), e foi magnificamente comentada pelo psiquiatra e geriatra Gene Cohen, da George Washington University, na revista "Geriatrics" de dezembro de 2002.

O personagem do livro, conhecido como Ebenezer Scrooge, é descrito como um homem melancólico, de espírito misantropo, que sentia prazer em tornar infelizes os que o cercavam. O frio realçava velhas manias, como pressionar o nariz pontudo, enrugar as bochechas, endurecer o andar, e tornava os olhos vermelhos e azulava os lábios, além de deixar sua voz irritantemente manhosa.

Esses sinais e sintomas sugerem diferentes diagnósticos. Por exemplo, o frio dentro dele seria o hipotiroidismo (mau funcionamento da tiróide), o nariz pressionado a hipotermia, comum no inverno, a postura e o andar endurecido uma artrite, e os olhos vermelhos, conjuntivite ou glaucoma. Ou será que a qualidade de vida desse homem era simplesmente produto de um ser amargurado, que distilava seu ódio pelo mundo afora?

Essa situação evoluiu por muito tempo. Três médicos se juntaram para estudá-la e chegaram a imaginar um núcleo central que produzia diversos sintomas. Decidiram assim programar visitas domiciliares ao paciente, feitas por equipe multidisciplinar – cem anos antes que isso fosse estabelecido pela comunidade médica –, e resolveram aplicar-lhe psicoterapia psicodinâmica – cinqüenta anos antes de A Interpretação dos Sonhos, a obra clássica de Sigmund Freud, de 1899. Resultado: o paciente respondeu bem ao tratamento, recuperou o humor, reduziu a hostilidade e tornou-se emocionalmente aberto aos outros, demonstrando generosidade.

O que Charles Dickens quis demonstrar com seu texto? Primeiro, como a depressão do idoso pode ser detectada. Depois, que ela freqüentemente se manifesta através de sinais somáticos e/ou comportamentais. Mostrou também que a idade avançada não é um obstáculo à intervenção adequada e revelou o papel e o valor da psicoterapia para essa faixa etária.

Mais: o livro prova que o auxílio ao idoso não é tarefa de um ou outro especialista, nem uma obrigação da comunidade, mas, sim, de grupos de interesse. Lembra igualmente que nunca é tarde na vida para fazer com que um paciente idoso saia da engrenagem que o mantém desajustado. O que era, assim, atribuído à idade nada mais é do que fruto da depressão.

Daniel Plotkin, por exemplo, demonstrou em 1985 que a depressão é uma das explicações para a queixa de falta de memória em pacientes idosos que jamais a tiveram antes. São lapsos normais, que o idoso relaciona à idade.

De fato, pessoas idosas manifestam os sintomas depressivos com queixas físicas ou comportamentais, muito mais que perda de humor. É muito importante, portanto, que se possa acabar definitivamente com o mito de que a depressão é o acompanhante natural da idade. Ou com aquela expressão ultrapassada, "o velho está esclerosado". Trata-se de uma visão retrógrada que impede que a depressão do idoso seja reconhecida em tempo de ser tratada.

Geralmente, os pacientes se negam a ser apresentados a seu médico como deprimidos, e assim o problema normalmente não é detectado em consultas rotineiras. Por essa razão a anamnese deve ser o mais minuciosa possível, pois o próprio paciente procura fugir daquele diagnóstico. Um interessante estudo revelou que, entre um grupo de idosos severamente deprimidos que cometeram suicídio, 70% estiveram com o médico nas três semanas que antecederam o fato.

Terapia

Nos casos de depressão de idosos, os cuidados tomados em relação ao diagnóstico devem manter-se no tratamento. O arsenal terapêutico é vasto, mas os efeitos colaterais não são desprezíveis. O médico criterioso deverá monitorar seu paciente até descobrir o medicamento correto e a dose mais eficaz, que permitam reintegrá-lo à família e à sociedade.

É importante lembrar que nenhum medicamento é isento de conseqüências adversas, e cabe ao médico acompanhar o efeito de cada antidepressivo, optando por usar o que causar menor ação colateral (ver quadro abaixo).

Tipos de antidepressivos

Tricíclicos Inibem a recaptação da serotonina e da noradrenalina, mas têm efeitos colaterais
Inibidores de monoaminoxidase Impedem a ação da enzima MAO no cérebro, que destrói a serotonina e a noradrenalina (exemplo: Aurorix)
Inibidores de recaptação da serotonina Atuam especificamente no controle da serotonina.
Têm baixo nível de efeitos colaterais (exemplos: Prozac, Cipramil)
Dupla ação Agem como os tricíclicos, com menos efeitos colaterais (exemplo: Efexor)

Como no caso do personagem de Charles Dickens, a psicoterapia para idosos foi colocada em dúvida por muito tempo, mas estudos recentes indicam a obtenção de efeitos benéficos por meio do que se chama terapia cognitiva. Sua aplicação começou na década de 1970 e seu foco são os pensamentos negativistas do paciente. Ela procura combater o pânico e o medo de enfrentar o cotidiano, e ajuda a abrir a cortina da realidade, muitas vezes deturpada pelo próprio paciente.

A associação, portanto, dessas duas intervenções terapêuticas, química e cognitiva – esta uma terapia breve –, tem apresentado resultados animadores, e consegue transformar ou ao menos reduzir o impacto social e familiar dessa fase na vida do idoso.

Não faltam razões para enfatizar o significativo progresso da ciência ao intervir farmacologicamente nos casos de depressão. Entretanto, e acima de tudo, é importante reconhecer que não só no Brasil, mas em todo o mundo, a população idosa vem crescendo de maneira expressiva. A faixa que atinge idade superior a 75 anos é muito grande, e esse avanço está relacionado diretamente ao progresso da ciência e do controle de doenças.

Não há governo no mundo, porém, que tenha mostrado habilidade para enfrentar essa nova realidade, apesar de revelar preocupação com isso. No Brasil, apesar das leis trabalhistas, o salário idoso (old pension) nem sequer existe, e a estrutura previdenciária enfrenta os problemas que todos conhecemos. As perspectivas de o governo oferecer a essa faixa etária alguma assistência específica em relação à depressão ainda estão muito distantes. Acreditamos que essas pessoas só poderão contar com o envolvimento da sociedade e de grupos especialmente treinados para essa tarefa.

É o momento de refletir sobre isso, inclusive porque daqui a pouco todos nós estaremos chegando lá.

 

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