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Tudo Começa em Barro

A exposição Do Barro ao Barro, no Sesc Pompéia, propõe uma viagem pela história da matéria-prima que acompanhou o homem em seu caminho rumo à civilização

Depois do carnaval, maior festa popular do País, melhor época para celebrar a nossa cultura popular não há: junho é o mês de revisitar o Brasil. Em cada quermesse, cada quadrilha, cada festa junina de colégio, está uma grande chance de tomar contato com o artesanato, comidas, danças e brincadeiras que nascem da expressão espontânea nas diferentes regiões desse País. Em São Paulo, a festa junina do Sesc Pompéia já é programa tradicional nessa época. Mas este ano os técnicos da unidade arriscaram brincar com a tradição. O resultado é a exposição Do Barro ao Barro, que segue em cartaz até o dia 31 de agosto e substitui a tradicional festa junina. "O imaginário dessa época tem a ver com o interior do Brasil", explica Marcos Villas Boas, técnico da unidade. "Com o artesanato em cerâmica, os santos de barro e as casinhas de pau-a-pique. Se tudo isso é feito de barro então por que não falar sobre ele?" O objetivo é mostrar ao público justamente o quanto o barro está presente na cultura popular do Brasil e dos mais diferentes povos ao redor do mundo.
Falar da presença do barro na história do homem é assunto vasto. Para não se perder em tanta história, os idealizadores da mostra se fixaram em um recorte. "Nos restringimos a falar do artesanato e das moradias de barro do Estado de São Paulo", volta Villas Boas. "São Paulo tem muita ligação com o barro. A capital foi construída com ele e o interior tem um rico artesanato desse material também." A mostra trouxe peças das figureiras de Apiaí, Taubaté e Iguape, dos ceramistas de Cunha e das paneleiras de São Sebastião. Além de expor o artesanato dos índios Asurinís que vivem no Alto Xingu. "Haverá somente peças feitas por esses artesãos. Nenhuma peça será de museu", complementa Percival Tirapeli, professor de História da Arte e curador da exposição. Desde o dia 13 de junho, a área de convivência do Pompéia se transformou numa pequena cidade de taipa, com réplicas da fachada de uma igreja, casas de pau-a-pique, olaria, forno para a queima do barro e artesãos in loco produzindo suas peças. A partir do dia 27 de junho, outra parte da exposição será inaugurada no deck da unidade. Lá, uma típica vila com elementos da cultura do barro será erguida, mas não completamente. Até o fim da exposição, é o público quem construirá uma casa de taipa com as próprias mãos. O manuseio com o barro também poderá ser experimentado nas oficinas que acontecerão durante o evento (confira datas e horários no Caderno de Programação). E, como não dá para faltar numa homenagem a nossa cultura popular, barraquinhas com comidas típicas, brincadeiras de rua e grupos de dança complementam a programação em Do Barro ao Barro.

Quem faz o barro virar arte
O artesão que trabalha com o barro é chamado de oleiro. Mas essa denominação muda de região para região. Em alguns lugares essas pessoas são chamadas de figureiras, em outras de paneleiras. Um dos mais famosos figureiros do Brasil é o pernambucano Mestre Vitalino. No Estado de São Paulo os representantes da técnica vêm da cidade Apiaí e Taubaté, e as paneleiras, de São Sebastião. Eles produzem utensílios usados no dia-a-dia e figuras que muitas vezes são inspiradas em cenas do cotidiano. "Gosto de reproduzir as figuras que vejo no universo caiçara", conta Milton Duarte, figureiro de Iguape, no litoral paulista. "São cozinheiras, pescadores e jogadores de truco." Já em Taubaté o costume é reproduzir animais e figuras do universo sacro. Em Apiaí, a produção é, principalmente, de utensílios.
A profissão do oleiro é uma das mais antigas que se tem notícia e até hoje pouca coisa mudou no cotidiano desse tipo de artista. A matéria-prima continua sendo a mesma e o torno, usado para conseguir a fôrma oca de potes e panelas, é, provavelmente, o instrumento de trabalho mais antigo que existe. "Sabemos que na Antiguidade, na cidade de Susa, região do Oriente Médio, cerca de 4500 anos a.C. já se usava o torno", retoma o professor Tirapeli. "Depois de Susa, o torno passou a ser usado também na Mesopotâmia, atual Iraque; Egito - onde havia até um deus protetor dos oleiros -; Grécia; Etruria, atual Itália; e finalmente chegou às margens do Rio Danúbio, no norte da Europa." Apesar dos 4500 anos que se passaram do primeiro torno que há notícia, pouca coisa mudou também na rotina de transformar o barro em moradia, arte ou utensílio. A labuta de um oleiro continua sendo essencialmente amassar o barro, confeccionar suas peças e depois negociá-las.

Metrópole de barro
A história da cidade de São Paulo está intimamente ligada à abundância do barro e à escassez de pedras nessa região do Brasil. No início da colonização, as moradias eram erguidas com taipa de mão e por volta de 1560 passou-se a utilizar a taipa de pilão. Somente a partir de 1860 foi que as casas passaram a ser construídas com tijolos. Assim foi até a primeira metade do século 20, quando adotou-se o uso do concreto. O barro foi tão fundamental para os primeiros desbravadores da colônia que alguns jesuítas vinham para cá trabalhar somente como oleiros. Utensílios domésticos, casas e igrejas eram todos feitos dessa matéria-prima. O barro foi usado até para defesa. Eram constantes os ataques de índios à Vila de Piratininga (primeiro nome de São Paulo) e para protegê-la construiu-se uma muralha que a isolava de todo o resto. Essa muralha era toda feita de taipa de pilão. A catequização dos índios também valeu-se do barro. Nesse caso, os jesuítas aproveitaram que eles já detinham técnicas de artesanato com barro para ensinar-lhes sobre religião. Em vez dos utensílios que costumavam fazer, passaram a produzir imagens do catolicismo, como presépios e santos de barro.
Da época de colônia e mesmo de seu passado mais recente, pouca coisa resta na memória de São Paulo, já conhecida por passar como um trator em cima das marcas de sua história. Mas algumas dessas construções conseguiram sobreviver ao frége das mudanças que transformou em inimigos o futuro da cidade e os monumentos do passado. A partir da estação Sé do metrô, na região central, você pode visitar algumas delas. (Confira outras sugestões do roteiro do barro em São Paulo na exposição).


Só o Barro Constrói
Para que o homem pré-histórico deixasse sua condição de nômade e pudesse parar num lugar, era necessário poder estocar água e alimentos. A descoberta do barro como matéria-prima para produção de utensílios foi fundamental para que os povos conseguissem armazenar os suprimentos e assim se fixassem num lugar para construir as sociedades. A impermeabilidade e a durabilidade da cerâmica foi o que possibilitou a retenção da água e a estocagem da comida. Foram também essas propriedades da cerâmica que permitiram o cozimento dos alimentos. Não se sabe exatamente quem foi o primeiro povo a fazer um pote ou a construir uma casa de taipa de mão. "Há registros de peças produzidas já no período paleolítico, 30 mil anos antes de Cristo. Mas não podemos dizer quem foi que fez a primeira peça de barro", afirma o professor de História da Arte e curador da exposição Do Barro ao Barro do Sesc Pompéia Percival Tirapeli. O que estudiosos da História da Arte e da Arqueologia sabem é que o barro aparece na história de vários povos, nos quatro cantos do mundo. Com o sedentarismo, as sociedades puderam desenvolver-se e o uso do barro foi impulsionado. Deixou a modesta condição de utensílio e ganhou status de templo, de proteção, saltando do solo para transformar-se em moradia.
São muitos os monumentos famosos da humanidade que foram construídos graças ao barro. Na Mesopotâmia, atual Iraque, os Zigurates, templos sagrados construídos em forma de torre, eram feitos de adobe, grandes blocos de barro ressecado. No Egito, as pirâmides em degraus conhecidas como Mastabas foram construídas com milhares de tijolos ressecados. Na Grécia, artistas da Antiguidade esculpiram valiosas obras de arte a partir do barro. Os vasos gregos são admirados no mundo todo. Roma é tida como a cidade da cerâmica. O Coliseu, por exemplo, foi erguido sobre o sustento dela. Maias e astecas na América Central usavam o barro na confecção de urnas funerárias, assim como os índios asurinís que vivem na região do Alto Xingu são conhecidos por seus desenhos geométricos em objetos de cerâmica. Na gruta de Ariége, na França, entre 20 mil e 10 mil a.C., foi reproduzida em argila a cena de acasalamento de bisontes (ancestrais do boi). A capacidade de fazer arte foi uma das expressões a diferenciar os homens dos animais. E as primeiras manifestações dela foram encontradas em barro.
Impossível falar sobre cada povo que já misturou água com a terra, colocou a massa para secar e em seguida a transformou em um mero pote para guardar grãos ou em uma das sete maravilhas do mundo, como as pirâmides do Egito. Mas considere que a primeira casa de muitos povos não teria sido erguida sem essa simples matéria-prima e que a primeira colheita não teria sido armazenada. Levemos em conta que muitos olhos conheceram o êxtase ao enxergar as incríveis engenhocas da humanidade preparadas a partir do aperfeiçoamento do uso do barro e que até muitas naves espaciais não teriam voltado à Terra se não fossem as tais placas de cerâmica para protegê-las. Agora pare para pensar nas conseqüências das artes e das ciências na nossa existência. Poderíamos, então, concluir que pelo menos a primeira parte daquele mito bíblico que diz "do pó viemos e a ele retornaremos" tem muito mais verdade do que imaginamos. Resta agora saber como se cumprirá o final da história.

Afinal, o que é o barro?
Isso mesmo que você pensou, simplesmente a mistura de água e terra. Esses dois elementos combinados servem para construir desde uma simples moringa até as mais ousadas invenções do homem. A questão é a quantidade de cada um nessa mistura e depois a temperatura a que o material é exposto. "O barro está na composição tanto de uma moringa como na de ônibus espaciais, pois as placas que revestem a parte externa das naves são compostas também por cerâmica. Por sua alta capacidade de resistência, ela consegue segurar o impacto causado na nave devido à mudança brusca de temperatura no momento em que se cruza a atmosfera da Terra. Essa mesma técnica é usada também para revestir coletes à prova de bala", explica o professor Percival Tirapeli.

Roteiros do barro em São Paulo
Solar da Marquesa de Santos (Rua Roberto Simonsen, 136)
Construída com taipa de pilão, a casa onde viveu a famosa amante de D. Pedro I ainda está lá. Tem até a banheira em que ela tomava banho e alguns de seus objetos pessoais.
Páteo do Colégio (Praça Páteo do Colégio, 2)
Ao lado do Solar da Marquesa, foi aqui onde tudo começou, quando o padre Manuel da Nóbrega celebrou a primeira missa no dia 25 de janeiro de 1554. Dois anos mais tarde, os jesuítas construíram ali um colégio para catequizar os índios. Em 1882, parte da construção foi demolida e o lugar tornou-se sede do governo. Somente em 1954 uma réplica do antigo prédio foi construída. Felizmente sobrou uma parede de taipa de pilão da construção original e é por esse pedacinho que é possível imaginar como devia ser aquele lugar há quase 450 anos. Atualmente, funciona no local o Museu Padre Anchieta. Lá há uma maquete da muralha que cercava a cidade.
Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco, 95)
Saindo do Museu Padre Anchieta, caminhe até a Rua Direita, em direção ao largo do Patriarca, e pegue a Rua São Bento, em direção ao Largo São Francisco. Lá está a Faculdade de Direito, um imponente prédio da década de 1930, construído com tijolos no estilo neocolonial.