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Entrevista
Tom Zé

O compositor fala de música, da realidade brasileira, do Tropicalismo e do ostracismo de quase três décadas antes de ser redescoberto pelo músico americano David Byrne

A espontaneidade do compositor que ajudou a criar o Tropicalismo e impressionou o mundo com sua música reflete-se em suas palavras tanto quanto permeia o seu trabalho. Contador imbatível de casos e memórias, Tom Zé admite que tem uma antena para o mundo social e político e é assim que ele capta os sinais do nosso tempo. Do ostracismo dos anos de 1980 para a fama internacional que possui hoje, o músico vem conseguindo atravessar os anos sem se curvar às cruéis ditaduras da industria fonográfica, não abrindo mão da originalidade que o tornou unanimidade entre a crítica especializada mundial. Preparando disco novo, o maestro - como ele diz que se referem a ele fora do Brasil - fala sobre o passado como balconista na loja do pai, da seca do Nordeste onde cresceu e de como o músico norte-americano David Byrne mudou o rumo de sua história. "Eu estava pronto pra parar com a música e trabalhar no posto de gasolina do meu sobrinho", ele conta. "Mas David não deixou." A seguir trechos da entrevista realizada em seu apartamento em Perdizes:
O que você está fazendo no momento, produzindo algum disco novo?
A Trama, que é a minha gravadora, está lançando um DVD que é do show do meu último disco. Um show gravado no ano 2000. DVD tem um processo muito demorado, então ele deve sair agora no meio do ano, acho que está quase tudo pronto. E, além disso, eu estou gravando um disco novo.

E como é esse disco novo?
Ah, compadre, aí complica... Você sabe que na Bahia tem um ditado que diz que mulher que fala muito perde logo o seu amor. Já os políticos dizem que de urna eleitoral e de intestino de criança não se sabe o que vai sair. E eu acrescento aí uma coisa de minha experiência: de urna eleitoral, de intestino de criança e de disco em produção, você não sabe absolutamente o que vai sair. Você vai para o estúdio carregado de energia, de idéias, e, se você conseguir transformar 60% disso em matéria sonora, você se dá por feliz. Eu acho até que isso é um artifício que Deus pôs no mundo para fazer você continuar trabalhando. Uma vez que você sai tão frustrado de todo disco, você quer sempre fazer outro para recuperar o que você perdeu naquele. Existe esse jogo de energia que te impulsiona a trabalhar mais.

É um trabalho de aperfeiçoamento e realização de idéias novas, não? Agora, onde essas idéias novas mais surgem para você, nos shows ou em casa, tocando violão?
É tudo um aluvião de coisas de onde vão surgindo vontades e aspirações. Então, geralmente, há duas ou três aspirações - que nós estamos chamando de idéias, mas eu, às vezes, chamo de sons - que vêm caminhando com você. Outras coisas são fornecidas pela sociedade. A sociedade é uma coisa que vive escondendo suas verdadeiras fisionomias. A hipocrisia é um processo que está presente tanto na censura, quanto no sexo ou nos verdadeiros interesses. A sociedade de hoje é muito permeada por uma densa camada de hipocrisia. De vez em quando baixa a guarda, e, quando ela faz isso, a obrigação do artista é tirar uma fotografia rápida daquilo para poder elaborar depois. O conjunto dessas duas coisas - um sonho sonoro e um sonho significante, pragmático do que aconteceu na sociedade - vão caminhando até que alguma coisa te laça e você resolve escolhê-la para se empenhar nela.

Comparando o disco que você está preparando agora, por exemplo, com os dos anos de 1960 ou 1970, quais as diferenças em termos de roupagem? Você sente algum tipo de acompanhamento, por exemplo, em relação às modificações no mundo?
Eu tenho uma espécie de antena para o mundo político e social. Essas mudanças se refletem no meu trabalho, sem dúvida.

E como você procura manifestar isso?
Eu não sei como os outros trabalham. Eu trabalho como um operário cuja melhor fonte de força é a pobreza total. E isso significa o seguinte: um dos gestos de compor - só um deles e o mais tradicionalmente conhecido - é entrar no meu quartinho de música e ficar lá 12 horas por dia. Eu não sou um gênio que recebe inspirações. Em música, eu sou um japonês que trabalha com continuidade. Quando eu entro no meu quartinho, eu não sei muito bem o que vai acontecer, eu entro num estado de inanição total. Se eu chegar lá e encontrar água, eu tenho de aprender a nadar; se eu encontrar terra, tenho de aprender a plantar; se eu encontrar fogo, tenho de ser salamandra. E isso é pobreza. Porque quem já está rico - ou seja, que já tem uma idéia - fica como um rebatedor de luz, fica como um espelho que a luz não penetra nele. Dizem que a cor branca espalha a luz e que as cores escuras a puxam, eu estou sempre vestido de negro, como se eu fosse a África, com a pobreza da África.

Doze horas de trabalho por dia. Como você elege o que deve ser aperfeiçoado?
Tem dois troncos: um vem do sonho de uma porção de coisas sonoras. Eu fabrico instrumentos, nos EUA e Europa os caras me chamam de maestro. O maestro Tom Zé. Lá, todo o mundo que faz arranjos é chamado de maestro, sendo ou não. Por acaso eu também estudei música, mas não é por isso que eu sou chamado assim, eu sou chamado de maestro porque eu peguei a banda comum, formada por baixo, guitarra, bateria e teclado, e virei ela de cabeça para baixo, fiz ela falar outra linguagem. Ou seja, esse primeiro tronco também vem com um afluente que é o da invenção de sons e de instrumentos. O outro tronco é o das idéias. Eu vivo numa sociedade que tem diversos tipos de problemas. Um deles, que eu acho o eixo da educação no Brasil, é o que eu chamo de Síndrome da Rua José Paulino, ou "Zépaulino" como as pessoas acabam pronunciando. Essa rua era de judeus que fizeram dela um comércio fantástico e o Brasil todo ia comprar lá. Todos esses comerciantes produziram suas riquezas e educaram muito bem seus filhos. Só que esses jovens foram educados numa universidade, a meu ver, sem ideal, que tem isso de tratar a inteligência como "prenda e adereço social", segundo muito bem diz Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil. Logo, os filhos, depois de formados, não quiseram ir para as lojas dos pais, que tiveram de vender essas lojas. Eu não entendo essa vergonha que as pessoas têm do trabalho. Fico profundamente preocupado com isso.

Já que você tocou no assunto do comércio, como era a loja que seu pai tinha e na qual você trabalhou?
Quem comprava em nossa loja era o homem da roça. E nossa vida na loja era assim: durante o ano todo você atendia a essas pessoas vendendo pequenas peças de tecido que elas precisavam. Não havia confecção naquele tempo. A loja tinha brim diamantino, que é um tecido de trabalhar na roça; mescla confiança, que é o jeans de hoje. Fora disso, peças de linho, para o sujeito fazer a roupa para a festa da padroeira; seda, para as moças e as senhoras; e coisas assim. Tudo era feito pela costureira, até a calcinha e o sutiã. E para as pessoas poderem costurar em casa - porque todo o mundo tinha quase que uma coisa auto-suficiente em seu pequeno terreno - nós vendíamos botões, linha e agulha. Era uma loja de tecidos, mas tinha lá uma pequena prateleira com isso e aquilo. Na loja do meu pai eu aprendi muito a lidar com o outro. Eu tinha de ter paciência, tive de aprender como discutir com os clientes um preço que já era muito barato. E aprendi uma coisa principal lá, que foi uma outra língua. Eu era bilíngüe na infância - hoje eu viajo o mundo todo e não sei nenhuma outra além do português - mas na infância eu aprendi a língua do homem da roça, que é completamente diferente. Se alguém que ler essa entrevista achar que eu estou brincando e quiser ver como é, é só pegar um livro de Guimarães Rosa e abrir em qualquer página. Pronto. Era essa a língua que Tom Zé falava quando era criança.

E de que cidade era essa língua?
Irará, a 120 km de Salvador. Mas já é o começo do sertão, já tinha seca. Nós vivíamos o problema de dois anos com chuva e três sem. Hoje Irará está diferente. Houve um reflorestamento a uns 40 km da cidade, um lugar chamado Pataíba, e foi feita uma represa em Cruz das Almas e esses dois fatores fizeram chover mais na região. Faz vinte e tantos anos que não tem uma seca em Irará. Fazia uns 20 anos que eu não ia lá e uma vez eu estava numa estrada fazendo umas fotografias para um jornal de Salvador e olhei para o campo e disse: "Escuta, isso aqui não era assim, verde." Eu me lembrei da minha infância. Aí me disseram que fazia 20 anos que não tinha seca. Isso foi em 1970. Esses dias mesmo eu liguei para uns amigos de lá e perguntei se tem chovido lá...

Vamos pular do sertão para os EUA. Toda essa história que você conta e que está presente no seu trabalho passou meio despercebido pelo Brasil. São os norte-americanos que vão, de uma certa maneira, e lançam luz para isso. Como você viu essa passagem?
As coisas quando acontecem na vida da gente às vezes não dá tempo nem de dar nome. Eu agora daria nome de milagre. Tudo começou num domingo de manhã, quando minha esposa, Neuza, estava lendo um jornal e deu grito dentro de casa. Nós já estávamos acostumados com o ostracismo, eu já tinha combinado com ela de parar de fazer música e ia trabalhar num posto de gasolina de meu sobrinho em Irará. Nisso Neuza leu no jornal, numa matéria de Matinas Suzuki Jr., que David Byrne viria para o Brasil fazer um filme sobre candomblé na Bahia e procurar o Tom Zé. Quando Neuza leu isso deu um grito. Ela sabia que aquelas pessoas eram sérias, ela conhecia os Talking Heads e sabia que eles eram pessoas diferentes daquela fantasia hipócrita do mundo artístico. Eu pensei que fosse engano. Bom, realmente era isso mesmo. Ele veio ao Brasil e disse que viria a São Paulo me conhecer. Nós nos encontramos na casa de um amigo da imprensa, conversamos uma noite toda e ele foi para a Bahia me deixando seus endereços lá. Em 1993 eu fui chamado para o primeiro show fora, comecei a fazer excursões e o Brasil começou a prestar atenção.

O que você achou disso, de ser necessário um estrangeiro para "descobrir" você?
Eu vou te contar um caso sobre como é difícil mudar a cabeça das pessoas aqui no Brasil: David Byrne contou certa vez numa entrevista que, em 1987, 1988, já tinha descoberto meus discos e disse a um brasileiro que ele queria fazer um trabalho comigo. Ele falou da idéia dele para umas três pessoas, todas disseram que era loucura. Uma dessas pessoas até disse a ele: "O quê? Com tanto músico bom no Brasil você vai fazer um disco com o Tom Zé?" Aí, David Byrne conclui na tal entrevista: "Foi aí que eu me convenci de que a música de Tom Zé tinha muito mais a ver com a atividade criativa de Nova York do que com a vida brasileira." Eis por que ele veio me descobrir. É muito difícil mudar a cabeça de pessoas que já tem estabelecido que você é ruim. E o Brasil tinha estabelecido isso. Eu tentei desistir, mas aí David Byrne não deixou.

Ou seja, em vez de ser frentista em Irará, você acabou em Nova York.
Veja você. Justo eu que nunca pensei em sair de Irará. Só fui estudar o ginásio em Salvador porque não existia na minha cidade. Mas eu nunca pensei que viria para São Paulo, Rio de Janeiro e nenhum desses lugares. Para mim isso era um mistério insondável, eu era muito acanhado quando era criança, a cidade de Salvador já era um terror para mim. Tanto que minha vida nas férias era Irará. Em Salvador eu nunca tive turma, a não ser a do Tropicalismo, de 1964 em diante. E, de repente, eu vim para São Paulo e na hora de voltar para minha terra fui para Nova York.

E sobre o Tropicalismo. Houve duas figuras importantíssimas para o movimento, que foram fundadoras dele, e que ficaram à parte depois: você e o Torquato Neto. O que aconteceu?
Aconteceu uma coisa muito dolorosa com Torquato. Ele era o letrista oficial do Tropicalismo. Gil naquele tempo não gostava de fazer letra e o próprio Caetano fazia música com a produção de Torquato. Nos festivais de 1967, quando o Tropicalismo estava sendo lançado, e 1968, quando eu comecei a participar, eu senti a ausência dele. Onde estava Torquato Neto? O que se vai fazer... Gil sentou em casa e fez aquela letra maravilhosa de Domingo no Parque, Torquato tinha dado uma letra para Caetano, Capitão Virgulino, mas Caetano estava em dúvida entre essa e Alegria Alegria - imaginem que coisa engraçada. Capitão Virgulino era uma letra e uma música com as coisas mais tradicionais do nosso mundo, que já não era mais tão tradicional assim. Nós todos, naquela animação com ele do lado, nem pensávamos no abismo que tinha se instituído com a presença dele. Isso em 1967. Em 1968 Gil e Caetano resolveram não participar, fizeram uma música em parceria para a Gal cantar, eu voltei com São Paulo Meu Amor, e Torquato continuou fora. Um dia ele quis cantar e Guilherme Araújo espantou-se como se fosse uma loucura completa. Mas era mesmo uma saída daquela mudez à qual ele estava submetido. No meu caso, foi uma das coisas naturais. O problema da comunicação de massa é que ela atrai o que está mais forte. Eu poderia me queixar, mas eu não faço queixas porque o lado queixoso no Brasil não é aquele que acorda cedo para abrir a loja, o lado que se queixa no Brasil é aquele que acha que reclamar é prerrogativa estética que pode dar mais lucro. Eu, por uma intuição abençoada por Deus, nunca entrei nesse negócio. Eu estive na miséria de 1973 a 1990 e nunca fiz uma queixa contra gravadora, público ou crítica. Eu tinha cometido erros estratégicos e tinha de pagar por eles. Ia me queixar de quê?