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Morada pré-histórica


Sítio arqueológico / Foto: Divulgação

Pesquisa faz descobertas surpreendentes em Ilhabela

JULIANA BORGES

O município de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, tem hoje um dos patrimônios arqueológicos mais significativos do estado. Nos 56 sítios já identificados – 16 deles do período pré-colonial, com idades que podem variar de mil a 2,5 mil anos – foram catalogadas mais de 14 mil peças: ossos humanos e de animais, instrumentos de pedra, fragmentos de cerâmica, louça e utensílios domésticos, entre outros.
Quatro anos atrás, esse acervo era quase inteiramente desconhecido. Com exceção de algumas construções históricas do século 19 e de peças coletadas em um sítio escavado em 1976, não se sabia que Ilhabela possuía um patrimônio arqueológico relevante. Muito menos que as quatro maiores ilhas do arquipélago – Ilhabela, Búzios, Vitória e Pescadores – haviam sido habitadas por grupos indígenas antes da chegada dos portugueses.
Essas descobertas começaram a ser reveladas no final de 1999, quando o arqueólogo Plácido Cali criou o Projeto Arqueológico de Ilhabela (http://arqueologia.ilha.sites.uol.com.br) e firmou um convênio com a prefeitura local para financiar os custos da pesquisa. Em conseqüência do trabalho feito, o arquipélago foi inserido no quadro de povoamento pré-colonial do sudeste brasileiro. "Quando se fala em ocupação pré-histórica dessa região, existe uma lacuna no estado de São Paulo: não se sabe o que aconteceu lá. O trabalho em Ilhabela é muito importante para começarmos a preencher esse vazio", afirma o professor Astolfo Araújo, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
Atualmente, Ilhabela é o município com maior número de sítios arqueológicos do litoral norte e o que possui a principal concentração de sítios concheiros – acampamentos temporários a céu aberto – do estado de São Paulo. "Além disso, é o único do litoral sudeste brasileiro em que foi encontrada cerâmica feita por grupos indígenas não tupis-guaranis", informa Cali.

Apoio vetado

Só no primeiro ano de atividades – 2000 – puderam ser identificados 45 sítios e coletadas 2 mil peças, que depois de estudadas foram armazenadas numa sala da Secretaria de Cultura municipal. No início de 2001, porém, com a mudança de gestão da prefeitura, o projeto não só perdeu a verba do convênio como teve de desocupar o espaço público que lhe fora cedido. O acervo precisou ser transferido às pressas para um depósito improvisado na sede do Parque Estadual de Ilhabela, onde permanece até hoje. "Desde a mudança, não disponho mais de um laboratório, o que inviabiliza a catalogação de novos objetos e o estudo daqueles já coletados", reclama Cali.

Em outubro de 2001, foi firmado um novo convênio com a prefeitura, mas em bases tão precárias que acabou não tendo prosseguimento. Segundo Cali, além de sofrer atrasos constantes, a liberação mensal dos recursos não foi cumprida integralmente. O prefeito, Manoel Marcos Ferreira, afirma ver com bons olhos a questão dos sítios arqueológicos e atribui o fim da parceria ao desinteresse dos integrantes do projeto. "A prefeitura não tem de bancar tudo sozinha. Eles deveriam também buscar apoio da iniciativa privada", diz. Mas a verdade é que, hoje, o trabalho só não está totalmente paralisado graças à colaboração da sociedade civil e ao esforço do arqueólogo, que tira dinheiro do próprio bolso para dar continuidade às atividades.

"Apoiar o trabalho arqueológico significa resgatar nossa história, e isso é importante também para a economia local. Sabemos que não existe turismo sem cultura", afirma a ex-prefeita da cidade Nilce Signorini, hoje uma das parceiras de Cali. Há pouco mais de um ano, o projeto ganhou o reforço da zooarqueóloga Paula Nishida Barbosa, que elegeu os sítios de Ilhabela como objeto de estudo de seu doutorado. "No litoral norte de São Paulo há muitas coisas das quais pouco sabemos: sua ocupação partiu das ilhas para o continente, ou o contrário? Onde e como esses grupos pescavam? Eles tinham áreas específicas para cada atividade?" A tese está centrada na resposta a essas questões.

Sítios concheiros

Em Ilhabela existem quatro tipos de sítios: concheiros, abrigos sob rocha, aldeias indígenas e históricos. Os primeiros, uma espécie de acampamento temporário a céu aberto de grupos indígenas, são os mais antigos, com até 2,5 mil anos de idade. Embora guardem alguma semelhança com outros depósitos arqueológicos mais freqüentes na costa brasileira, os sambaquis – enormes montes formados pelo acúmulo de conchas, restos de cozinha e esqueletos –, sua constituição é bastante diferente: são rasos e planos.

"O litoral norte de São Paulo é um dos poucos em que não há sambaquis. A presença, na região, de inúmeros sítios concheiros é uma indicação de que no local pode ter havido um povoamento diferente do restante da costa brasileira", afirma o professor Levy Figuti, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), da USP. Esses sítios possuem um grande potencial para esclarecer questões ainda pendentes. "Por isso, a pesquisa arqueológica em Ilhabela é uma das mais importantes do estado de São Paulo", conclui ele.

Também do período pré-colonial, os abrigos sob rocha eram usados para fins funerários ou como acampamentos. Já foram localizados pelo menos 13 deles no arquipélago – isolados ou associados aos concheiros –, tanto nas ilhas menores como na principal. Em todo o estado de São Paulo, só se sabia da existência de outros cinco abrigos desse tipo.

Entretanto, o que mais surpreendeu os pesquisadores do projeto foi a identificação de uma enorme quantidade de fragmentos de cerâmica pré-colonial não tupi-guarani em Ilhabela. Mais de 1,5 mil peças foram descobertas em dois sítios de aldeias indígenas e em outros nove locais. De acordo com Cali, as características dos fragmentos indicam, com boa margem de certeza, tratar-se de cerâmica da tradição Itararé, um padrão utilizado por tribos da família lingüística jê. "Essa cerâmica é fartamente encontrada em Minas Gerais, no centro-sul de São Paulo e no sul do Brasil – Paraná e Santa Catarina –, sempre em regiões serranas, nunca no litoral", explica o professor Astolfo Araújo. A descoberta representa uma grande novidade para a arqueologia, pois até hoje não se tinha notícia de que a costa sudeste do Brasil havia sido habitada por outras tribos, ou que grupos do interior de São Paulo mantinham contato com outros do litoral, duas hipóteses que podem explicar a presença desses achados no município.

Exploração patrocinada

Desde o início do projeto, apenas uma escavação arqueológica foi realizada em Ilhabela, em abril de 2001. Trata-se das ruínas de um engenho de açúcar do século 19, localizado na praia da Pacuíba. Assim como esse, há no município uma série de outros sítios chamados de "históricos", que se referem ao testemunho da presença européia no país. São resquícios de antigas fazendas de cana-de-açúcar e café, engenhos, fortes, alambiques, habitações, igrejas, serrarias e fortificações. Esses tipos de construção são marcas registradas da colonização portuguesa e, por isso, existem em todo o litoral brasileiro.

Por essa razão, em relação a outros sítios existentes em Ilhabela, o Engenho Pacuíba não é o que possui maior relevância arqueológica. Mas foi escavado porque os proprietários do terreno, interessados em construir um condomínio no local, arcaram com todos os custos. A atividade de campo envolveu 19 pessoas e, ao final de um mês, foram coletadas 12 mil peças, entre ossos, cachimbos, louças, garrafas de vidro, botões e cerâmica. Encerrado o trabalho, a área foi liberada para construção.

Além das escavações, os proprietários do terreno financiaram também o lançamento e a distribuição do livro Sítio Arqueológico Engenho Pacuíba I, em que Cali descreve a atuação da equipe. "Esse trabalho foi importante para provar que a presença de material arqueológico em um terreno não inviabiliza a realização de obras. É possível construir em locais com sítios, mas alguns procedimentos específicos têm de ser adotados, e o proprietário deve arcar com os custos de remoção e estudo do patrimônio", afirma ele.

Segundo o arqueólogo, o fato de a presença de sítios arqueológicos em Ilhabela ter impedido a realização de alguns projetos imobiliários causou grande insatisfação em parte da população. Assim como acontece em todo o litoral norte de São Paulo, a cidade também sofre com a especulação e com um forte movimento em favor da verticalização (construção de prédios). Para agravar ainda mais esse quadro, cerca de 75% do município está dentro dos limites do parque estadual e, nos 25% de área restante, há escassez de terras disponíveis para novos empreendimentos. Portanto, qualquer tipo de restrição – como a que o projeto arqueológico impõe – é vista com maus olhos pelas imobiliárias, construtoras e outros setores que também lucram com as obras.

História enterrada

Como em abril passado houve mudança na Secretaria de Cultura de Ilhabela – Maria Sonia Dias Ferreira assumiu a pasta –, e ciente de que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) havia cobrado da prefeitura informações sobre a situação dos sítios do município, Cali decidiu reapresentar o projeto à prefeitura. A atual secretária demonstrou interesse pelo trabalho e anunciou o retorno da parceria: "Alguns itens ainda precisam ser discutidos, mas pretendo dar continuidade ao trabalho de levantamento dos sítios e até montar um local exclusivo para o projeto", afirma ela.

Retomar o apoio ao projeto arqueológico é apenas o primeiro passo de um longo caminho a ser percorrido pelo poder público municipal de Ilhabela rumo à gestão responsável e eficiente de seu patrimônio. Pouco adianta saber que a cidade possui informações históricas tão ricas, se estas não são aproveitadas nem pelos moradores nem como atração turística. A escavação de sítios tem alto custo, mas é essencial para que se possa entender o contexto em que o arquipélago foi habitado. A criação de um espaço público para exposição do acervo também é essencial: "Dessa forma, poderemos começar a receber turistas e a desenvolver um programa voltado para as escolas", diz Cali. "É uma ótima oportunidade para atrair visitantes com perfil diferenciado, fora do período de temporada", completa a ex-prefeita Nilce.

De acordo com a lei federal nº 3.924/61, todo o patrimônio cultural do país pertence à União e deve ser conservado. Portanto, fiscalizar os sítios arqueológicos de Ilhabela não só é obrigação legal da prefeitura e do parque estadual, mas também imprescindível para evitar danos, como aconteceu na ilha dos Búzios em abril passado. Uma casa foi construída sobre um acampamento concheiro de 2 mil anos de idade, destruindo-o quase por completo. É importante lembrar que boa parte da história do arquipélago, assim como do litoral sudeste brasileiro, ainda está enterrada, esperando para ser descoberta, ou, se nada for feito, se perder para sempre.


Receita aprovada

São poucas, mas algumas cidades do Brasil provam que é possível fazer uma gestão adequada de seu patrimônio cultural e arqueológico e, com isso, trazer receitas para o município. Piraju, no interior de São Paulo, e Joinville, em Santa Catarina, são dois exemplos. Em ambos os casos, a forte presença do poder público, a participação de segmentos da população local, a criação de um espaço para visitação do acervo e a elaboração de uma legislação municipal específica foram determinantes para o sucesso.

"A gestão do patrimônio cultural e arqueológico só pode existir se houver uma parceria entre poder público municipal, uma entidade de pesquisa e um profissional de arqueologia", garante o professor José Luiz de Morais, docente do MAE-USP e um dos responsáveis pela elaboração das leis e diretrizes de Piraju. Ali, desde a década de 70, o esforço contínuo da prefeitura e da sociedade civil, com apoio do Centro Regional de Arqueologia Ambiental, uma extensão da USP, resultou na criação de uma lei municipal para tratar especificamente do patrimônio arqueológico da cidade. As decisões são tomadas por um conselho que reúne membros da prefeitura, de organizações não-governamentais, da imprensa, representantes de associações de moradores e de outros setores da sociedade.

Fundado há cerca de 30 anos, quando a prefeitura comprou o acervo de um arqueólogo amador, o Museu do Sambaqui de Joinville é uma das principais atrações turísticas da cidade. O patrimônio arqueológico da cidade inclui 40 sambaquis, uma série de sítios de aldeias guaranis e algumas construções históricas tombadas. Atualmente, tudo isso está protegido por uma lei municipal específica, e a conservação, prevista no plano diretor do município.

 

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