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Tempos modernos

O professor de ética e política da USP, Renato Janine Ribeiro, esteve presente em reunião de pauta da Revista E e falou, entre outras coisas, sobre a escolha brasileira entre as fortes raízes culturais e a fluidez de costumes que parece permear a sociedade moderna na era da globalização. A seguir, trechos transcritos da conversa:

Imaginem uma tribo que seja mais ou menos fechada em si própria. Ótimo que assim fique, talvez ela precise ser preservada, mas isso no mundo de hoje é muito difícil e raras vezes acontece. Nós somos geralmente submetidos a vários tiroteios culturais. Tomemos por exemplo um imigrante vindo do interior paulista ou do Nordeste e que esteja bombardeado pela cidade: primeiro, acho muito bom que não se passe uma borracha na origem dele; se ele é nordestino, é positivo que tenha acesso à comida, à música e às coisas da sua região, e que isso não seja de forma alguma desprezado ou apagado. Se for negro, é excelente que a negritude, a África e tudo o mais sejam conhecidos e valorizados. Isso não se nega. Porém, embora ache importante não se esquecer a raiz ou origem dessa pessoa, é inegável que ela estará o tempo todo em contato com outros espaços. Seria absolutamente falso tentar preservar essa pessoa numa redoma dentro de uma cidade grande ou dentro do mundo contemporâneo, que é um mundo de bombardeios constantes de experiências muito diferentes. O ponto que considero importante enfatizar é que, longe desses bombardeios que desarraigam serem em si mesmos uma coisa ruim, eles constituem um fator de libertação.

No olho do furação
Se somarmos o fato de que o Segundo Mundo sumiu e o Terceiro Mundo foi humilhado, parece que só restou, como objeto de desejo, o Primeiro. Em 1974 eu estudava em Paris quando houve a Revolução dos Cravos, em Portugal. Foi algo que entusiasmava, sobretudo para quem era brasileiro. Fui a Portugal e me impressionei ao, de repente, ver tantas coisas ditas livremente na minha língua. Embora a língua deles seja tão diferente da nossa, vindo da França eu sentia a felicidade de ouvir a liberdade sendo falada em português.
Ora, um dos temas de destaque durante a Revolução dos Cravos era a idéia de que talvez a opção de Portugal devesse ser pelo Terceiro Mundo e não pela Europa, engendrando uma aliança nova entre Portugal e as antigas colônias. Isso fracassou - provavelmente não havia condições econômicas e sociais para tal. A opção portuguesa acabou sendo pela Europa e isso implicou o desvínculo com as antigas colônias, mesmo conosco. Isso é muito significativo de nosso tempo. O Primeiro Mundo se tornou um ideal, só que um ideal sem ideal.
Tenho-me perguntado muito, nos últimos anos, o que aconteceu no embate entre direita e esquerda - termos que ainda reputo pertinentes. Diria que a esquerda conserva os fins que ela criou, pelo menos o valor da solidariedade; mas deram errado os meios que ela utilizava antigamente para atuar, que eram os meios de controle estatal. Na fase em que estamos, a da Internet, muitos modos antigos de controle não funcionam mais. Por mais que eu possa espionar pela Internet, não tenho condições de monitorar todo o material coletado. Os EUA não conseguiram prever o atentado contra as torres. Então, de um lado, os meios convencionais da esquerda, que seriam os meios de controle, deram errado. E o capital, enquanto isso, gerou meios mais livres de funcionamento, como, por exemplo, contrato de gestão, terceirização e flexibilizações, que funcionam muito bem no plano da eficácia. Mas as finalidades que a direita ou o capital tinham foram embora.
Estive na Inglaterra há uns dez anos e vi pela TV um congresso do Partido Conservador. As velhinhas reclamavam que a chefia de seu próprio partido quisesse abrir o comércio aos domingos, 'no dia do Senhor', diziam. O governo deixava claro que nada tinha a ver com elas, seu negócio era outro. O que se via eram valores conservadores de décadas, e mesmo séculos, sendo jogados fora. Isso cria um mundo curioso, porque por um lado se tem um avanço extraordinário em meios, que são os do capital, da direita, do Primeiro Mundo, dos ricos - e que são fabulosos. Agora, os ideais, metas e fins... bem, não procurem porque existem. Isso sem mencionar a valorização do indivíduo e destruição do coletivo, que é um ideal negativo.
Penso que há ideais que precisam ser explorados e mais desenvolvidos. Seriam, em linhas gerais, os ideais da esquerda, que eu sumarizaria num termo vago, mas rico, que é a solidariedade. Por isso, quando ouço 'como está difícil ser brasileiro', acho que se pergunta qual a nossa solidariedade possível e desejável. Não precisa ser a identidade forte, a folclorização da política, a recusa do novo, a defesa de uma música sem inovações, nada disso. Até porque um dos nossos pontos de excelência é a música popular e ela é extraordinariamente capaz de assimilar novas influências, mantendo-se rica e nossa.