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O Cinema e a Cidade

A diretora Tata Amaral fala do cinema como agente de preservação da história paulistana

Falar de São Paulo é um de meus temas preferidos. São Paulo sempre foi para o Brasil uma cidade onde foram depositados os sonhos de desenvolvimento e de grandeza. Na verdade há mais de um século São Paulo tem essa imagem de uma cidade que não pode parar. Isso costuma acontecer com as grandes metrópoles, mas nela há uma característica muito ruim dessa transformação que é a falta de memória. Lembro de um episódio que ilustra bem esse traço. No começo dos anos 1980, levei minha filha para conhecer o Páteo do Colégio, no centro da cidade. Lá fiquei sabendo que o Páteo foi reconstruído, não restaurado, no fim dos anos 1970. Esse símbolo tão importante para a cidade havia sido destruído, se transformando em outros edifícios públicos e em 1979, felizmente, foi reconstruído e devolvido para a população. Isso é muito representativo da falta de memória dessa cidade que está sempre se transformando e acaba perdendo em memória e tradição.

Cenas do passado
Mas há outra característica dessa cidade que é bem marcante; ela é uma grande anfitriã, acolhe a todos. Em cinco anos, qualquer estrangeiro deixa de ser um francês e se torna um paulistano. O mesmo acontece com um mineiro ou nordestino. Essa capacidade de receber bem por um lado e 'madrastamente' por outro faz de São Paulo uma cidade cosmopolita. Isso está muito evidente em alguns filmes, que acabam sendo praticamente a única memória dessa cidade que não pára. Por exemplo em O Príncipe, último filme do Ugo Giorgetti, que conta a história de um exilado político que volta a São Paulo depois de muitos anos. Ao chegar à rua onde morava, ele fica chocado, pois tinha ainda a lembrança de um bairro calmo, completamente residencial. Ele não reconhece sua própria cidade passados 30 anos de exílio. É uma imagem quase símbolo que o cinema traz dessa constante transformação. Outro filme muito interessante sobre o ritmo da cidade é A Margem, de Ozualdo Candeias. Uma das imagens mais bonitas é a de um personagem chegando ao centro, no Vale do Anhangabaú. Trata-se da representação da modernidade, da civilização, de tudo o que o progresso poderia trazer. O Vale do Anhangabaú é um lugar extremamente representativo na memória da cidade. Esse filme é de 1966 e naquela época havia essa idéia em relação ao centro da cidade como um lugar de progresso e de civilização.
Alguns anos antes, no mesmo Vale do Anhangabaú, Sérgio Person filmou São Paulo Sociedade Anônima, que é um dos filmes mais essencialmente paulistas da década de 1960. Em uma cena lindíssima, Walmor Chagas passa pelo Viaduto do Chá e pelo Vale do Anhangabaú e esse momento em que ele está muito sozinho no meio da multidão é emblemático. O personagem diante da solidão no meio de uma multidão. São Paulo Sociedade Anônima é um dos primeiros filmes que apontam para o ABC paulista. Nele, Walmor Chagas vive Zeloni, um rapaz que está montando uma indústria de autopeças em São Bernardo. Numa das cenas mais bonitas do filme, ele está no meio da estrada, em um descampado e diz "aqui é o futuro do Brasil". Esse lugar é São Bernardo, onde mais tarde seria construído o parque industrial do ABC paulista. Trata-se de um filme bastante representativo do processo de desenvolvimento de São Paulo.
Essencialmente paulista
Em 1986, eu fundei, junto com Francisco César Filho, a produtora Anhangabaú Produções. Sou uma cineasta essencialmente paulista e minha produtora afirma isso também. Estou contando tudo isso porque quando começamos a falar de cinema e de uma determinada cidade notamos que certos espaços são recorrentes e sempre são revisitados de maneiras distintas em cada filme. Isso reforça a construção de alguns mitos. O Vale do Anhangabaú é um desses espaços-símbolo. Um dos primeiros filmes superurbanos, desses que são emblemáticos de uma certa época na cidade é Fragmentos da Vida, filmado na década de 1930, por José Medina. Conta a história de um sujeito que fica perambulando pela cidade e em determinado momento ele dorme na Praça Ramos, ao lado do Teatro Municipal, no Vale do Anhangabaú.
Um outro espaço muito interessante da cidade que também foi muito visitado pelo cinema é o bairro do Brás. Um dos primeiros filmes a fazer essa referência foi O Grande Momento, de Roberto Santos. Um dos personagens é vivido por Gianfrancesco Guarnieri, um homem que está prestes a casar, mas não tem certeza dessa escolha. Todo esse dilema é vivido no Brás, um bairro que está fora do centro da cidade, mas que representa sobretudo a imigração e o movimento operário. Essa referência ao bairro do Brás é muito importante, pois lá foi um dos principais pólos da cidade onde o movimento anarquista ganhou força, principalmente devido à presença de imigrantes espanhóis e italianos. Durante as décadas de 1960 e 1970, o Brás serviu de palco para muitos filmes do cinema marginal. Nos anos 1980, o Beto Brant fez um curta-metragem chamado Dove Meneguetti, cuja história também se passa no Brás. Só que nos anos 1980 o bairro estava muito diferente do que havia sido durante o começo do século passado, que é quando se passa a história do Meneguetti, um ladrão com 'pinta' de Robin Hood, que roubava as mansões da Avenida Paulista e distribuía o que conseguia para os pobres que viviam no Brás. Justamente porque São Paulo não pára, o Beto foi para Amparo, uma cidadezinha do interior do Estado, onde poderia conseguir locações que remetessem ao Brás dos anos 1920. Esses são exemplos de como o cinema e outras artes como a pintura, a poesia e a literatura têm sido fundamentais para cristalizar a memória dessa cidade."

A diretora Tata Amaral esteve em palestra no Sesc São Caetano