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Teatro
A alma do ator
Uma nova linguagem." Assim sucintamente responde o aclamado diretor Antunes Filho sobre o que ele busca para o seu teatro. Mais que isso: para o teatro em si e das futuras gerações deste País. Essa nova linguagem tem nome. Paradoxalmente, um nome rebuscado e cheio de acentos e hífens. Prêt-à-Porter. "É um nome sofisticado para um teatro pobre", brinca Antunes. "É fácil de levar ali, acolá. Põe numa caminhonete e leva para qualquer lugar. Este custou 580 reais." Prêt-à-Porter é um espetáculo - uma série deles, na verdade -, um método, uma técnica, uma estética. O primeiro trio de esquetes apresentado sob esse nome foi visto em 1997. Com a continuação do projeto, a montagem entrou para a história do CPT - Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por Antunes no Sesc Consolação, como Prêt-à-Porter 1. "Quando eu comecei a fazer, eu estava propondo sem cenário, sem luzes, sem som, sem nada, reciclando o material", lembra-se o diretor. "Eu fui abandonado, ninguém acreditava no projeto. Eu fiquei sozinho falando no corredor, a sorte é que o Sesc me deu força para eu levá-lo adiante." Antunes recorda também das opiniões ouvidas. Nada favoráveis. "As pessoas falavam mal, diziam 'isso eu faço'. Pouco a pouco elas se calaram." Por quê? "Elas foram pra casa, experimentaram fazer e não conseguiram", atesta.
De fato, na época, para quem tinha visto Drácula e Outros Vampiros, espetáculo anterior do diretor; e mesmo Gilgamesh, de 1995, a nova linguagem causou estranhamento. O que se via naquele momento eram jovens atores conversando em frente à platéia, numa espécie de arena montada na área de convivência do Sesc Consolação, com pouquíssimos elementos cenográficos, uma luz que apenas dava conta da visibilidade da cena - e não "participava" do espetáculo, como é comum no teatro -, e uma áurea de naturalismo que destruía absolutamente tudo o que fosse cerimonial e grandiloqüente. O ator não era apresentado como um deus afetado pairando sobre a cabeça de meros mortais e da encenação no sentido de faraônico entretenimento... Bem, esse sequer existia. "Na época, o Antunes estava pensando numa outra montagem", conta Emerson Danesi, ator do CPT que integra o elenco do Prêt-à-Porter 5. "Ele começou a questionar justamente por que o teatro estava trazendo tantos efeitos pirotécnicos. Grandes cenografias, grandes montagens, tecnologia invadindo o palco e demais coisas que abafavam a figura principal do teatro, que é o ser humano, portanto o ator. Ele começou a pensar numa maneira de deixar os atores se desenvolverem." No processo de trabalho que resultou no estilo Prêt-à-Porter, por assim dizer, o ator é a principal preocupação e foco de análise. A nova proposta busca "chegar ao fundo, destruir todos os macetes, todas as muletas de que o ator dispõe", explica o folheto da nova temporada. Essa "limpeza" que a estética propõe - e exige - é alcançada com o constante exercício do descondicionamento. Gestos desnecessários, improvisações exageradas, caras, bocas e tudo o mais que possa fazer parte do glamour do ator é jogado fora. Só fica o indispensável para que ele exerça sua arte: ele mesmo. "A idéia de teatralidade que a gente tem já vem pronta e embalada para a gente usar", diz a atriz Juliana Galdhino, que está em Prêt-à-Porter 5 e protagonizou as duas leituras feitas por Antunes do clássico Medéia. "O difícil é fazer esse rastreamento. É isso que Prêt-à-Porter sugere, é esse o cerne da questão. É você lidar o tempo inteiro com o outro, realmente, aqui e agora. O desejo de aprofundar essa relação, e o sentido da existência de cada ser humano nesse contexto. Isso é muito difícil. E é difícil porque é real", afirma.
Dramaturgia simples
O preparo inclui aulas de filosofia e retórica. A primeira para despertar nos atores a noção da dimensão e profundidade do ser humano; a segunda para, literalmente, ensinar-lhes a falar. "Os atores não sabiam falar", retoma Antunes. "Eles tinham uma verdade e não sabiam comunicar. Agora, através da retórica, eles sabem comunicar o que querem. A cena é boa quando os dois personagens têm razão. Então, você dá retórica para que eles desenvolvam sua tese. Aí há o choque. É preciso discutir as idéias." A leitura de grandes clássicos da dramaturgia mundial também faz parte da preparação. Autores como Dostoievski, Thomas Mann e Anton Tchecov alojaram-se definitivamente na cabeceira dos atores do CPT. Mesmo porque, todo o trabalho desenvolvido em Prêt-à-Porter vai servir de base para as demais montagens do diretor. "Eu não poderia ter feito Medéia e nenhum outro clássico sem Prêt-à-Porter", confessa. Porém, nessas apresentações, os textos são dos próprios atores. Durante o processo que resultou no Prêt-à-Porter 5, que durou um ano, os atores se reuniam e bolavam várias cenas. As que julgavam mais interessantes eram aprofundadas. O papel de Antunes foi apenas o de orientá-los nessas escolhas. Por isso o crédito de coordenador em vez de diretor das montagens. "Eu quero que surja entre esses atores um dramaturgo no nível aproximado de Nelson Rodrigues", entusiasma-se ele. Se depender das infinitas possibilidades que essa liberdade apresenta aos atores, talvez isso venha a acontecer em breve. "Eu penso nos poemas", exemplifica Juliana Galdhino. "Eles são a síntese da síntese. Os poetas escolhem as palavras, mas cada uma delas tem uma infinidade de imagens, sensações e sentimento que as permeiam. E isso a gente tenta fazer. Quando a gente vai escrever um texto é trilhar no sentido inverso. O que nasce do autor, lá trás, para chegar nisso." Suzan Damasceno, também atriz de Prêt-à-Porter, completa atentando para a singularidade dessa criação feita por eles mesmos: "Não é a dramaturgia de uma pessoa, mas, sim, uma dramaturgia que nasce de duas cabeças, da relação de duas pessoas com idéias muitas vezes diferentes, e muitas vezes o próprio conflito filosófico das pessoas desemboca numa possível cena". Embora o processo soe complexo, o resultado tem de ser simples. É essa a proposta do trabalho, em todos os pontos. "Teve uma época em que a gente pirou com os textos e escrevia coisas que nem cabiam na boca, palavras impossíveis", retoma Emerson. "Esse foi um processo que a gente foi entendendo: para ter poesia e qualidade no texto não é necessária uma verborragia no sentido de uma literatura congelada."
A experiência de escrever os textos que irão encenar é mais um caminho procurado por Antunes para chegar ao ator essencial que tanto procura. Ao dar todo esse poder, Antunes, na verdade, aumenta a responsabilidade. Tornando esse ator consciente de sua arte e compromissado com ela. "Como é que eu posso ter alguém como artista se ele não é absolutamente livre e dono de tudo o que ele faz?", indaga o diretor. "No Prêt-à-Porter o ator é dono de tudo. É ele com ele mesmo. É socializado em todos os sentidos - você leva o Prêt-à-Porter a qualquer lugar, qualquer comunidade pode fazer espetáculos de teatro, não precisa de dinheiro... O Prêt-à-Porter foi exemplo para vários grupos que estão surgindo em São Paulo, capital e interior, e no Brasil. Eles estão fazendo mil espetáculos", afirma.
Não há cenário, ou melhor: um fundo negro delimita o espaço onde os olhos do espectador irão testemunhar o desenrolar de três pequenas histórias. Este mesmo espectador estará sentado quase ao lado dos atores, em cadeiras comuns; como se todo o público se reunisse em volta à cena para vivenciar um relato, súbito: narrativa em viva voz da solidão contagiosa da sociedade contemporânea.
Também não há iluminação a rigor: dois pequenos lustres abaulados, fixos em sua intensidade e em sua geografia, estão colocados sobre as cenas, independente do tom intimista ou extrovertido. Por fim, não existem cortinas ritualizando o início ou o final dos sketches: não há segredo, e os espectadores são testemunhas de todas as armas utilizadas pelos atores na construção do espetáculo. A saber: a interpretação, o texto, as marcações. Nada mais. O intérprete está completamente nu diante da platéia.
O público poderia estranhar, mas não: ao sentar-se, já é abraçado pelo clima Prêt-à-Porter. Despojamento, desritualização, dessacralização. As atrizes estão sentadas em torno de uma pequena mesa, aguardando que todos tomem seus lugares. O estranhamento, assim como os ruídos, cedem sob o silêncio que domina o espaço, até que se inicia o primeiro sketche: duas mulheres conversam numa festa. Acabaram de se conhecer. Há uma tensão na troca de palavras. A simpatia escamoteia uma disputa cega em torno do passado e do futuro das personagens. Disputa-se também o poder dentro da relação recém-estabelecida. O riso cortante e o silêncio entre os diálogos colocam aos poucos eletricidade na cena. O desentendimento, o mal-entendido, a rusga e a má vontade alternam-se com a subserviência, o irrelevante e o agastado das desculpas. No fundo, a impossibilidade da comunicação, embora sob a mesma língua, o mesmo teto e a mesma classe social. Os mundos são distantes.
O sketche seguinte caminha sob outra intrincada equação: uma vizinha se apresenta à porta da casa de uma escultora trazendo à mão uma torta de maçã. Ambas são solitárias em suas histórias. O vocabulário se esmaece na tentativa de realizar uma ponte entre os sentimentos de ambas. Porém, essa impossibilidade latente cria um carinho entre as personagens, um carinho baseado na impotência da troca de percepções ou mesmo de auxílio mútuo. O grito de socorro da existência é sufocado pelo esgotamento da própria incapacidade em se denunciar o eclipse das relações.
No terceiro sketche, a solidão se agrava quando um cliente se encontra com uma prostituta, mas ele não a quer: deseja somente ouvir sua voz, sua história, sua desventura. Até que ele se revolta com a própria ausência de cor ou de entusiasmo na vida da outra. De novo, a solidão se manifesta, inclusive quando é paga para desaparecer: não fenece porque o ser humano tem como missão suportar sua própria história. A sós.
Fragmentos Antunianos
Em conversa exclusiva com a Revista E, o diretor Antunes Filho fala sobre a base cultural que falta ao ator de hoje, sobre sua postura à frente do CPT e chama a atenção para a solidão do homem moderno: "Os seres humanos viraram internautas." A seguir, os principais trechos
Base cultural. "O Prêt-à-Porter 5 demorou um ano para ser feito. Não dá para fazer rápido. O ator de Prêt-à-Porter não faz só essa cena, ele já fez diversas, uma a cada 15 dias nos ensaios. Aí eu vou coordenando e nós vamos selecionando. Não é que ele decide 'eu vou usar isso' simplesmente. Aquilo fica subjacente a ele. O ator vai fazendo as coisas e aquilo vai brotando, vai surgindo, vai se refletindo naquilo que ele apresentará. Não é que eu vou pegar Dostoievski e vou fazer e pronto. Não é assim. É preciso base cultural. E eu vejo que para isso o ator tem de estudar filosofia e retórica, por exemplo."
Disciplina. O Prêt-à-Porter é um projeto de criação de ator, dramaturgo, diretor e de futuro empreendedor de um teatro mais sério. São pessoas que vão levar isso adiante quando eu morrer. Eles não ficam fazendo teatro por vaidade ou por narcisismo. São pessoas que levam a responsabilidade de discutir teatro. Algumas pessoas me chamam de messiânico e dizem que eu faço catequese. Não é isso. Eu tenho 50 anos de teatro. Eu venho desde antes do TBC até hoje acompanhando o ator de teatro brasileiro. Ninguém fala nada, é tudo cinza. Todos homens cinza. Agora, eu não sou um homem cinza. Eu quero ajudar os outros. Agora, o que é tornar um homem cinza? É acomodar tudo, deixar o mundo como está, tudo maravilhoso, cada um faz a sua parte, ganha o seu dinheirinho e leva suas férias como bem entender, e está tudo acomodado. É por isso que me chamam de messiânico e catequizador. É porque não querem que eu fale, eu incomodo. Agora, eu não falo no sentido do egoísmo do meu lucro. Eu quero o lucro de todos, da sociedade. E quando eu falo é para o bem social. É para ajudar as pessoas. Mesmo quando eu recrimino e discuto com alguém, é para ajudar. Vá pra frente. Eu brigo com meus atores para eles irem pra frente e não para desmoralizá-los. Não é ditatorial. Você quer coisa mais democrática que o Prêt-à-Porter?"
A solidão do homem. "Antigamente tinha as cadeiras na calçada, tinha os amigos, tinha o contato humano. Hoje em dia é tudo terceirizado. Tudo via internet, via televisão. Aquilo que você sabe é terceirizado, você não sabe de maneira direta. Qualquer relação que você tenha é através de terceiras coisas: da mídia etc. e tal. O homem conversa, faz amor e respira através da internet. O maior problema do homem é o contato com o não-homem. Não existe mais o contato do homem com o homem. É uma solidão terrível. Os seres humanos viraram internautas. Todo ser humano é um internauta. É solitário."
O trabalho no CPT. "Eu acredito no homem. A gente nasce com isso na cabeça. Eu era infeliz quando fazia outra coisa. Eu quero é chamar atenção, quero alertar as pessoas. Eu sou disciplinador porque preciso da base, preciso de um lugar limpo pra trabalhar. Aquilo que você pensava quando era criança de ser artista de teatro, aquele sonho, você entra no teatro profissional e tem de procurar um papel, um produtor etc. Aqui, não. Aqui você pode ser sempre criança. É livre. Faça. Quero ver. Você pode continuar com teus sonhos de criança aqui. E é isso que eu quero. Porque se você tem esse sonho, mas você faz uma escola e tem de procurar um emprego no teatro profissional, você esquece do sonho e passa a ser um funcionário."