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Relançamentos trazem Glauber Rocha ao centro das atenções
RODRIGO ARCO E FLEXA
"Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça." Essa é a conhecida frase que sintetiza o espírito do cinema do baiano Glauber Rocha (1939-81), autor de filmes internacionalmente reconhecidos como obras-primas, como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967). Admirado por diretores consagrados como Martin Scorsese, Jean-Luc Godard e Roberto Rosselini, Glauber é considerado o mais importante cineasta brasileiro. No início dos anos 60, ao lado de outros jovens realizadores, liderou o chamado Cinema Novo, movimento cinematográfico nacional inspirado nas vanguardas européias do pós-guerra, como o Neo-Realismo italiano e a Nouvelle Vague francesa.
Mais de 20 anos depois de sua morte, a obra de Glauber Rocha ainda é uma referência capaz de influenciar as diferentes maneiras de filmar, no Brasil e no mundo. É o que demonstra a chegada ao mercado de fitas, DVDs, livros e estudos que colocam, mais uma vez, sua vasta produção no centro dos debates sobre a arte da imagem em movimento.
Filmes restaurados
Para alegria dos cinéfilos, a RioFilme e a produtora Versátil Home Video assumiram um ambicioso projeto de lançamento em DVDs duplos de praticamente todos os longas e curtas-metragens do cineasta, explorando os recursos que essa nova tecnologia oferece. Em dezembro de 2002, foi editado o título inicial da coleção, Deus e o Diabo na Terra do Sol, com som e imagem restaurados, além de inúmeros materiais extras, como entrevistas, comentários em áudio e fotos inéditas.
Dentro do projeto, as salas de cinema estarão apresentando também em película os próximos filmes lançados em DVD. E a primeira fita programada é Terra em Transe, que deverá ser exibida no Festival de Cinema de Brasília em novembro deste ano, de acordo com Fernando Brito, diretor de criação da Versátil Home Video.
Considerado por muitos o maior trabalho de Glauber, Terra em Transe aborda as disputas pelo poder no país imaginário de Eldorado, uma espécie de metáfora do Brasil de então, que vivia o acirramento do regime militar. O filme venceu o Prêmio Luis Buñuel do Festival de Cannes de 1967.
A edição da nova cópia de Terra em Transe está sob os cuidados do pesquisador Carlos Augusto Calil, professor de cinema da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Entre os materiais que o pesquisador está garimpando para incluir no DVD está o documentário Maranhão 66, no qual Glauber registra a posse de José Sarney no governo do Maranhão, na década de 60. "Vários elementos desse filme acabaram integrando a composição posterior de Terra em Transe", diz Calil. Outro extra será uma seleção de trechos de uma fita realizada por Joaquim Pedro de Andrade sobre o Cinema Novo. "O trabalho coincidiu com os ensaios e filmagens de Terra em Transe, registrando diversas imagens da atuação de Glauber como diretor."
A proposta do projeto é, ao longo dos próximos dois anos, formar uma coleção de duas caixas de DVDs duplos. A primeira, além dos títulos já citados, será composta também pelas fitas O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), Cabeças Cortadas (1970) e A Idade da Terra (1980). Já a segunda caixa reunirá Barravento (1961), Câncer (1968), O Leão de Sete Cabeças (1970) e Claro (1975), mais materiais raros ou inéditos ainda em processo de pesquisa.
Autor polêmico
As novidades que envolvem a obra de Glauber Rocha abrangem ainda diversas publicações, como estudos sobre o conjunto de sua produção e textos do próprio cineasta – o qual, aliás, redigia incansavelmente sobre os mais variados assuntos, de roteiros a poemas, passando por memórias, artigos e reflexões.
Entre os lançamentos está uma série de cinco livros de autoria do diretor, denominada "Coleção Glauberiana". O projeto é da editora Cosac & Naify e tem a coordenação do pesquisador e escritor Ismail Xavier, professor de cinema da ECA-USP.
O primeiro volume, já nas livrarias, é Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, publicado em 1963. "Esse é um importantíssimo documento sobre a história do cinema no Brasil. É quase um escândalo que só agora, 40 anos depois de sua primeira edição, volte a ser lançado", afirma Ismail Xavier. Em seus textos, Glauber faz uma análise crítica da história do filme nacional, em defesa de um "cinema novo" para o Brasil, voltado para o cotidiano do país e contra os padrões imitados de Hollywood.
O livro foi escrito pelo diretor quando ele tinha apenas 24 anos. "Trata-se de um trabalho altamente provocativo, que polemiza com as tradições do cinema brasileiro, numa aposta de grande risco", diz Ismail Xavier, que assina o prefácio da nova edição. "Afinal, naquele momento, Glauber ainda não havia feito nenhum dos grandes filmes que o tornariam reconhecido internacionalmente", destaca o pesquisador.
O então jovem cineasta, cujo primeiro longa-metragem foi Barravento, defendia em seus textos a realização de um "cinema de autor", que inovasse na linguagem e na maneira de contar uma história, e que ao mesmo tempo tratasse da realidade nacional – numa época em que o Brasil vivia, durante o governo João Goulart, em plena ebulição política, embalado por sonhos de transformação social, cenário que sofreria uma mudança radical com o golpe militar de 1964.
Em síntese, trata-se de uma espécie de livro-manifesto. "É um trabalho programático, combativo e de convocação da nova geração de diretores para que se posicionasse diante das concepções lançadas pelo Cinema Novo", diz Ismail Xavier. "A polêmica era o método de Glauber, uma atitude rara se comparada à dos dias de hoje", acrescenta. No texto, o que não falta são críticas a realizadores e a tentativas de criação de uma indústria nacional de filmes nos moldes de Hollywood, como fez a Vera Cruz, que teve seu auge nos anos 1950.
As investidas do diretor não pouparam modelos cinematográficos de autores nacionais como Mário Peixoto, de Limite (1931), e Lima Barreto, de O Cangaceiro (1952). Já em trabalhos de cineastas como Humberto Mauro, de Ganga Bruta (1933), e Roberto Santos, de O Grande Momento (1957), Glauber encontra características que deveriam ser desenvolvidas pelo Cinema Novo.
A nova edição de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro é uma versão ampliada do livro original, com imagens raras, além da inclusão da seção "Fortuna Crítica", com resenhas e artigos publicados na época de seu lançamento – "no calor da hora dos debates sobre as polêmicas levantadas por Glauber", como diz Ismail Xavier.
Os próximos quatro títulos a ser publicados pela editora Cosac & Naify são Revolução do Cinema Novo e O Século do Cinema, ambos escritos e organizados pelo próprio Glauber, e dois outros livros que reúnem textos inacabados do cineasta, os quais misturam diários, anotações e pensamentos do diretor.
Um deles, que está sendo preparado por Calil, é Adamastor, cujo lançamento está previsto para o próximo ano. A obra – uma compilação do que Glauber escreveu quando estava no exterior, no início dos anos 70 – é uma espécie de acerto de contas com suas idéias, sua vida e o mundo. "É como se fosse um diário, escrito da mesma forma vertiginosa como eram realizados seus filmes, cheio de desenhos abstratos", diz Calil. O título, Adamastor, tanto faz referência ao nome do pai do diretor quanto a um gigante que é personagem de Os Lusíadas, de Camões.
Pode-se dizer que Glauber fez de sua vida uma missão de combate pelo Cinema Novo. Ele lutou incansavelmente pela realização de seus filmes, sem falar em seus escritos, a ponto de relegar sua vida pessoal a segundo plano, tanto que teve morte prematura, aos 42 anos. "Ele foi um dos últimos artistas românticos, em que a vida e a utopia se misturaram a ponto de prejudicar sua própria existência", afirma Calil.
Visto de fora
Em Glauber, um Olhar Europeu, do jornalista italiano Claudio Maria Valentinetti, o autor analisa uma a uma as fitas do cineasta, mostrando as condições sociais e culturais em que foram realizadas no Brasil. O livro aborda ainda a forma como a obra do cineasta foi recebida no exterior, em especial por italianos e franceses, além de suas repercussões em movimentos cinematográficos do então chamado Terceiro Mundo.
Escrito originalmente como tese de doutorado na Itália, em 1973, o texto, em edição revista e ampliada pelo autor, finalmente foi lançado em livro no Brasil. O prefácio é de Leon Cakoff, organizador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o qual narra nesse texto os dois encontros que teve com Glauber Rocha.
Nascido em Milão, Valentinetti é um profundo conhecedor da cultura latino-americana e já traduziu para o italiano autores como João Ubaldo Ribeiro, Gabriel García Márquez, Jorge Amado e Ignácio de Loyola Brandão. Sobrinho da arquiteta Lina Bo Bardi, Valentinetti, ainda jovem na Itália, conheceu Glauber através dos relatos da tia, que lhe contava as conversas que travava com o cineasta no Brasil dos anos 60.
Quando finalmente pôde ver os filmes do diretor, tornou-se grande admirador de sua obra: "Era um cinema feito num país muito distante de nós, europeus, que nos mostrava novas possibilidades de filmagem. Utilizava poucos recursos, mas inovava na linguagem ao tratar de temas brasileiros, numa perspectiva que transcendia sua realidade, proporcionando uma visão universal das questões enfrentadas pela humanidade", lembra ele.
"O Cinema Novo não pensava em lucros, mas na transformação política da sociedade por meio do despertar das consciências", diz o jornalista. "Glauber Rocha foi um genial louco dotado de rara lucidez e rigor. Pois se a loucura promove a criatividade, é também necessário dominar as técnicas do processo cinematográfico, da filmagem à montagem, o que ele sabia fazer muito bem", afirma.
Crítico feroz da globalização que pasteuriza a sociedade contemporânea, Valentinetti reconhece que a personalidade singular de Glauber faz muita falta. "Jamais houve outro como ele. O que nos dá esperança é que a exibição de seus filmes continua a despertar o interesse dos jovens", conclui.
Enfim, o conjunto das produções de Glauber Rocha – que permanece reverberando pelo mundo do cinema – é tão extenso, provocativo e ainda atual que talvez fosse mais apropriado definir seu método de dirigir as filmagens segundo as palavras de Claudio Maria Valentinetti, escritas em uma das legendas de seu livro: "Uma câmera na mão e muitas idéias na cabeça".