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Feridas abertas
Impunidade dos massacres desafia Justiça e envergonha o país
REPORTAGEM ESPECIAL*
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Em 23 de julho de 1993, oito crianças foram assassinadas por policiais na Praça da Candelária, no Rio de Janeiro. No mesmo dia, 12 ianomâmis morreram pelas mãos de garimpeiros que invadiram suas terras em Roraima. Pouco mais de um mês depois, 21 inocentes perderam a vida durante um arrastão de policiais militares (PMs) na favela de Vigário Geral, novamente no Rio. Os casos tinham em comum o fato de vitimar pessoas excluídas socialmente: menores de rua, índios e pobres da periferia.
Passada uma década, o Estado ainda não deu uma resposta satisfatória à sociedade – seja com a conclusão do processo judicial, seja com a eliminação das condições que permitiram essas mortes. Ao mesmo tempo, a mídia, que havia dedicado abundante espaço à exploração das histórias de vítimas e sobreviventes, retoma esses casos apenas em datas redondas, condicionando o debate público às efemérides. Problemas Brasileiros traz, nesta reportagem, não apenas essas três histórias, mas também outros quatro casos que chocaram a sociedade na última década e não foram completamente resolvidos.
O envolvimento de policiais militares foi uma constante. Se, hoje, chacinas como as de 1993 são mais raras, o mesmo não se pode dizer da violência policial. O Segundo Relatório Nacional sobre Direitos Humanos – elaborado pela Comissão Teotônio Vilela e pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) – mostra que aumentou a quantidade de mortes em ações denunciadas como ilegais. Em São Paulo, o número de pessoas mortas por policiais passou de 647, em 1999, para 703 em 2001. No Rio de Janeiro, de 288 para 592.
Apontada como um instrumento fundamental para combater a impunidade, a proposta de lei que transfere o julgamento de crimes contra os direitos humanos para a esfera federal é uma saída para evitar a interferência de grupos políticos locais. Apresentada por Hélio Bicudo, então deputado federal e hoje vice-prefeito de São Paulo, ela fazia parte do projeto de reforma do Judiciário, que está congelado no Senado. O atual governo, que não pretende adotar esse pacote de mudanças, já solicitou seu desmembramento para que ela tenha tramitação independente.
O Poder Judiciário tem sua parcela de responsabilidade no clima de impunidade que alimenta a violência. "A Justiça, que pode ser extremamente ágil em conceder liminares de reintegração de posse e determinar despejos no caso de ocupações, mostra-se lenta quando se trata de julgar e punir assassinatos e outras formas de violência contra os trabalhadores rurais", diz o relatório, que foi patrocinado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, órgão federal com status de ministério.
Para que os direitos humanos sejam efetivamente respeitados no país, são necessárias profundas mudanças sociais, pois há impunidade também quando o governo não atua para acabar com a situação de desigualdade ou exploração que estava na origem do conflito. Seja ao permitir que garimpeiros continuem a explorar reservas indígenas, seja ao tolerar que crianças durmam na rua ou trabalhadores percam a vida na luta pela reforma agrária.
Candelária
Mais de 50 crianças e adolescentes de rua costumavam dormir na praça da Igreja da Candelária, região central do Rio de Janeiro. Na madrugada de 23 de julho de 1993, policiais militares, em horário de folga, atiraram contra nove deles, com idades entre 11 e 20 anos – dos atingidos, apenas um sobreviveu. Durante as investigações, levantaram-se diferentes razões para o crime. De uma pedra atirada contra uma viatura da polícia por um dos garotos até o não pagamento de propina aos PMs coniventes com o tráfico de cocaína.
Quatro pessoas foram acusadas após a chacina: o ex-PM Marcus Vinícius Emmanuel, os PMs Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir Gomes de França. Em 1996, Nelson Cunha confessou sua participação no crime e acusou seus colegas policiais Marco Aurélio Alcântara, Arlindo Lisboa Afonso Júnior e Maurício da Conceição, assassinado em 1994.
Desses, apenas três estão presos: Emmanuel, Alcântara e Cunha, que cumprem penas de 300, 204 e 18 anos de reclusão, respectivamente. Arlindo foi condenado a dois anos porque uma das armas usadas na chacina foi encontrada em seu poder. Cláudio, Jurandir e Cortes foram inocentados com o depoimento de Cunha e absolvidos a pedido do Ministério Público. Os dois primeiros foram indenizados pelo Estado por ficarem presos injustamente por quase três anos.
Na época, os meninos afirmaram que oito policiais participaram da ação, e Wagner dos Santos, o único sobrevivente, foi contundente ao reconhecer Cortes como um de seus algozes. Hoje, a vítima mora na Suíça, após ter sofrido um atentado e recebido constantes ameaças de morte. "Certamente havia mais policiais envolvidos, mas durante as investigações não foi possível identificá-los", afirma Riscala Abdenur, atual promotor de justiça responsável pelo processo. Houve ainda o caso do PM Carlos Jorge Liaffa, também reconhecido por Wagner, mas que estranhamente não chegou a ser indiciado, mesmo com a comprovação da perícia de que uma das balas que atingiram Wagner era do revólver do padrasto do policial.
"Esse processo ficou aquém do que esperávamos, mas são pouquíssimos os casos em que o culpado é condenado", pondera James Cavallaro, diretor da organização não-governamental (ONG) Centro de Justiça Global. Para ele, não é tradição da polícia investigar quando se mata um marginal ou um menino de rua. As camadas privilegiadas da sociedade compactuam com isso, pois elas "entendem que polícia eficiente é a violenta", explica o jurista e professor titular da Faculdade de Direito da USP Dalmo Dallari. "Em termos ideais, poderia ter havido mais condenações, mas esse resultado já é uma vitória", diz ele.
A repercussão internacional decorrente da exploração do caso na mídia e do trabalho das ONGs ajudou na condenação dos policiais. "Nos primeiros julgamentos, o tribunal ficava lotado. Para entrar era preciso pegar senha", lembra Cavallaro. Mas essa pressão também trouxe problemas. Dallari acredita que a mídia prejudicou o andamento do processo por dar a ele um sentido de escândalo. "Isso serviu de pretexto para não haver aprofundamento na investigação", comenta o jurista. Yvonne Bezerra de Mello, artista plástica que prestava assistência social às crianças, considera que houve pressa em apontar os culpados e julgá-los. "Por isso, alguns foram injustiçados e outros saíram impunes."
O Estado, porém, não teve competência para garantir uma vida melhor ao restante dos jovens que dormiam sob as luzes da Igreja da Candelária. A chacina não foi interrompida nestes últimos dez anos – a diferença é que ela passou a ser lenta e silenciosa, para não chamar a atenção. Segundo Yvonne, das crianças e dos adolescentes que compartilhavam daquela praça, 39 morreram assassinados ou vítimas da Aids nesse período. Outros simplesmente desapareceram, e há os que, excluídos das políticas públicas, continuam servindo ao tráfico de drogas ou ganhando a vida com a prostituição. Sandro, o seqüestrador morto pela polícia no caso do ônibus 174, caso que inspirou um filme, era um dos sobreviventes da Candelária.
A memória da sociedade civil durou menos que a vida dos que foram assassinados há uma década. No mais recente julgamento de Marcus Vinícius Emmanuel, em fevereiro deste ano, o promotor Abdenur conta que não havia membro de nenhuma ONG presente, e a mídia pouco se pronunciou. O tribunal estava vazio.
Vigário Geral
Cerca de 50 policiais militares, que estavam fora de seu horário de serviço, entraram atirando na favela de Vigário Geral, município do Rio de Janeiro, na noite de 30 de agosto de 1993. Mataram oito adultos após invadirem uma casa, sete trabalhadores que se divertiam em um bar e outras seis pessoas que passavam pelo local. Hoje, dez anos após a chacina em que morreram 21 inocentes, apenas um dos 52 acusados está preso, e o sentimento de insegurança em Vigário Geral ainda é grande. Operações como essa não acontecem mais, agora "as chacinas são à prestação", afirma André Fernandes, presidente da Agência de Notícias das Favelas.
O motivo alegado pelos policiais para a invasão foi um acerto de contas pelo suposto assassinato de quatro PMs por traficantes de Vigário Geral, na noite anterior. Flávio Negão, então líder do tráfico da favela, negou essa versão em entrevista ao jornalista Zuenir Ventura. Segundo ele, os quatro foram mortos por seus próprios colegas, como vingança por não terem dividido uma comissão paga após a chegada de um carregamento de cocaína. O depoimento do traficante não foi levado em consideração pelas autoridades.
A denúncia contra os policiais partiu de Ivan Custódio, ex-informante da PM, e levou à acusação de 33 pessoas. Esse processo ficou conhecido como Vigário Geral 1, e resultou na condenação de seis dos participantes da chacina, dos quais quatro estão soltos por habeas corpus, outro, foragido, e apenas um preso. Nove pessoas foram absolvidas e três não foram julgadas por falta de provas.
Durante o processo, porém, uma gravação de áudio feita na carceragem onde estavam presos preventivamente alguns dos acusados acabou por inocentar dez dos envolvidos e incriminar outros 19. Segundo Paulo Rangel, atual promotor do caso, destes dez, quatro morreram – três assassinados e um de câncer. "Foram executados exatamente aqueles que fizeram a fita", explica ele.
Isso deu início a um segundo processo: Vigário Geral 2. Dos 19 acusados, oito tiveram de ser liberados por falta de provas e um cumpriu pena porque uma das armas do crime foi encontrada em seu poder. No dia 23 de julho passado, outros nove foram liberados num julgamento em que a fita gravada não foi considerada prova legítima. E o último ganhou um recurso e não será julgado. No dia 5 de agosto, porém, foi decretada a prisão preventiva dos seis remanescentes do grupo que havia sido absolvido por causa da fita em Vigário Geral 1. A justificativa: se a gravação não é válida para acusar, também não pode servir para inocentar. Não há data marcada para esse novo julgamento.
Além de complicado, o processo de Vigário Geral também é moroso. O primeiro julgamento demorou quase três anos para acontecer. O atraso foi causado por seguidos recursos encaminhados pela defesa. "Perto do ‘aniversário de dez anos’ [do massacre] há julgamento", afirma André Fernandes.
Neste meio tempo, a sociedade promoveu algumas mudanças. Na residência em que morreram oito pessoas, foi instalada a Casa da Paz, dirigida por Caio Ferraz, sociólogo residente em Vigário Geral. A organização se tornou símbolo da luta contra a violência, mas fechou em 1998 por falta de recursos. Outra iniciativa foi a criação da ONG Viva Rio. De acordo com Rubem César Fernandes, antropólogo e um dos idealizadores da organização, seu objetivo é mudar a "visão de terror" que as pessoas da classe média têm da favela.
Em novembro de 2000, o ex-governador Anthony Garotinho aprovou uma lei que concedia R$ 10 mil para familiares das vítimas de Vigário Geral – o dinheiro, no entanto, só poderia ser usado na compra de imóvel. Outro detalhe é que essa lei só foi feita pouco antes de uma visita de integrantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), ao Brasil.
Ianomâmis
No dia 23 de julho de 1993, 22 garimpeiros invadiram a aldeia indígena Haximu, em Roraima, na serra Parima – próximo à fronteira com a Venezuela – e mataram 12 pessoas – idosos, mulheres e crianças. Os homens adultos estavam longe do local, em uma festa de outra tribo.
Os indícios do massacre foram escassos devido aos rituais funerários realizados pelos ianomâmis, que cremam seus mortos e trituram os ossos. Apenas a ossada de uma mulher de outra tribo, que visitava o acampamento durante a chacina, foi encontrada, pois a tradição exige que o funeral seja feito por parentes. "Os índios viveram três anos distantes de Haximu, por medo, após o massacre", afirma Carlos Zattini, da Pastoral Indigenista de Roraima. "Os índios vêem os garimpeiros como monstros."
A primeira sentença veio em 19 de dezembro de 1996, quando o juiz federal Itagiba Catta Preta Neto condenou cinco garimpeiros por genocídio. A decisão foi revertida em junho de 1998, pois os acusados apresentaram recurso com o pedido de avaliação do caso como homicídio. Mas, em setembro de 2000, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu enquadrar o caso como tentativa de extermínio de um povo, apoiando a primeira sentença. Os outros garimpeiros não foram condenados por falta de provas. Os quatro (um morreu antes de ser preso) cumprem pena em Boa Vista, capital do estado.
O conflito gerado pela exploração de recursos naturais em terras indígenas, contra a vontade dos moradores, é antigo: remonta aos primórdios da colonização do país. Na Amazônia, o processo se acentuou após a criação de vetores de desenvolvimento da região durante a ditadura militar, como a abertura de estradas. Ainda hoje há exploração ilegal de minérios em reservas indígenas. "Aquelas terras são ricas em ouro e diamantes", lembra Franklin Rodrigues da Costa, procurador da República. Pistas de pouso clandestinas, como a usada pelos garimpeiros para fugir, dificultam o trabalho da Polícia Federal e da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Edinelson Makuxi, indigenista e coordenador do programa ambiental da Comissão Pró-Yanomami em Roraima, informa que há três pelotões do exército na área e que os militares têm buscado uma boa relação com os índios. Contudo, uma das principais reivindicações dos ianomâmis ao Ministério da Defesa, que é a retirada dos mais de mil garimpeiros que trabalham na região, não foi atendida.
O poder político local e os veículos de comunicação são contra a criação de novas reservas. O governador de Roraima, Flamarion Portela (PT), alega que a expansão de terras indígenas inviabilizará o desenvolvimento econômico do estado. Por esse motivo, áreas demarcadas há anos, como a da Raposa Serra do Sol, na fronteira com a Guiana (ver Problemas Brasileiros, número 347), não recebem a homologação para ser implantadas.
Carandiru
A desativação da Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, no ano passado não apagou da memória a intervenção da Polícia Militar que resultou na morte de 111 detentos em 1992. O caso já rendeu filme e livros, mas permanece sem conclusão nos tribunais: 84 policiais envolvidos ainda aguardam julgamento, e o comandante da operação, o coronel Ubiratan Guimarães – eleito no ano passado para a Assembléia Legislativa de São Paulo pelo Partido Progressista –, recorre da condenação em liberdade.
No dia 2 de outubro de 1992, a PM de São Paulo foi instruída a reprimir uma rebelião no pavilhão 9 da Casa de Detenção com tropas armadas de revólveres e metralhadoras – em desacordo com o que é de praxe nas operações de contenção de motins. Além dos mortos, todos detentos, 153 pessoas ficaram feridas (destas, 23 eram policiais). A reconstituição do massacre não pôde ser feita totalmente, porque, de acordo com a perícia, os locais onde ocorreu a ação foram adulterados. Dessa forma, os relatórios deixaram margem a interpretações divergentes.
"Se não houvesse ação da polícia, talvez tivessem morrido dez vezes mais pessoas", afirma o coronel Ubiratan. Porém, Felipe Cavalcanti, um dos promotores do caso, lembra que esse argumento não anula a acusação de homicídio: "Na condição de comandante da operação, ao colocar uma tropa de combate em ação, o coronel assumiu o risco das mortes".
Entre o inquérito e a entrada do processo no tribunal transcorreram quase quatro anos. Nesse meio tempo, os crimes de lesões corporais leves prescreveram, livrando 29 policiais de penas que poderiam chegar a mais de 20 anos de reclusão. O julgamento do coronel Ubiratan, realizado nove anos depois, resultou numa condenação a 632 anos de prisão por 102 homicídios. Réu primário, ele recorre da decisão em liberdade enquanto a defesa espera resposta do STJ a um pedido de anulação do primeiro julgamento.
Se as alegações da defesa forem consideradas improcedentes, ele cumprirá a sentença, sem necessidade de licença ou cassação de seu mandato de deputado estadual. Caso sejam aceitas, a sentença será anulada e haverá um novo julgamento, que pode livrá-lo do júri popular, uma vez que ele tem as prerrogativas especiais do cargo. Os processos dos outros policiais militares envolvidos também estão em fase de recurso de uma decisão anterior, que determinava julgamento popular. Vale lembrar que, em um caso de grande repercussão como esse, o júri tende a ser desfavorável aos réus.
Luiz Antônio Fleury Filho, governador na época do massacre e hoje deputado federal pelo PTB, demitiu o então secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, logo depois do caso, mas aprovou a conduta da polícia no julgamento do coronel Ubiratan, em que foi testemunha de defesa.
Corumbiara
Na madrugada de 9 de agosto de 1995, 200 policiais realizaram uma ação armada para retirar cerca de 500 posseiros que ocupavam a fazenda Santa Elina, no município de Corumbiara, sudeste do estado de Rondônia. Houve intenso tiroteio, e mulheres foram usadas como escudo humano e obrigadas a avançar diante das tropas. Após a rendição dos trabalhadores, o acampamento foi queimado. Dois PMs e nove posseiros, entre eles uma menina de 7 anos, morreram. A violência foi tão grande que algumas pessoas nem puderam ser identificadas, segundo Raimundo Mendes de Souza Filho, delegado que presidiu o inquérito policial. Após cinco anos de processo na Justiça, dois sem-terra, dois soldados e um capitão da PM foram condenados. Todos recorreram ao STJ e aguardam a decisão em liberdade.
Há denúncias de participação dos latifundiários da região no processo de reintegração de posse. Raimundo de Souza Filho admite que houve "apoio logístico" dos fazendeiros, pois, segundo ele, seria impraticável o transporte de tamanho contingente apenas com os recursos oficiais. Posseiros alegam ter visto jagunços em meio aos policiais. "Como é possível que numa operação que envolveu 200 policiais apenas três sejam responsabilizados?", questiona o soldado Daniel da Silva Furtado, um dos condenados. "Pegaram a gente porque éramos marinheiros de primeira viagem. Fomos injustiçados." O promotor Cláudio Wolf Harger explica a absolvição dos comandantes da ação sob a alegação de que o inquérito policial tinha falhas.
Os julgamentos, em agosto de 2000, foram marcados por polêmicas. No segundo júri, o promotor e ex-policial Tarcísio Leite Matos pediu, com sucesso, a absolvição de dois comandantes da PM, posicionando-se ideologicamente ("Ou o Brasil acaba com os sem-terra, ou eles acabam com o Brasil"). No dia seguinte, Matos foi afastado dos julgamentos, mas a sentença não foi anulada.
Em outras audiências, foram condenados os posseiros Cícero Pereira Leite Neto e Claudenir Gilberto Ramos. Ao defender a condenação dos sem-terra pela morte dos policiais, os promotores usaram a tese de que eles incorreram em dolo eventual – em que não se tem a intenção de praticar o crime, mas assume-se o risco de ele ocorrer – por organizarem grupos armados no acampamento. A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA determinou ao governo brasileiro o pagamento de indenização às famílias dos 11 mortos. Porém, até hoje, nem mesmo o valor foi estabelecido.
Após 1995, novas ocupações de terra ocorreram em Corumbiara, mas as soluções vêm sendo obtidas de modo mais pacífico. "Hoje, os conflitos são resolvidos de forma mais moderna", lamenta, sete anos depois, o soldado condenado Airton Ramos de Morais.
Eldorado dos Carajás
O assassinato de 19 trabalhadores rurais sem-terra durante uma manifestação pela reforma agrária no sudeste do Pará é considerado o maior caso brasileiro de violência no campo. Cerca de 1,5 mil famílias pediam a desapropriação da fazenda Macaxeira, já ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). A ação, realizada por policiais militares em 17 de abril de 1996, deixou ainda 69 feridos.
O caso de Eldorado dos Carajás tornou-se histórico não apenas por causa de sua gravidade, mas também porque simboliza um problema crônico no Brasil, especialmente na região da fronteira agrícola amazônica. Nas últimas três décadas, mais de 500 militantes da reforma agrária foram mortos no sul e no sudeste do Pará, dos quais 23 só no ano passado, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Há outros 18 processos não concluídos de assassinatos de sem-terra, assentados, religiosos, advogados e presidentes de sindicatos, alguns deles abertos há mais de 20 anos. "Carajás é o símbolo maior do massacre do Estado contra os trabalhadores. A não-punição, neste caso, que é exemplar, soa como uma licença oficial para matar", lamenta João Batista Afonso, coordenador da CPT na região. Como conseqüência, 17 de abril passou a ser lembrado como o dia mundial de luta camponesa, pela reforma agrária e contra a violência no campo.
O coronel Mário Colares Pantoja e o major José Maria Pereira Oliveira, que respondiam pela operação policial na "curva do S" da rodovia PA-150, foram os únicos condenados em primeira instância, acusados de homicídio qualificado e lesão corporal. No julgamento, que começou em 14 de maio do ano passado e durou 13 dias, eles receberam penas de 228 e 158 anos de prisão, respectivamente, e os outros 147 policiais envolvidos foram inocentados. O Ministério Público apresentou recurso, pedindo que os absolvidos sejam julgados novamente – os dois condenados recorrem da sentença em liberdade.
Instituições que acompanham de perto os conflitos de terra na região, como a CPT e o MST, levantaram suspeitas sobre a responsabilidade direta do então governador do Pará, Almir Gabriel (PSDB), do comandante-geral da PM, Fabiano Lopes, e do secretário de Segurança Pública daquela época, Paulo Sette. O coronel Pantoja havia afirmado, em depoimento, que recebera ordens de seus superiores para desinterditar a área ocupada pelo MST a qualquer custo. Porém, para o promotor Marco Aurélio Nascimento, que apresentou a denúncia à Justiça, "não há ligação entre mandar desobstruir uma estrada e mandar matar". Por isso, decidiu não acusá-los.
O caso levou seis anos para ser julgado, mesmo com a pressão da OEA, que o classificou como um dos piores exemplos de desrespeito aos direitos humanos, recomendando ações urgentes do governo brasileiro. Como juízes e jurados do sul do Pará demonstraram antipatia prévia pelo MST, o processo teve de ser transferido para Belém – o que atrasou o julgamento.
Agora, a demora de mais de um ano para uma decisão em segunda instância preocupa a Sociedade Paraense de Direitos Humanos, que a considera "completamente injustificada", nas palavras de seu advogado, Marco Apolo Santana Leão. O juiz Roberto Moura, responsável pelo caso no Tribunal de Justiça do Pará, afirma que tudo está correndo em ritmo normal. "Este é um processo muito complexo, devido ao número de sessões, réus e partes interessadas." Uma decisão definitiva pode sair só em 2005, se o caso for levado ao Supremo Tribunal Federal.
Operação Castelinho
Um comboio de supostos membros do Primeiro Comando da Capital (PCC) foi parado próximo a um pedágio na rodovia Castelinho, em Sorocaba – a 100 quilômetros de São Paulo –, por um bloqueio com mais de cem PMs em 5 de março do ano passado. Após tiroteio, não houve baixas entre os policiais e 12 criminosos morreram. Por incrível que pareça, na época a "Operação Castelinho" serviu para melhorar a imagem da área de segurança pública perante a opinião pública. No centro dos holofotes estava o Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância (Gradi), fundado em 2000, responsável pela ação.
O grupo teria monitorado a quadrilha, descoberto sua ligação com o PCC e a intenção de assaltar um avião pagador em Sorocaba. Contudo, o aeroporto do município informou que não recebe esse tipo de vôo há muito tempo. Em agosto de 2002, a seção São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) denunciou o Gradi por usar presos condenados para se infiltrar nos grupos criminosos sob investigação – o que é ilegal. A denúncia se estendeu aos juízes Octávio Augusto Machado de Barros Filho e Maurício Lemos Porto Alves, por autorizarem a liberação dos presos, e ao secretário de Segurança Pública de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, a quem o grupo responde diretamente.
Segundo a OAB, esses informantes teriam se infiltrado no bando, plantado a notícia do avião, ajudado no planejamento e conduzido o comboio até a Castelinho. "A prova irrefutável que temos é um relatório reservado da própria polícia, em que os PMs contam toda a ação, como se encontravam com os condenados, onde, quantas vezes", afirma João José Sady, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da entidade. Participantes da operação disseram que os criminosos se entregaram, mas, mesmo assim, foram executados. "A cena do crime não foi preservada, e o laudo oficial não fez as análises de manchas de pólvora nem estudou a trajetória das balas", completa Sady. A Ouvidoria da Polícia, órgão autônomo e independente da Secretaria de Segurança Pública, investigou os antecedentes de 22 policiais envolvidos em quatro operações do Gradi e descobriu que juntos eles respondem por 162 inquéritos policiais por homicídio.
Saulo de Castro disse desconhecer os métodos do grupo. No entanto, Fermino Fecchio, que na época das denúncias era ouvidor da polícia, discorda. "São subordinados diretamente ao gabinete do secretário. O fato de dizer que não sabia o que estavam fazendo revela ou incompetência ou conivência." O secretário de Segurança Pública e o comandante-geral da PM, coronel Alberto Silveira Rodrigues, não quiseram dar entrevistas. O juiz Maurício Lemos, ex-corregedor do Departamento de Inquéritos Policiais, negou envolvimento.
O Tribunal de Justiça de São Paulo decretou que as investigações seguiriam em sigilo, por envolver um secretário de Estado e dois juízes. "A partir do momento em que é decretado segredo de Justiça, ninguém mais se pronuncia sobre o caso. Daí essa impressão de impunidade", analisa Isabel Figueiredo, assessora da ouvidoria.
"As investigações estão em fase final. O inquérito vai examinar se houve armação dos policiais, mas ainda não foi concluído", explica o promotor Carlos Cardoso, assessor de Direitos Humanos da Procuradoria Geral de Justiça. Porém, o Gradi continua existindo, mesmo com todas essas denúncias, lamenta o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo, Renato Simões (PT).
*Repórteres: Angela Pinho, Claudia Carmello, Denise Galvani, Fernanda Sucupira, Leonardo Sakamoto, Lidia Neves, Lúcia Nascimento, Marcio Kameoka, Natália Suzuki, Nelson Lin, Rafael Sampaio, Renata Summa e Rodrigo Pereira