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E anatomia era só o começo

Oswaldo Almeida Jr.

Personalidade multifacetada era pouco. O cara tinha tantos talentos que quase se podia dizer que não tinha nenhum. Quando o conheci, o então aspirante a cirurgião era um brilhante instrumentador cirúrgico. Adorava cortes longitudinais do crânio - cortes sagitais, dizia ele - e coisas do gênero, e dedicava-se com tanto afinco à profissão que autópsias eram pouco para que desse por satisfeita sua vontade de conhecer anatomia. Começou a fazer moldes de rostos, mãos e pés dos amigos com técnicas que aprendeu em um dos cursos de teatro da pós-adolescência. A sala de sua casa parecia um salão de ex-votos quando resolveu que aquela história toda de órgãos, incisões e suturas era para quem tinha estômago. E outra: o salário mal dava para bancar os livros de conto e poesia que ele não se cansava de publicar. Cheio da vida dura, apostou suas fichas na universidade, o que mostra que pelo menos o jogo não era uma de suas especialidades.
- "Alea jacta est!" Disse-me ao ingressar no curso de Direito, que faria com fascinação absoluta e uma resignação que apenas advogados e padres conseguem ter. Pelo menos até o quinto ano, quando desistiu do curso porque, finalmente, encontrara um caminho profissional à altura de seus (novos) desejos.
Formaria-se em História, estava decidido. Nunca em minha vida havia visto alguém tão convicto de algo, principalmente em se tratando de História. Dois anos depois, no entanto, ele me faria perceber que certeza também é um conceito relativo. No caso desse amigo, mais que relativo: mutante. Tudo bem que Churchill tenha sido oficial militar e correspondente de guerra antes de destacar-se como um grande bebedor de brandy e como... como... ah, como homem de estado; que inúmeros compositores brasileiros, hoje consagrados, tenham tido ou tenham carreiras nas mais diferentes áreas. O Guinga, por exemplo: é tanto um maravilhoso compositor quanto, dizem, um bom cirurgião dentista. Mas em algum momento, na maior parte dos casos, houve uma opção definitiva. Ainda que fosse a opção por uma deliciosa vida dupla como a que tenho eu, quase em segredo, e todos os músicos de minha decana e insistente banda de rock. Bem, voltando a esse amigo, seu momento de escolha pareceu ter chegado após três cursos diferentes:
- "Foi culpa sua! Quando iniciei o Direito, você insistia em que eu tinha que ter feito Jornalismo; foi culpa sua, toda essa perda de tempo foi culpa sua", dizia-me o hoje jornalista, que formou-se não antes de fazer free-lances como fotógrafo e de tentar carreira nas artes visuais. Mas como habilidade pouca é bobagem, o esperto hoje ganha a vida como massagista de prostitutas na Suíça (taí, uma profissão que eu gostaria de ter). No fundo, ele nunca esqueceu anatomia. Pensando nessa sua volta às origens, lembro-me agora de que aos cinco anos de idade eu jurava que iria ser desenhista. Eu era bom nisso. Cá entre nós, quem saberia dizer se olhar para o futuro não é buscar o que ficou para trás, escondido nos desejos da infância?

Oswaldo Almeida Jr. é técnico do Sesc São Paulo, historiador e integrante da banda White Liers.