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Países irmãos

Em artigos exclusivos, professores e especialistas analisam a integração cultural entre o Brasil e os demais países da América Latina e apontam o que é preciso para reforçar ainda mais os laços

Walnice Nogueira Galvão
é professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP), escritora e ensaísta

A literatura hispano-americana, ao multiplicar panoramas da diversidade do continente, viria a ser a divulgadora de nossos vizinhos. Assim vislumbramos em caleidoscópio o pampa portenho de Martin Fierro y Don Segundo Sombra; o páramo e o llano mexicanos de Juan Rulfo, tanto quanto a saga das revoluções naquele país, painel a muitas mãos, entre as quais as de Carlos Fuentes; o llano venezuelano de Rómulo Gallegos; a floresta equatorial de Miguel Ángel Asturias, de Alejo Carpentier e do Vargas Llosa de La Casa Verde; o confinamento no lugarejo colombiano de García Márquez; as alturas andinas de Jorge Icaza e Manuel Scorza; a Havana boêmia de Cabrera Infante e o paraíso de Lezama Lima; a conexão Buenos Aires-Paris de Cortázar e seu jogo de espelhos. É bom lembrar que entre os mais traduzidos e bem cotados escritores do planeta assinala-se um oriundo da América Latina, o argentino Jorge Luís Borges, cuja obra cobre desde o pampa em El Sur até os arrabaldes e as topografias imaginárias. E os versos de Martí, Rubén Darío, Neruda, Octavio Paz nos embalaram.
A ignorância que abrigamos com relação a nossos vizinhos só se compara ao fascínio que sobre nós exercem Europa e Estados Unidos. Desdobrando-se em preconceito, acaba por envergonhar-nos do parentesco: afora descendermos de latinos e ibéricos como eles, somos igualmente um povo mestiço. Esquecemos que eles são os herdeiros de civilizações extraordinárias, como a azteca, a maia e a inca, deliberadamente dizimadas pelos conquistadores, num dos piores genocídios e etnocídios que a humanidade já conheceu.
Suas artes plásticas, cinema, música popular são variados, marcantes e vivazes. Mal os conhecemos. Ouvimos falar da pintura muralista mexicana, de Frida Kahlo e de Botero. A popularidade da Mafalda de Quino atravessa os tempos ao alastrar-se por nosso país. Freqüentamos no passado os melodramas do cinema e das novelas mexicanas - objeto da homenagem de Nelson Pereira dos Santos, em Cinema de Lágrimas (1993) - e piscamos o olho ao cinema cubano. Nossos ouvidos se afinam aos acordes de Carlos Gardel, Ginastera e Lalo Schiffrin, de Piazzola, e do tango, de Mercedes Sosa e Violeta Parra, dos músicos de Buena Vista Social Club, do bolero, da rumba, do mambo, da conga, do merengue, da salsa. E pouca coisa mais. Hoje, estamos redescobrindo os filmes mexicanos da atualidade, e descobrindo os argentinos. Além disso, devemos à Editora Fondo de Cultura Económica, do México, décadas de divulgação dos clássicos de alto nível (e nem de longe só "econômicos", como o nome sugere) que o melhor pensamento mundial pode oferecer.
É verdade que eles retribuem a indiferença que lhes consagramos, e quase nada sabem de nós. Às vezes, podem manifestar simpatia, como é o caso de Cuba, que admira nossa miscigenação de alto teor negro, assemelhando-se à sua, e por isso nossa música popular, lá bastante disseminada e apreciada. Devolvendo a gentileza, cativaram-nos Pablo Milanez e la nueva trova. Mas é algo raro. E mesmo a circulação universitária é menor do que deveria ser, dadas não só a proximidade como a coincidência de interesses. Ainda mais quando temos a temer o fundamentalismo do mercado e a invasão da indústria cultural proveniente dos Estados Unidos, cujo rebaixamento massificado ameaça desfigurar-nos a todos.
É em boa hora que nosso país se decide a requestar seus irmãos de continente, dando os primeiros passos para mitigar esse desdém mútuo que faz pouco de nossas heranças e tanto nos empobrece. Afinal, não é só a Cordilheira dos Andes que nos tem separado.


Cremilda Medina
é jornalista, professora titular da Universidade de São Paulo e vice-presidente do Programa Latino-Americano de Pós-Graduação (PROLAM-USP)

"Porventura auspicioso sintoma de renascimento da América Latina e de uma pobre ambição de sair da insulação em que tem jazido é o aparecimento de tantas publicações, em que seus filhos lhe estudam vários aspectos e procuram informar o mundo de toda a vida de seus países." Este texto, publicado no jornal O Imparcial a 20 de dezembro de 1912, traz à tona a afirmação cultural dos países latino-americanos no começo do século 20. O autor, José Verissimo, proclama uma fronteira singular de cultura e civilização, o que tocou outro escritor e teórico da literatura na década de 1980. João Alexandre Barbosa resgatou então, no livro Cultura, Literatura e Política na América Latina, da Editora Brasiliense, os ensaios de um intelectual brasileiro convicto da latino-americanidade na passagem do século 19 para o século passado.
Os pesquisadores que se debruçarem sobre as recorrências seculares certamente vão encontrar as marcas históricas do desejo de integração desse grande espaço geopolítico que abriga países hispano-americanos e Brasil. Corre hoje nos meios acadêmicos norte-americanos uma divisão do mundo em áreas culturais, ou civilizações, cujas diferenças de visão de mundo resultam em fortes antagonismos. Tal demarcação pode (e deve) ser associada à noção de relativismo cultural, que supera o conceito de cadeia evolutiva tão caro à civilização ocidental. O fato inegável de ser a mais avançada do ponto de vista tecnológico não a coloca em posição de superioridade perante outras áreas distintas, como a civilização chinesa (ou sínica), japonesa, ortodoxa, islâmica, indu, africana e latino-americana.
Na perspectiva de Antônio Cândido, em outro ensaio do final dos 1960, "Literatura e Subdesenvolvimento" (publicado no livro Educação pela Noite), a consciência de integração na América Latina já atingiu um grau de maturidade que lhe dá condições de afirmar projetos criativos para suas sofridas sociedades. Partindo da expressão literária para a interpretação sociológica, Cândido observa que já se operou uma síntese no contexto das diferenças e dos conflitos culturais: primeiro, a consciência dilacerada do atraso, depois, da década de 1960 do século passado aos nossos dias, gradualmente se avança para a consciência da superação. O pensador e homem de ação reafirmava, 20 anos depois, em entrevista publicada na revista Dia.Logos de la Comunicación, a esperança no século 21.
Efetivamente, se a tragédia econômica e social está aí perturbando a consciência latino-americana, há conquistas ímpares para exibir às demais civilizações que provêm de traços integradores em meio às particularidades nacionais. Nas últimas décadas, por exemplo, houve um extraordinário florescimento democrático. O continente se livrou de golpes ou quarteladas e as tentativas dessa natureza fracassaram. Crises políticas agudas foram superadas dentro dos marcos democráticos (fim da ditadura e saída do presidente Fernando Collor no Brasil, fim da ditadura na Argentina, Chile e Uruguai, queda de Fujimori no Peru, renúncia de Fernando De La Rua na Argentina). Outras áreas culturais do mundo assumiram a idéia de democracia, podem hoje admirar a experiência latino-americana. É o caso da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. E nesse sentido, os do Sul ainda estão espantados com as últimas eleições norte-americanas: como Bush ganhou de um adversário com mais votos populares?
Mas é, sem dúvida, na relação humana do cotidiano que se encontram as digitais integradoras dos povos banhados pelo Sol que quase falam espanholês ou portunhol. Um lugar original assinalado no mapa-múndi pela mestiçagem, sincretismo religioso, disposição para a festa e a celebração, ausência de limites estritos entre trabalho e lazer, alegria de viver, otimismo, abertura para a inovação, anarquismo ou pouca confiança no Estado, convívio com a adversidade e rápidas respostas à solidariedade. O território contínuo e gigantesco da América Latina dá mostras também de uma capacidade misteriosa, a de transcender o caos da própria realidade terrena e criar um cosmos mítico. Os latino-americanos não têm medo do inconsciente coletivo e de brincar com seus desejos profundos.


Jorge Schwartz
é professor titular de Literatura Hispano-Americana da Universidade de São Paulo

"América Latina" transformou-se com o tempo em desgastada palavra-talismã. É como se o traçado da Linha de Tordesilhas ainda tivesse vigência no mapa das nações latino-americanas, que até hoje olham com mais facilidade para os grandes centros de decisão (Washington, Nova York, Paris, Londres) do que para as capitais vizinhas.
Sonho de conquistadores da época colonial, tema de utopias pan-americanistas do século 19, enfim, a América Latina tornou-se uma desgastada imagem cunhada nas guerras napoleônicas e que prevalece até hoje no imaginário das culturas hispano-americanas e brasileira. Nunca houve, a meu ver, por parte de seus países uma política cultural oficial consistente capaz de dar sentido e de unificar de fato o que poderia ser considerado um continente. Esforços esporádicos sim. O próprio Memorial da América Latina, monumental complexo sediado no bairro da Barra Funda, em São Paulo - e que inclui um Parlamento Latino-Americano (o Parlatino) - dá a impressão de que ainda não cumpriu sua missão, com a plenitude que aquele espaço merece.
Fatos recentes, porém, que devem ser destacados, são certas ilhas de excelência na área da Ciência e Tecnologia. Ao ter abolido a xenófoba restrição de contratação de docentes estrangeiros em universidades federais e estatais brasileiras, o governo FHC sem dúvida deu início a um período de abertura política para o intercâmbio do conhecimento e da informação. Nossas agências de fomento (CNPq, Capes, Fapesp) têm sido generosas no patrocínio de bolsas de nível superior a candidatos da América Latina com projetos meritórios. O número de estudantes latino-americanos é cada vez maior e, acredito eu, se trata de um intercâmbio fundamental para a cooperação com os países vizinhos.
Também o mapa editorial modificou-se muito nos últimos anos; se antigamente tínhamos de recorrer inevitavelmente a difíceis processos de importação de livros, o número e a qualidade das traduções do espanhol têm aumentado e melhorado de forma significativa. A participação regular de escritores de renome (entre outros o argentino Juan José Saer ou o peruano Mario Vargas Llosa) como articulistas em periódicos de grande tiragem tem ampliado o leque de nossas fronteiras culturais. Louvável também têm sido as diversas bienais do Mercosul sediadas em Porto Alegre, descentralizando assim o tradicional eixo Rio-São Paulo: as bienais paulistas, ainda vigorosas, já completaram mais de 50 anos. Acho, porém, que a presença cultural brasileira nos países vizinhos, a não ser na área da música popular e das telenovelas, é ainda limitada e deixa a desejar.
O boom do ensino do espanhol no Brasil, assim como do português nos países hispânicos, é sem dúvida um fenômeno sem precedentes, até a possibilidade de inclusão do espanhol em currículos de ensino médio e em vestibulares universitários. Se o perigo do portunhol está sempre presente, tem havido grande avanço nas pesquisas das linguagens contrastivas. (Gostaria apenas, como curiosidade, de lembrar que, já nos anos 1920, um grande pintor e pensador argentino, Xul Solar, interlocutor de Borges, inventou o neocriollo, linguagem utópica formada basicamente pela conjunção do espanhol e do português, destinada a ser uma espécie de língua franca do continente latino-americano.
O momento político atual privilegia uma estratégia comum e uma liderança do Brasil em relação ao Mercosul. Essa atitude é bem mais realista do que pensar na América Latina como um único bloco e acho, de grande astúcia diplomática somar esforços com a Comunidade Européia, para fazer frente às propostas da Alca, aparentemente embutidas de grande protecionismo para os interesses norte-americanos. Fica claro que a obsessão atual do governo norte-americano com a política do Oriente Médio redunda na ausência cada vez maior de uma prioridade política, econômica ou cultural para com a América Latina. Mais do que nunca, é hora de nos olharmos e de nos virarmos!

Antônio Carlos Lessa
é professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e editor-geral do site RelNet (www.relnet.com.br)

É um fato conhecido por todos os que acompanham as desventuras do Mercosul dos últimos anos que a integração na região não avançou não apenas por causa das crises econômicas que varreram os países membros, com efeitos devastadores sobre alguns dos mais importantes parceiros, como a Argentina, mas também porque os governos nacionais insistiram num caminho bastante conservador para perseguir a integração. Assim, em lugar da esperada integração econômica, que levaria no médio prazo ao fortalecimento das empresas da região pelo engrandecimento dos mercados consumidores, que deveria se dar pela crescente integração produtiva, insistiu-se na integração comercialista, que produziu excelentes índices no comércio exterior, mas que não resistiram às crises cambiais que se tornaram características nos países da região. Enquanto isso, ainda que alguns setores viessem insistindo na necessidade de se dar início a uma nova perspectiva de integração, como a cultural, muito pouco foi feito nesse sentido.
Por outro lado, a crise que se experimenta no Mercosul pode ser o motivo esperado para que se dê início a uma ambiciosa vertente de integração cultural, que não deve se resumir à visão das denominadas indústrias culturais (espetáculos culturais, indústria editorial, multimídia, cinema e vídeo, etc.) - e nesse campo, já há muito a ser feito - mas que pode ser alargado até chegar a ambiciosos programas de mobilibidade que facilitem a aprendizagem direta das culturas nacionais pelo simples convívio a ser proporcionado aos estudantes de diferentes idades e aos profissionais de diversos setores por meio do intercâmbio e da criação de facilidades que lhes permitam as realidades nacionais e partilhar com colegas de outras nacionalidades uma visão do futuro comum que têm os países do Mercosul.
Esses programas têm uma história antiga e de muito bons resultados que remonta à construção da parceria entre a França e a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, a partir de quando os líderes dos dois antigos países inimigos decidiram que, para consolidar e dar densidade à integração econômica que estava sendo implementada na Europa Ocidental, era necessário superar a história de rivalidades e ódios que separou os povos dos dois principais países do Mercado Comum Europeu, levando-os a se conhecerem e a perceberem que não eram apenas vizinhos, mas que enfrentavam os mesmos problemas e que tinham um futuro comum. Foi a partir de 1963, no âmbito dos denominados Acordos do Eliseu - assinados pelo presidente da França, Charles de Gaulle, e pelo primeiro-ministro da Alemanha, Konrad Adenauer, e cujo quadragésimo aniversário foi comemorado em todo o mundo em fevereiro do corrente ano -, que foi estabelecido um escritório franco-alemão para a juventude, encarregado de implementar programas de intercâmbio entre estudantes de escolas primárias, secundárias e universitários entre os dois países, que prepararam o terreno para o posterior envolvimento de agremiações esportivas, de grupos culturais, de trabalhadores dos mais diversos setores, de professores, de sindicalistas, etc. Estabelecia-se, a partir daí, um dos vetores mais importantes da bem-sucedida integração européia, que é justamente o entrelaçamento das sociedades européias em torno de causas comuns, que ultrapassam as rivalidades do passado para se dedicarem, solidariamente, à construção de condições definitivas para a prosperidade material que é, afinal de contas, o objetivo último de qualquer processo de integração econômica.
Muito se tem debatido nos últimos anos sobre os problemas do Mercosul, cujo aprofundamento esbarra em obstáculos que parecem, por vezes, serem intransponíveis, dado o desafio de coordenar as políticas macroeconômicas dos países membros e de devolver ao comércio regional o dinamismo conhecido na sua era de ouro, mas pouco se tem aprendido com as lições dadas pela Europa, e, particularmente, com a necessidade de se avançar muito além da economia, para criar uma verdadeira comunidade cultural na região. Não seria este um excelente caminho para o início da construção da nossa comunidade mercosulina?


Fernanda Pitta
é doutoranda em História pela Unicamp e animadora sócio-cultural do Sesc São Paulo

Muito já se discutiu a respeito do Apartheid sócio-cultural que separa o Brasil dos países da América Latina. Das rivalidades que expressam preconceitos arraigados (entre brasileiros e argentinos - nós, os "macaquitos"), aos estereótipos construídos sobre os escombros de nossas próprias barbáries (como o termo "paraguaio" para tudo o que é de qualidade duvidosa), o sonho de uma América Latina unida, nascido nas lutas de independência dos países de herança espanhola, colocou de saída um problema para o Brasil: a peculiaridade de sua colonização e do processo de independência - que se deu como "interiorização da metrópole" (M. Odila Dias) e não como resistência ao colonizador ibérico.
O Brasil formou-se como uma nação voltada para fora. A exploração colonial foi redesenhando o continente original ora como modelo inalcançável, ora como a marca de Caim de nossas mazelas, dando costas tanto para o interior do território quanto para o do continente.
Dos momentos em que nos voltamos para dentro reconhecemos impulsos destrutivos, tentativas de apagar o cerne de nosso conflito identitário expurgando aquilo que mais se assemelhava à nossa auto-imagem negativa. Da Guerra do Paraguai saímos como a nação que derrota a Barbárie em nome da Civilização, ao preço da destruição quase completa de um país. De Canudos, autores do genocídio inaugural de nossa população marginalizada.
Foi talvez somente com o chamado "desrecalque localista" (A. Candido) dos modernos que pudemos encontrar um equilíbrio entre o impulso de interiorização e a necessidade de compasso com a contemporaneidade. Processo esse que culmina, não sem contradição, em Brasília.
Com a modernização conservadora promovida pelas ditaduras que se instalaram no continente, a integração cultural passou a se dar mais intensamente, para bem ou para mal, através da indústria cultural. Como reação ao modelo de desenvolvimento ditatorial, surge o sonho visionário de Glauber Rocha que, na companhia dos argentinos Solanas e Getino, dos cubanos Espinosa e Alea, propôs o cinema como a forma criativa capaz de promover a integração cultural da América Latina: "Existe um problema comum: a miséria. Existe um objetivo comum: a libertação econômica, política e cultural". (Glauber Rocha). Projeto que se interrompeu, mas que talvez esteja ressurgindo - vide o excelente cinema argentino que se realiza malgrado a crise.
As palavras do presidente Lula em seu discurso de posse afirmam que este é o momento "do encontro do Brasil consigo mesmo". Talvez, para tanto, seja também essencial cruzar definitivamente "as cordilheiras culturais" que nos separam de nossos vizinhos. Uma integração que não se restrinja a esta ou aquela esfera, mas que se veja nas ruas, nas cores, sons e sabores do nosso dia-a-dia.