Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Capa
Lado a lado

Um craque de bola que monta um projeto social; um empresário e sua biblioteca de títulos raros; o compositor que é marceneiro; e o biólogo que é sambista

A maestria em múltiplas atividades é um fenômeno que a História comprova como antigo. Entre os exemplos, podemos citar desde Leonardo da Vinci, famoso criador da Mona Lisa que se tornou conhecido também como grande cientista, até importantes escritores brasileiros como Graciliano Ramos, que se dividiu entre a literatura e a política na prefeitura de Palmeira dos Índios, em Alagoas. No momento atual temos o cantor Gilberto Gil, que mesmo assumindo a pasta da cultura no governo federal não abandonou os palcos; ou ainda a jornalista Marília Gabriela que atuou em peças como Esperando Becket, de Gerald Thomas, e A Peça Sobre o Bebê, de Edward Albee, com adaptação de Armânio Gomes. No campo dos passatempos que significam muito mais hobbies, podemos citar ainda Gustavo Kuerten, o Guga, arrasando no surfe nas praias do litoral catarinense quase tanto quanto faz bonito nas quadras de tênis. A verdade é que não há uma regra que impeça que o talento em várias frentes leve as pessoas a migrarem de seara, ou mesmo cultivar trabalhos em mais de uma. É o caso, para iniciar os exemplos desta matéria, do sambista Paulinho da Viola, um mestre também da marcenaria. "É só hobby", começa ameaçando modéstia. "Apesar de eu me considerar um ótimo marceneiro, faço de tudo." Paulinho explica que sempre ficou muito próximo do mundo da marcenaria, por pura paixão. "Sigo muito o caminho do artesão. Independentemente de toda a tecnologia que existe hoje, de todas as técnicas novas e das máquinas ultra-sofisticadas, acho que pode haver uma relação de artesão com a vida. E isso se estende também para a música, para a maneira como a encaro."

Gols de letra
O ex-jogador de futebol Raí engrossa o coro dos que admitem ter múltiplos interesses. Por curiosidade, sede de aprendizado ou sentimento de compromisso com a sociedade. "Eu sempre tive necessidade de ter algo paralelo, de aprender coisas novas e ter conhecimentos em outras áreas além da minha", explica. "Se não profissionalmente, eram cursos e essas coisas." Entre "essas coisas" que interessam a Raí está uma das mais bem-sucedidas instituições de trabalhos socais do País, a Fundação Gol de Letra, criada por ele junto com o também jogador de futebol Leonardo, em 1998. "Nós nos conhecemos no início dos anos de 1990 e sempre trocamos idéia sobre o assunto", relata. "Queríamos algo que não só transmitisse o que a gente sente, mas que também representasse uma classe, que no caso é o meio esportivo. E isso surgiu no tempo livre que nós tínhamos dentro da nossa principal atividade, que era o futebol." O próximo passo foi procurar auxílio de quem tinha know-how em trabalhos sociais, como a Fundação Abrinq e o Instituto Ayrton Senna. "Nós montamos uma equipe e começamos o trabalho." A Gol de Letra e o futebol dividiram o tempo de Raí por mais um ano e meio após a sua criação, mas nunca uma coisa se sobrepôs à outra, ambas dividiam o primeiro lugar no ranking de suas atividades. "O que eu perdia em termos de tempo para investir no trabalho, por causa da minha agenda de jogador, eu tentava compensar com a utilização do potencial que eu tinha", conta o ex-jogador que atualmente tem a Gol de Letra como sua principal atividade.
Professores no palco
Já o ator Eduardo Silva, ex-Castelo Rá Tim Bum, viu na Biologia a maneira de garantir uma outra fonte de renda, fugindo da instabilidade financeira que muitas vezes acompanha a profissão de ator. "Eu percebi que a estabilidade financeira de um ator não vinha nem com tempo de carreira e nem com qualidade do trabalho", explica o ator. "Daí eu pensei que tinha de fazer outra coisa. Tinha de ser algo que eu gostasse e que desse para ser uma atividade paralela. E tudo o mais que eu gostava era na área de Biológicas." Quando Eduardo entrou na faculdade de Biologia, aos 19 anos, já tinha cinco anos de carreira como ator. Isso causou um certo estranhamento da parte dos colegas. "Há 20 anos, a Biologia não tinha a visibilidade que tem hoje, com coisas como DNA, Genoma, clonagem etc. Todo o mundo estava numas de fazer pesquisa, mas eu sempre quis dar aula". A vida de professor de cursinhos pré-vestibular, que Eduardo viveu paralelamente aos trabalhos de ator durante 16 anos, igualmente lhe reservou obstáculos a serem transpostos. Mas, segundo dizem, os artistas adoram isso. "Foi muito legal", admite. "Justamente porque havia três desafios: primeiro quebrar com o referencial de um professor de cursinho, que não é de um cara novo e negro, mas sim de um homem branco e mais velho; segundo que as pessoas tinham a idéia de que professor de cursinho tem de ficar cantando musiquinhas para os alunos decorarem as fórmulas, e eu tentava mostrar que não, que a Biologia faz parte do dia-a-dia da gente; e em terceiro atingir a satisfação de um professor, que é no final do ano um aluno chegar para você e falar que odiava Biologia e que começou a gostar depois de ter aula com você. Não tem grana que pague isso." Não é nem preciso dizer que os alunos de Eduardo, ao verem que teriam um professor famoso, não pensavam duas vezes para pedir um autógrafo ou até mesmo uma canja. "Alguns alunos diziam 'ah, professor, faz aí aquele personagem tal'. Mas eu achava melhor dividir bem as coisas."

A serviço da literatura
Dividir-se entre múltiplas atividades sempre foi um dos inúmeros méritos do advogado e empresário paulista José Mindlin, conhecido entre outras coisas por seu trabalho à frente da fabricante de autopeças Metal Leve. Paralelamente à função de controlar uma das maiores indústrias do País, Mindlin teve também uma forte atuação como secretário de Cultura do governo Paulo Egydio Martins, no final dos anos de 1970. Em seu invejável currículo de atividades, consta ainda a recusa ao cargo de Ministro da Fazenda do governo Collor e a dedicação incondicional, e hoje exclusiva, ao mundo da cultura, mais especificamente à literatura. Em sua biblioteca pessoal, com cerca de 29 mil títulos e quase 45 mil volumes, encontram-se raridades como o original de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. No hábito da leitura, façanhas como ter lido cinco vezes os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, do escritor francês Marcel Proust. "No original e em tradução", como fez questão de ressaltar em entrevista concedida à revista A Terceira Idade, editada pela Gerência de Estudos da Terceira Idade do Sesc São Paulo e gentilmente cedida à Revista E. Nada mais natural para um homem que teve a paixão pelos livros despertada ainda muito cedo, no início da adolescência. "Aos 12, 13 anos, eu já tinha lido muita coisa", continua. "Eu tinha uma certa precocidade, comecei a minha vida ativa aos 15 anos, quando entrei na redação do jornal O Estado de S. Paulo. Fui o redator mais moço do Estadão." Para suas preferências literárias não há limites. Os clássicos, Mindlin leu todos. "Logo no começo, eu li Alexandre Herculano, Visconde de Taunay, Machado de Assis e José de Alencar." Logo em seguida, vieram os escritores nordestinos da safra de 1930. "José Lins do Rego, Graciliano Ramos... Todos os nordestinos eram inovadores, li todos na ocasião." Sua paixão pelas letras o levou a conhecer autores que hoje formam o panteão da excelência literária brasileira. Entre eles Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre e Pedro Nava. "Drummond era uma pessoa reservada e tímida", se lembra. "Gilberto Freyre, eu conheci mais ou menos no fim da vida dele. Já com Pedro Nava eu tive uma relação distante no começo. Depois, Francisco de Assis Barbosa, também escritor e amigo meu, me aproximou dele."

Rondas na Amazônia - Música e Biologia convergem harmoniosamente nas palavras e na história de Paulo Vanzolini
A Biologia também seduziu outro famoso das artes. O compositor da antológica Ronda, Paulo Vanzolini, embora prefira falar sobre seu trabalho como zoólogo, não consegue impedir de ser lembrado por sua contribuição para a música. "Ronda é muito piegas", resumiu certa vez em uma entrevista. "É um pequeno golpe, na verdade. Parece que a personagem da música procura a outra pessoa para amar, mas vai se encontrar para dar um tiro nela." Sobre música, suas respostas são sempre curtas, embora enfáticas: "O samba não está nas mãos de bons artistas. Por que o samba era bom antes? Porque ninguém fazia samba por dinheiro". Por outro lado, quando o assunto são suas dezenas de viagens à Amazônia, o biólogo sambista solta a voz. "Fazer uma expedição para a Amazônia é a coisa mais linda do mundo. Há um barco com uma tripulação treinada que se separa em pequenos núcleos. Todos tomam conhecimento das picadas que já existem, pegam o bote para os trechos de rio e compram os animais da população local. É necessário levar muito dinheiro trocado." Aos 78 anos de idade, Vanzolini tem muito a ensinar nos dois ofícios que exerceu. "Fico meio chateado quando falam da aventura de uma expedição", comenta. "Expedição que acaba em aventura é malfeita. A expedição competente acontece para pegar o bicho; além disso, ninguém fica doente, ninguém se machuca, e ninguém passa fome."

Movida à paixão - Em depoimento exclusivo a Revista E, a escritora Hilda Hilst fala de sua outra grande paixão além da literatura: os cães
"Sempre tive cachorros, desde criança, e sempre mais de um, no mínimo dois. Eu não sei dizer exatamente por que os cachorros me comovem tanto. Acho que é pela sua fidelidade e também pelo jeito que eles demonstram seu afeto. Gosto de todo tipo de bicho, a vida é uma experiência única e tudo o que vive é comovente. Mas eu me identifico mesmo é com os cachorros. Quando vim para a Casa do Sol, trouxe os dois cachorros que moravam comigo em São Paulo, e também o Pinchi, que era velhísimo, de uma governanta que morava comigo, a Dona Marta, e que também era velhísima. Depois chegou o Aparecido, porque ele apareceu mesmo. Nem lembro como foram chegando os outros, mas logo eu tinha 12 cachorros. E a notícia correu. Começaram a deixar cachorros dentro do meu terreno, a gente acordava e tinha uma caixa de papelão com 6 filhotinhos, ou uma cachorra velhinha ou muito machucada. Também quando eu ia para a cidade e encontrava um cachorro perdido e maltratado eu desistia do cinema e ia cuidar do cachorro, levava no veterinário e trazia para casa. As pessoas começaram a se livrar dos seus cachorros deixando eles na minha casa. Foram sendo tantos, que tive que construir mais canis e contratar uma pessoa para cuidar deles e também manter a higiene dos canis.
Até quatro anos atrás eu tinha 140 cachorros. Alimentá-los era um problema. Depois não teve jeito, castramos todos os machos, recusamos receber mais cachorros e eles foram diminuindo. Hoje em dia tenho menos de 40."
Obs.: Depoimento dado ao escritor José Mora Fuentes, a pedido da Revista E.