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Violência silenciosa
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Exploração e abuso sexual de menores desafiam políticas públicas
ALOISIO MILANI
Aos 11 anos, Patrícia*, que nem sequer menstruou, já pede anticoncepcional ao ginecologista. Tem um corpo miúdo e feitio de criança. "Mas já sou experiente", orgulha-se ao falar de si para as amigas em Santos, litoral sul de São Paulo. A menina admite que perdeu a virgindade aos 9 anos com um "namoradinho" oito anos mais velho. Desde então, segundo ela, pratica sexo por vontade própria.
Patrícia diz que recebe convites de amigas para fazer programas sexuais perto do cais do porto de Santos. Jura que nunca os aceitou, embora continue pedindo preservativos com freqüência aos técnicos do projeto Sentinela, programa do governo federal de assistência a crianças e adolescentes vítimas de abuso e exploração sexual.
Em casa, a menina vive com a mãe e outras três irmãs. Na época em que seu pai morava lá, a bebida tornava-o violento. Alcoólatra, ele agredia freqüentemente a esposa. Embora recebesse um bom salário, o vício e as amantes consumiam todo o dinheiro. Quando o casal se separou, a mãe se viu sobrecarregada de obrigações e afazeres. Patrícia, então, passou a perambular pelas ruas, e não era repreendida por isso. Chegou a ficar quase uma semana fora de casa sem dar notícias.
O tio, irmão de sua mãe, tentou abusar sexualmente de Patrícia e de suas irmãs – uma de 17, outra de 15 e até da caçula de 6 anos. Mesmo com as reclamações das filhas, a mãe, que passa a maior parte do dia trabalhando como faxineira, não impediu que ele voltasse outras vezes à sua casa e repetisse os atos.
O tio só foi denunciado depois que a patroa da mãe de Patrícia convenceu-a a procurar o conselho tutelar. A queixa resultou num boletim de ocorrência. Porém, como a mãe não levou as filhas para fazer a perícia no Instituto Médico Legal, a investigação não teve andamento.
Na opinião dos assistentes sociais, a menina encontra-se vulnerável e talvez até esteja sofrendo exploração sexual. "Muitas das garotas atendidas não reconhecem o abuso ou exploração. Às vezes contam o que está acontecendo a um parente ou a algum dos técnicos, mas todas sabem claramente que só estão aqui porque sofreram violência sexual", explica Valéria Boreli, educadora do Sentinela.
Sinal de alerta
Santos foi a primeira cidade do estado de São Paulo a firmar convênio com o programa Sentinela, garantindo assim o repasse de recursos do Ministério da Assistência Social a duas entidades de atendimento: a Associação Santista de Pesquisa, Prevenção e Educação (Asppe), que cuida de casos de abuso, e o projeto Meninas de Santos, da prefeitura municipal, específico para crianças e adolescentes prostituídas.
Só em 2003, o município atendeu 94 ocorrências de abuso sexual e outras 45 de exploração sexual. Nesse último caso, todas as vítimas eram garotas de 11 a 18 anos. Durante o acompanhamento psicológico que se seguiu, concluiu-se que cerca de 50% das meninas exploradas sexualmente já haviam sofrido algum tipo de abuso anterior, em geral dentro de casa.
"Nosso objetivo é oferecer alternativas ao contexto social em que elas vivem. Procuramos prestar serviços terapêuticos tanto para as vítimas quanto para as famílias, através de grupos de discussão da sexualidade, trabalho de expressão corporal e oficinas de dança e artesanato", diz Valéria.
As primas Alice* e Marcela*, de 14 e 16 anos respectivamente, participam da oficina de pintura às quintas-feiras. Elas moram juntas e chegaram ao Sentinela por indicação do conselho tutelar. Segundo denúncia da mãe de Alice, as meninas estavam marcando programas sexuais por meio de um telefone público localizado no morro da Nova Cintra.
"A gente foi criada muito presa, agora não tem mais jeito, começamos a sair e gostamos de namorar também", tenta justificar Marcela, a mais desinibida delas. Apressadamente e aos prantos, a garota conta como eram as brigas que a mãe tinha com seu pai: "Hoje ela toma remédio e ficou louca depois de tanto apanhar dele. Na vida, acho que todo problema de menina é causado pelo pai".
Num dia frio de julho, com temperatura de 14°C, Alice vestia minissaia e Marcela, um shortinho minúsculo. Um assunto recorrente na conversa de ambas era sexo e homens. Os técnicos e psicólogos do projeto não hesitam em falar no envolvimento com prostituição: "Geralmente leva tempo para que elas assumam sua condição, porque nem sabem o que é exploração sexual", explica Maurício Rebouças, coordenador do Sentinela em Santos.
Com Maria Clara*, de 21 anos, é diferente: ela fala sem travas. "Vivi no mundo das drogas desde os 14 anos, quando saí de casa porque meu padrasto queria abusar de mim e minha mãe não fazia nada", lembra a jovem. Ela conta que, nesse período, fazia programas sexuais em troca de crack ou comida. "Fiquei grávida aos 14 anos, e depois aos 16. Meu primeiro filho morreu, e a segunda teve paralisia", diz, referindo-se aos efeitos das drogas durante a gestação. "Perdi a guarda da minha filha porque fiquei três dias sem ir vê-la no hospital. Hoje ela tem 4 anos e está numa clínica para deficientes mentais em São Paulo. Nunca pude visitá-la", conta, desolada.
Maria Clara, Alice, Marcela e Patrícia são algumas das meninas exploradas sexualmente que agora têm uma oportunidade de abandonar essa vida de violência. Mas a prostituição infantil na cidade, que tem como clientes principalmente caminhoneiros e estivadores, é antiga. "Isso ainda não acabou. Crianças e adolescentes fazem sexo até por comida ou por pequenas quantias, como R$ 5", afirma Maurício. "Hoje, percebemos que a exploração sexual em Santos não se restringe às garotas que fazem programas na região do porto. Existe um fluxo grande de meninas que chegam do Paraná, e sabemos que elas estão envolvidas com uma rede de exploração bem estruturada, que utiliza inclusive documentos falsos", acrescenta.
Mapeamento da violência
No ano passado, o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) divulgou um estudo com o mapeamento da movimentação de mulheres, crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual (ver texto abaixo). "No sudeste, os principais focos de tráfico de crianças e adolescentes estão no Rio de Janeiro e em Minas Gerais", afirma Welinton Pereira, da entidade Visão Mundial, que coordenou a pesquisa na região.
O estudo sobre tráfico de seres humanos servirá de base para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado e da Câmara dos Deputados que investiga a exploração sexual no país. É a segunda vez que o Parlamento procura determinar as causas nacionais do problema. A primeira aconteceu em 1993, somente na Câmara Federal, e teve a participação da atual ministra da Assistência Social, Benedita da Silva.
No levantamento realizado naquela época, foram registradas características como ligações com o narcotráfico, exploração do turismo sexual, ausência de políticas de atendimento e impunidade. Segundo a relatora da atual CPI, deputada Maria do Rosário (PT/RS), "a comissão de 1993 conseguiu uma mobilização importante, mas o Estado pouco fez. Não há serviços eficientes de apoio às vítimas e às famílias em nenhuma das áreas crônicas".
Embora tenha havido avanços significativos na formulação de políticas públicas, como a elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil (diretrizes estratégicas) ou a implementação do Sistema de Informações para a Infância e Adolescência (banco de dados vinculado aos conselhos tutelares), ainda falta transformá-los em ações práticas e eficazes. E isso a CPI apenas indica, pois só o Estado pode fazer. Até agora, propostas como a do ministro da Educação, Cristovam Buarque, que pretendia conveniar as vítimas de exploração sexual ao Bolsa-Escola, nem saíram do papel.
"Na CPI, trabalharemos em quatro eixos: na investigação de denúncias, no levantamento das políticas públicas existentes, na atualização da legislação para eliminar brechas que permitam a exploração e, por último, na difusão na sociedade de uma visão menos machista e, ao mesmo tempo, mais protetora das crianças e dos adolescentes", explica Maria do Rosário.
Em julho, a CPI e o Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro efetuaram uma diligência no bairro carioca de Copacabana para averiguar denúncias de uma rede que promovia programas sexuais com crianças por R$ 1,99. "A população da cidade ficou revoltada com esse preço, mas, na verdade, não importa se a criança é explorada por R$ 1 ou R$ 200. Dá no mesmo, a violência é igual", afirma Maria do Rosário.
As próximas diligências dos parlamentares acontecerão nas regiões norte e nordeste. Os coordenadores regionais das pesquisas do Cecria, em depoimentos sigilosos aos deputados, relataram detalhes da ação de aliciadores e agressores nos casos de exploração sexual. "Mostramos como funcionam as redes criminosas. Agora, depende da disposição dos parlamentares a articulação do combate", diz Welinton, um dos três pesquisadores convidados a depor.
Desafio público
O projeto Sentinela começou seus trabalhos em 2001, durante a administração de Fernando Henrique Cardoso, ainda sob a competência do antigo Ministério da Previdência e Assistência Social, que agora foi dividido em duas pastas, pelas quais respondem os ministros Ricardo Berzoini e Benedita da Silva. De qualquer forma, a ação do programa deve ganhar força no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que demonstrou essa intenção ao firmar seu compromisso prioritário de combater a fome e a exploração sexual de crianças.
O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, pediu ao presidente ainda em abril a liberação de mais recursos para expandir as políticas de atendimento. Segundo estimativas do ministério, seriam necessários R$ 40 milhões por ano para estruturar o Sentinela por todo o país. Neste ano, porém, a verba prevista no orçamento federal é de apenas 25% desse montante.
A novidade é que os recursos para o programa passam a fazer parte do Plano Plurianual (PPA). Isso não acontecia no governo anterior, quando os convênios municipais que permitiam seu funcionamento tinham de ser renovados anualmente, o que gerava incerteza sobre sua continuidade.
Presente em 315 cidades brasileiras, o Sentinela precisaria ser complementado com o fortalecimento dos conselhos tutelares, instituições previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente e que são responsáveis pelo acompanhamento e proteção dos direitos da infância. Os conselhos só estão presentes em 55% dos municípios, segundo levantamento feito em 2001 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Ministério da Justiça.
O último balanço nacional dos atendimentos do Sentinela contabilizou 9.992 casos de abuso e 4.019 de exploração sexual em 212 cidades brasileiras. Só na faixa etária de 7 a 14 anos, 1.706 meninas eram exploradas. Em vários municípios, como Fortaleza, no Ceará, a situação era pior do que se imaginava: o número estimado de vítimas revelou-se três vezes maior.
"Sabemos das dificuldades do novo governo, mas ainda assim estamos otimistas", afirma Neide Castanha, coordenadora do Cecria e presidente do Comitê Nacional Permanente de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. "A própria CPI é prova disso, pois tem o apoio investigativo do secretário especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e do ministro da Justiça. O governo reconhece a existência do problema e incluiu o combate em suas ações programáticas", diz.
* Nomes fictícios
Trilhas do tráfico
O Brasil não possui uma pesquisa nacional sobre o número de crianças e adolescentes explorados sexualmente. E talvez nunca tenha dados precisos sobre a questão, porque se trata de uma forma de violência silenciosa, pouco denunciada e, por vezes, até socialmente aceita. Mas o enfrentamento do problema exige diagnósticos que tracem perfis das ocorrências no país, algo como uma geografia da exploração sexual.
Nesse desafio, a sociedade civil organizada está muito à frente das políticas do governo. No ano passado, um conjunto de organizações não-governamentais (ONGs), sob a coordenação do Cecria, reuniu 130 pesquisadores de 20 estados brasileiros para identificar detalhes sobre o tráfico de crianças, adolescentes e mulheres para fins de exploração sexual.
A pesquisa permitiu comprovar a relação direta entre o tráfico de seres humanos e o crime organizado – tráfico de drogas, falsificação de documentos e lavagem de dinheiro. "O estudo desloca a compreensão do fenômeno, antes centrada apenas na relação vítima/agressor, para o contexto maior das redes organizadas de exploração comercial do sexo", diz Neide Castanha, coordenadora do Cecria.
O relatório final permitiu mapear 110 itinerários nacionais e 131 internacionais, o que mostra, em números, que o tráfico interno é tão representativo quanto o internacional. Dentro do país, crianças e adolescentes são as maiores vítimas, enquanto para o exterior vão mais mulheres adultas.
Do total de rotas pesquisadas, a região norte inclui o maior número (76), seguida pela nordeste (69). "Isso não significa, necessariamente, que essas sejam as piores áreas do país, mas que a pesquisa conseguiu identificar mais detalhes nesses locais ou teve outras fontes de informação como subsídio", explica Neide.
É o caso da capital cearense. No ano passado, a Câmara Municipal de Fortaleza constituiu uma CPI para investigar o turismo sexual. O relatório detalhou o funcionamento de uma rede de agenciamento que envolvia estrangeiros. Quatro italianos (Ricardo Barberis, Luigi Miraglia, Marco Fariolli, Mauricio Borra) foram denunciados, e um deles (Ricardo Barberis) teve o nome citado, ao mesmo tempo, na CPI do Narcotráfico, por ter executado transações ilegais em dólar.