Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Em Pauta
Uma questão de educação

Jornalistas, professores e representantes de ONGs analisam a construção da cidadania

"De que trata a educação, afinal, se não de ajudar os indivíduos a realizar o processo evolutivo da humanidade?" Assim questiona em seu artigo o jornalista Luciano Martins Costa, articulista do Observatório da Imprensa, acerca da questão discutida pelo congresso Educação para Cidadania, realizado em junho pelo Sesc Santos. Ele e outros palestrantes do evento, convidados pela Revista E, produziram artigos exclusivos para o Em Pauta desta edição, onde é discutido o papel fundamental da ação educativa na busca pela cidadania. Nas análises dos especialistas, percebe-se como a tecnologia e a informática podem servir de instrumentos nessa empreitada. E como a educação se torna fator decisivo para impulsionar o desenvolvimento econômico de uma nação.

Nicolau Sevcenko
é professor titular de História da Cultura no Departamento de História, da USP

O curso das mudanças nos últimos 20 anos foi tal que transformou completamente o panorama do mundo em todos os níveis, escalas e padrões. É mais do que óbvio, portanto, que as agendas educacionais precisam ser atualizadas. A necessidade da mudança é mais clara do que seu escopo. E, no entanto, a oportunidade é ótima para se fazer um balanço do que tem significado a experiência educacional neste novo contexto.
O ponto de partida para essa reflexão pode ser a evidência, posta em destaque primeiro pelo Japão, depois pelos Tigres Asiáticos, de que a educação é o fator decisivo para impulsionar o desenvolvimento econômico. Daí a preocupação de realocar investimentos, modernizar, replanejar, racionalizar custos e equipar as unidades de ensino. Uma parte desse esforço vem consistindo em dotar as escolas, em todos os níveis, com recursos de TV, vídeo e computadores. Outra parte se baseia justamente em associar o ensino às transformações tecnológicas e, por esse viés, inserir os alunos no contexto mais amplo do processo de globalização.
A impressão geral, portanto, é que parece que modernização, racionalização, informatização, globalização se tornaram os vértices de uma nova e completa reconfiguração das práticas educativas. Não necessariamente. Essa ênfase nos aspectos administrativos, orçamentários, materiais e técnicos, lembra uma imagem de Wittgenstein, a dos alunos que são treinados para, toda vez que o professor aponta alguma coisa, olharem não na direção que ele indica, mas para o seu dedo.
Para esse filósofo, que era também professor, a essência da prática educativa estava centrada na sua relação com os alunos. Via o objetivo do processo educacional como sendo o de "mudar-lhes a maneira de ver as coisas". O que era uma variante da fórmula de outro grande filósofo e educador do século 20, Max Weber: "dotar os alunos de ferramentas e habilidades mentais". Ou seja, o fundamental é desenvolver nos estudantes os recursos mentais que lhes permitam transitar entre os sistemas, reformulá-los ou inventar novos, sem que suas mentes fiquem circunscritas a nenhum deles.
Mas não basta. Como o cerne da nova equação histórica é a ordem globalizada, nesse contexto tecnológico emergente o eixo dinâmico da economia se moveu da relação capital-trabalho para capital-conhecimento. Isso implica que o investimento crucial para o desenvolvimento e a autonomia deve ser centrado na educação e na pesquisa. O que significa abandonar um modelo de educação baseada em currículos, aulas e avaliações padronizadas. Só uma inteligência plural interage com um mundo interconectado, volátil, desigual e perigosamente desequilibrado.
Tais são, portanto, as tensões que assinalam este mundo globalizado, que a base estruturadora dessa inteligência plural deve necessariamente estar articulada pela consciência crítica, fixada nos três pilares fundamentais da história, da ecologia e da ética. A crítica histórica destaca a condição assimétrica e injusta de uma ordem mundial que acentua, em vez de aliviar, as desigualdades regionais. A crítica ecológica expõe os malefícios da exploração predatória dos recursos naturais e os riscos ingentes das tecnologias de grande impacto ambiental. A crítica ética avalia as injustiças inerentes aos processos de concentração de riquezas, à desmontagem dos serviços públicos e às garantias sociais. Essa dimensão crítica da educação é, pois, a sua própria alma. Dela dependem o vigor da democracia, o anseio da justiça e o exercício da cidadania.


Luciano Martins Costa
é jornalista e articulista do Observatório da Imprensa

A socióloga e cientista política germano-americana Hannah Arendt definiu de forma clara a essência da tarefa de educar: "A educação é o ponto onde definimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nossos mundos, não abandoná-las a seus próprios recursos, tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós."
A educação está visceralmente associada a um conceito de responsabilidade individual pelo destino coletivo. Muito além do texto de Arendt, é preciso lembrar que o mesmo conceito serve para outros "pequenos", no sentido social, aqueles desprovidos de cidadania, ou que estão na infância da cidadania. Um processo de educação para a cidadania, num sentido pleno, deveria levar em consideração uma idéia mais ambiciosa de civilização, como realização coletiva da evolução dos indivíduos. As instituições se encontram presas em um círculo de referenciais inconsistentes que caracterizam o ambiente fluido que se convenciona chamar de "mercado". Toda a sociedade se viu reduzida a esse círculo estrito, que engolfa a escola e a imprensa.
Indivíduos e instituições limitadas ao mercado estão fora do círculo de interesses de que trata a educação, uma vez que não se pode exigir deles essa ética sem a qual não há educação. No entanto, o extremo valor que se dá à mídia transforma seus agentes em formadores de cultura. O problema se agrava quando notamos que instituições essenciais à função de educar também embarcam alegremente nessa ilusão. Se deixam de participar da solução do problema, essas instituições passam a fazer parte do problema em si. O contexto do culto ao consumo produz na verdade mais exclusão que integração. A noção de "galera" que substitui o social não contempla a fundamental noção de individualidade, na qual se desenvolvem as personalidades, substituindo-a pelo individualismo.
O fenômeno do sacrifício, presente nas grandes manadas e aceito como necessário à preservação da espécie diante da ameaça do predador, é recriado na sociedade sobremoderna, associado à aceitação da idéia do indivíduo descartável. O excluído é descartável, o estranho à galera não é reconhecido como humano. Os chamados outsiders, aqueles que parecem não encontrar seu lugar na sociedade sobremoderna, talvez sejam os indivíduos mais preparados para a resistência e a liderança dos processos de mudança que a coletividade humana reclama.
No entanto, o processo de absorção da sociedade hipermediada é tão poderoso que mesmo os espíritos mais libertários têm grande dificuldade para se manter lúcidos. O papel crucial da educação para a cidadania talvez seja o de abrigar em sua comunidade aqueles que precisam funcionar exilados do caos social e transformá-los em agentes produtivos da mudança necessária. De que trata a educação, afinal, se não de ajudar os indivíduos a realizar o processo evolutivo da humanidade? Se os próprios agentes da educação e suas instituições aceitam o jogo de ilusões da mídia, sua ação pode ser chamada de educativa? Uma educação ética que honre as metáforas essenciais da vida tem que considerar os paradigmas da realidade objetiva, não os padrões da realidade mediada. É uma atitude de resistência ao processo de mediocrização geral.


Rodrigo Alvarez
é coordenador da ONG Desenvolvimento Institucional Comitê para Democratização da Informática (CDI)

A primeira pergunta que a professora cubana Aimée Vega fez ao visitar uma EIC - Escola de Informática e Cidadania - foi desconcertante: mas o que é esta cidadania que vocês do CDI ensinam? Dias atrás, uma delegação de Moçambique interessada em projetos brasileiros de inclusão digital manifestou a mesma estranheza. É difícil explicar aos estrangeiros os motivos de um país se preocupar em criar escolas de cidadania.
Para um cubano, o exercício da cidadania é a garantia da identidade e soberania do povo. Já para um brasileiro... A maioria de nós mal conhece a cidadania outorgada por decretos e estatutos. Nossos direitos e deveres básicos. O que dizer então do sentimento legítimo de nos acreditarmos capazes de conquistar novos espaços?
Nós, do CDI, temos consciência de que cidadania não se ensina. Se vive. Se constrói. E é isto que acontece nas nossas Escolas de Informática e Cidadania.
Ao ressaltar a apropriação das tecnologias de informação e comunicação, o modelo pedagógico das EICs favorece o redimensionamento da trajetória de vida dos educandos, encorajando-os a usar a tecnologia em projetos próprios, como ferramenta para a discussão, pesquisa, comunicação e desenvolvimento de ações locais. E, ao se descobrirem capazes de pensar, debater, investigar e agir sobre suas realidades, passarem a exercer o verdadeiro sentido da palavra cidadania e atuar como agentes transformadores da sociedade em que vivem.
A escolha da pedagogia de projetos como metodologia dentro da abordagem histórico-cultural de Paulo Freire vem se mostrando fundamental e coerente com a percepção de que as novas tecnologias podem levar à inclusão social. Os projetos de trabalho buscam proporcionar a ação direta dos educandos na comunidade em que estão inseridos. Assim, além de contribuir para ampliação de oportunidades de trabalho e de geração de renda, o domínio da informática possibilita o acesso a novas fontes de informação e espaços de sociabilidade, representando um importante capital social.
É preciso ter em mente que, ao se privar contingentes humanos de seus direitos básicos e arrancar deles a possibilidade de desenvolverem suas capacidades, estamos negando-lhes a cidadania e tornando-os política e socialmente impotentes. Nossa ação vai justamente na contra-mão destes fatos. Busca a inclusão social usando a educação e a informática como agentes motivadores. Para nós, do CDI, a cidadania vem da capacidade dos indivíduos de atuar sobre o espaço público de maneira a instituir direitos, sempre referentes a alguma dimensão particular da comunidade. É, portanto, um caminho que se autoconstrói.
Andando pelo Brasil podemos encontrar outros exemplos de "escolas de cidadania". A Câmara Municipal de Belo Horizonte, por exemplo, mantém um projeto homônimo que objetiva estreitar o relacionamento com a população, chamando-a a participar e conhecer melhor o funcionamento do Legislativo e, conseqüentemente, se inteirar sobre temas fundamentais da atividade política em geral.
A Ação da Cidadania também tem em sua história a fundação de uma "escola de educação para a cidadania": a Herbert de Souza, aberta em 1999 em Nova Iguaçu, no bojo de uma ação pontual de educação ecológica e formação de monitores ambientais. Nos anos seguintes, a Ação da Cidadania transformou o desafio de criação de novas escolas de cidadania na abertura de "Espaços de Formação de Cultura", com o objetivo de educar por meio da arte e da cultura, fortalecendo a auto-estima e a inserção social dos alunos.
Em todas essas iniciativas, cidadania é o horizonte da educação. E as escolas, espaços onde as pessoas aprendem a ser, estudar, descobrir e criar, fazer e agir, viver em conjunto, em equipe, de forma interativa, solidária, complementar.


Paulo Alexandre Pereira Barbosa
é diretor de projetos especiais da Fundação para o Desenvolvimento da Educação

Cidadania não se estabelece em lei, decreto ou medida provisória. Cidadania se conquista com trabalho, dedicação e conscientização.
A segmentação social é um fator que, de certa forma, transforma a busca da cidadania em uma tarefa extremamente complexa. Experiências diferentes, idéias opostas, necessidades múltiplas. Como estabelecer, de fato, a cidadania se contamos com tantas semelhanças e tantos paradoxos? Como se falar em cidadania para alguém que não tem condições de se alimentar adequadamente? Como se falar sobre dever cívico a quem se vê, diariamente, desrespeitado nos seus mínimos direitos? Como falar em espírito para aqueles que têm em seus corpos a marca fria do desprezo?
Talvez se trocássemos o verbo "falar" pelo verbo "agir"; talvez se nos afastássemos um pouco do "querer" e vivenciássemos, efetivamente, o "poder", poderíamos responder a tais indagações. Há tempos o desafio está lançado; há muito mais tempo as respostas estão por vir. Os desafios sempre parecem ter um feitiço, uma espécie de magia que nos faz acreditar, em um primeiro momento, na impossibilidade da sua resolução. As soluções, contudo, não seduzem e nunca seduziram o homem. A aura simples da solução parece não exercer nenhum magnetismo sobre a maioria dos homens, que preferem se deixar levar pela ilusão da dificuldade. Já que fazemos parte de uma sociedade mutante e somos seres humanos dotados de livre arbítrio, por que não mudamos para melhor, afim de enfrentarmos os desafios da exclusão social?
Todos nós queremos cidadania, mas nos perdemos na ânsia de construí-la, sem nos atermos aos seus princípios estruturais. Não haverá cidadania sem saúde, sem habitação, sem alimentação e, sobretudo, sem educação. A verdadeira cidadania é fruto de cooperação social e de ação responsável, que requer uma complexidade de atitudes envolvendo perfeito sincronismo entre governo e sociedade.
Todas as soluções têm um início, um fio condutor que leva a outras etapas que são resolvidas gradativamente. Este início é a educação, através da conscientização global.
Não podemos nos iludir, imaginando que a questão da cidadania será resolvida em um piscar de olhos. Cidadãos que se formam da noite para o dia são cidadãos de papel, desprovidos de direitos e descompromissados com seus deveres.
O Programa Escola da Família vislumbra a possibilidade da sociedade participar intensamente da melhoria da educação, possibilitando que as escolas estaduais se tornem escolas públicas de qualidade e que suas dependências sejam verdadeiros espaços de paz.
É dessa forma que o Governo do Estado de São Paulo contribui para o surgimento de novas gerações.


Célio Nori
é Mestre em Estudos do Lazer pela Unicamp e gerente-adjunto do Sesc Santos

De 1985 aos dias atuais ocorreram no Brasil alguns fatos políticos que, vistos sob determinado ângulo, poderiam ser considerados animadores. Superamos a ditadura militar, retomamos as eleições livres em todos os níveis, promulgamos uma constituição democrática e vivemos tempos de normalidade institucional.
Todos esses acontecimentos relevantes, no entanto, não foram capazes de alterar em profundidade uma cultura política caracterizada, em larga escala, pela postura servil da sociedade diante do poder, como também pela atuação orquestrada de segmentos hegemônicos em busca de privilégios à sombra e sob o custeio do Estado. Mais ainda, nossa democracia formal em nada alterou - e em certas situações agravou - a extrema desigualdade sócio-econômica existente no país.
Diante dessa situação, Milton Santos detecta um estado de deficiência cívica, no qual a cidadania é desigual e estratificada. Em decorrência, o homem economicamente oprimido encontrará sempre grandes dificuldades para fazer valer os direitos fundamentais que a sua própria condição humana deveria lhe conferir.
De outro lado, nos setores mais favorecidos, excetuando-se aqueles que conseguem viabilizar privilégios corporativos, a grande maioria demonstra profundo desinteresse e apatia pela coisa pública, que não raro chega à alienação. Para estes, o exercício da cidadania resume-se, tão somente, em votar a cada dois anos, o que na verdade torna-se muito mais uma obrigação do que um direito.
Norberto Bobbio faz severa crítica às instituições políticas formais da atualidade, nelas denunciando ausência de efetiva representação, desvios de finalidades, manipulação da mídia e decisiva influência do poder econômico, fatores que lhes acarretam um descrédito progressivo e provocam um sentimento de inércia e impotência que se alastra e contamina os mais diversos segmentos sociais. Diante disso, propõe a valorização de órgãos de ação popular fora dos institutos clássicos de governo, tais como conselhos populares, democracia direta e controle social dos meios de informação e propaganda.
Desse modo, é necessário que a sociedade organizada exerça um poder que seja capaz de estabelecer controle sobre os demais poderes. A atual constituição brasileira, em seu artigo primeiro, legitima tal possibilidade à medida que atribui ao povo um poder soberano, que deve ser exercido de forma representativa ou direta na forma da lei.
Neste preceito constitucional encontra-se a senha para uma radical transformação cidadã, que vá além da denúncia ou da simples reivindicação e que se traduza em uma cidadania solidária e propositiva, comprometida com a conquista de verdadeira justiça social, visto que o profeta Isaias, há muito tempo, ensina que só existirá paz como filha da justiça.
Contudo, essa verdadeira revolução sóciopolítica só ocorrerá quando o conjunto da sociedade tiver plena consciência de que a cidadania não é algo posto ou determinado, e sim fruto de um processo educativo a ser permanentemente construído e aperfeiçoado. Para tanto, as escolas precisam deixar de ser agências que tão somente transmitem saberes curriculares estanques e dissociados. As universidades não podem se converter apenas em instituições homologadoras de certificados que validam o exercício de certas profissões. Os meios de comunicação, concessões públicas que são, não podem descartar sua responsabilidade educativa, arvorando-se a condição de empresas privadas e regidas pelo mercado, para justificar e estimular um consumismo aético e devastador.
A educação para a cidadania pressupõe um cidadão multidimensional e complexo, como o define Edgard Morin, ou seja, altivo, solidário, consciente, crítico, participativo e capaz de se organizar coletivamente. Vislumbra-se, assim, a prevalência do cidadão global, que na visão de Richard Falk é aquele que almeja direitos e deveres ainda não estabelecidos e luta para criar uma ordem civil global como projeto de futuro, que para ser viabilizado, há de ser gestado e desenvolvido no tempo presente.