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Entrevista
Paulinho da Viola
Na história da música popular brasileira, poucos artistas tiveram uma trajetória tão sólida, coerente e brilhante como a de Paulinho da Viola. Sem entrar em estúdio desde 1996, quando gravou o premiado Bebadosamba, o músico diz não ter pressa. E parece ser essa, de maneira geral, sua relação com a vida. Ciente de que ninguém pode explicá-la "num samba curto", tratou de iludir o tempo, espalhando seus frutos. Foram 27 discos desde que subiu ao palco no espetáculo Rosa de Ouro, em 1965, acompanhando Aracy Cortes e Clementina de Jesus. Em sua música, não poderia ignorar a sofisticação harmônica da bossa nova. Do choro, herança incontestável de seu pai, César Faria, levou a riqueza melódica. E no universo do samba trilhou seu caminho e conquistou seu espaço. Nessa entrevista, concedida pouco antes de uma série de apresentações no Sesc Vila Mariana, em janeiro, Paulinho fala sobre o início de sua carreira, os rumos da produção cultural brasileira e sua opção em ser um artesão da música.
O violão parece ser uma sina de sua família. Seu pai, César Faria, é um instrumentista prestigiado que tocou com grandes músicos da história brasileira; você irá completar 40 anos de carreira; e seu filho João demonstra habilidade com o violão...
João tem muito talento, um talento de solista. Minha avó dizia que meu pai começou a tocar com 18 anos, depois de ter entrado no quartel. Um dia ele apareceu com um violão e passou a gastar todo o seu tempo tentando acompanhar as músicas do rádio. Ele hoje está com 83 anos, mas ainda mantém muito vigor. É um grande violonista. Eu só comecei a me interessar por tocar com uns 15 anos. Antes disso, gostava muito de participar das reuniões de música, mas só depois me interessei em aprender. Com João foi parecido. Ele manifestou vontade de tocar com essa idade. E nos surpreendeu. Começou aprendendo sozinho, depois teve dois professores e agora estuda por conta própria. Ele tem um grande potencial.
Fale um pouco sobre o surgimento de seu interesse musical.
Meu pai costumava reunir os amigos em casa. Havia dois grupos distintos. Um era formado por amigos bem próximos. Eles gostavam muito de serenatas, serestas e sambas. Eu participava permanentemente destes encontros. E tudo era pretexto para uma reunião musical. O outro grupo era o pessoal do choro. Papai tocou e gravou com vários músicos. Ele foi chefe de regional de rádio no Rio de Janeiro e tocou por trinta 30 anos com o Jacob do Bandolim. Ia muita gente em casa, entre eles, mestres como Pixinguinha, Altamiro Carrilho e o próprio Jacob.
Em uma de suas composições, Catorze Anos, gravada ao lado de Elton Medeiros no disco Samba na Madrugada, você narra a desaprovação de seu pai quando ficou sabendo que seu desejo era ser músico. Com um ambiente familiar desses, é pouco provável esse tipo reação, não?
Na verdade ele nunca falou nada disso. Ele brincava muito conosco, dizendo que o negócio era ser doutor. Meu pai sempre foi um músico que dividiu a vida dele entre a música e um outro trabalho. É aquela velha história dos músicos do passado, e que, em alguns casos, dura até hoje: as pessoas não podiam viver exclusivamente de música, e tinham que trabalhar com outras coisas. Apesar de papai gravar e tocar em regionais, o dinheiro era insuficiente para sustentar a família. Ele foi funcionário da Justiça até se aposentar.
Você também imaginava que teria que conciliar a música com uma outra atividade profissional?
Com toda a sinceridade do meu coração: até eu chegar no Zicartola, e até participar do primeiro disco com A Voz do Morro, jamais havia passado pela minha cabeça me tornar um músico profissional. Aquilo para mim era uma festa. Tanto é que trabalhava num banco. Eu achava que ia seguir minha carreira, estudar Economia. Imaginava que minha vida seria aquilo, que o resto era uma brincadeira como aquelas que a gente costumava fazer em casa. Jacob do Bandolim sempre disse que não era profissional, mas amador. Ele também trabalhava na Justiça. No entanto, era um músico fantástico. Conheci instrumentistas bárbaros que tinham as mais variadas profissões. Acho que foi por isso que me custou tanto aceitar a idéia de ser um profissional da música. Até hoje tenho resquícios desse tempo. Gosto de fazer as minhas coisas, carregar minha mala, meu violão. Os profissionais não fazem isso, têm uma equipe para fazer tudo. Só agora, aos 60 anos, estou contando com a ajuda de uma pessoa, porque não dá mais para carregar mala, violão, cavaquinho. Se fizer isso, não toco.
E a marcenaria, você não considera uma segunda profissão?
A marcenaria é só hobby, apesar de eu me considerar um ótimo marceneiro - para isso eu não tenho a menor falsa modéstia (risos). Faço de tudo, mas hoje em dia não é mais assim. Há outras técnicas e outros materiais, está tudo muito diversificado. Sempre fiquei muito próximo desse mundo da marcenaria. Adoro essas coisas. Sigo muito o caminho do artesão. Independentemente de toda a tecnologia que existe hoje, de todas as técnicas novas, das máquinas ultra-sofisticadas, acho que pode haver uma relação de artesão com a vida. E isso se estende também para música, para a maneira como a encaro.
Em 2002, foi lançado o livro Velhas Histórias, Memórias Futuras, de Eduardo Granja Coutinho, em que o autor defende que seu papel na história da música popular brasileira é de "renovador da tradição". Como você define a importância de sua obra?
Eu não sei falar sobre isso, não. Há na arte uma carga muito grande de subjetividade, tanto na criação quanto na apreciação. Só isso já desencadeia uma grande dificuldade para a avaliação de qualquer trabalho artístico. Há escolas, técnicas, teses de grandes artistas, mas, no fundo, o que vale é a criação individual, e também a apreensão que cada um faz da obra. Muitas vezes, me deparo com uma obra de arte maravilhosa, mas não consigo traduzir meus sentimentos em palavras que expliquem aquilo que sinto. Isso também acontece na música.
Mas você concorda com a definição do autor?
Todo o mundo quer inventar algo novo, criar uma música que nunca se ouviu, uma pintura que nunca se fez, um romance que ninguém imaginou. Isso é uma aspiração legítima, mas a vida é uma coisa totalmente diferente. Quando percebi isso, para mim foi mais fácil criar. Sempre convivi com pessoas mais velhas, e eram pessoas que sempre respeitei muito. Respeitava porque para fazer o que elas estavam fazendo, eu teria que ralar muito. Como eu poderia dar um chute em toda essa tradição? Os japoneses, apesar de todo o avanço tecnológico, em tudo o que eles vêm fazendo nas últimas décadas, não abrem mão de algumas tradições. Eu tenho o maior respeito por esse tipo de coisa. Acho que nada tem que ser apagado. A gente já tem uma memória tão frágil... Não consigo aceitar essa tendência de superar tudo. Acho que enriquecemos a vida quando pensamos que o passado e o presente podem se integrar.
Mesmo depois de se tornar profissional, você continuou estudando música, não?
Na verdade, me ressinto por não ter estudado música mais profundamente. Cheguei a fazer dois anos de Instituto Villa Lobos, no Rio, no começo da década de 1970. Mas não foi possível seguir adiante, sobretudo por causa das minhas atividades. Tive alguns professores e tentei aproveitar o máximo que pude, mas gostaria de estudar muito mais.
É verdade que chegou a estudar música dodecafônica?
Estudei, mas não incorporei isso à minha linguagem musical. Quando comecei a tocar como profissional, passei a conviver com outros músicos e a trocar figurinhas com eles. Queria aprender o que rolava. Alguns queriam fazer música erudita; outros, popular. Mas também havia gente criando pontes, como a Esther Scliar, que me deu aulas durante um tempo. O cruzamento entre o erudito e o popular foi muito importante para a música brasileira. Um dos melhores exemplos é o Radamés Gnattali. No começo do século passado, ele foi medalha de ouro de piano na Escola Nacional de Música. Depois ele acabou se aproximando do rádio, que estava surgindo. Radamés achava que Pixinguinha, que não teve uma formação como a dele, era o maior músico nascido no Brasil, o que eu concordo. Eles eram muito próximos.
Como você vê o atual momento da produção musical no Brasil?
Há uma mudança muito grande no processo de produção, não só de discos, mas de outros produtos artísticos. A principal delas é que uma nova tecnologia acabou tornando possível gravar fora do esquema das grandes empresas. Hoje é possível gravar um disco em casa. E essa mesma tecnologia forneceu a possibilidade das cópias fraudulentas. Eu não sei aonde isso vai dar. Acho que o mercado está tentando se organizar em função dessas coisas. A aspiração de todo artista sempre foi levar seu trabalho ao maior número possível de pessoas. Antes, era muito mais difícil gravar um disco. Hoje, os problemas são outros. A grande questão é como lançar um produto em meio a uma quantidade imensa de concorrentes - como isso será veiculado, como chega no mercado e como pode ser divulgado adequadamente.
As gravadoras independentes representam uma solução?
Acho que no momento não há outra alternativa. Acredito que em breve teremos um sistema melhor de distribuição. O pessoal achou o espaço das bancas de jornal e imediatamente todos foram para lá, inclusive as grandes. E o pau continuou comendo. A impressão que tenho é que essa coisa alternativa só é alternativa porque não tem outro jeito. E ela permanece alternativa enquanto não der certo. Quando dá certo, todo o mundo cai ali e forma-se uma outra grande confusão.
Como encarar a questão da pirataria?
Nunca vi um disco meu pirateado, pode ser que haja. O que vi, em 1986, e no Japão, foi uma fita minha pirateada. Eu não sei como aquilo foi parar no Japão, mas estava na mão de um motorista que nos conduzia. Ele colocou a fita e ficou vendo a nossa reação. Não me lembrava de onde era, ninguém lembrava. Aí descobrimos que foi um show que fiz no Tuca, aqui em São Paulo, há muitos anos. Alguém gravou o show e essa fita se espalhou. Naquele tempo ainda não havia pirataria de CD, nem mesmo CD, mas tinha pirataria de fita.
Você atualmente está sem gravadora. Há algum disco em vista?
Recebi convites, cheguei a conversar muito com o pessoal da gravadora Biscoito Fino, mas achei que era melhor dar um tempo. Eu tinha outro projeto na cabeça. Mas não digo qual é, porque sempre sou atropelado por uma série de acontecimentos. As pessoas me perguntavam se ia gravar naquele ano. Eu dizia que sim, e não gravava. "Mas você não disse que ia gravar?" "Sim, mas esse ano eu gravo." Não tenho a necessidade de gravar para continuar desenvolvendo meu trabalho. Faço shows, toco aqui, ali. E num determinado momento resolvo entrar em estúdio. Aquilo começa a chegar, começo a compor e me voltar para aquilo. E o resto fica de lado. Aí me perguntam porque eu não faço show... Às vezes tento fazer planos, mas acabo seguindo pelo que a vida arma. Mas uma das minhas vontades é gravar um disco em 2003.
Já há algo pronto?
Tenho músicas novas, outras sendo feitas, algumas de compositores que quero gravar. Outro dia, saiu uma nota pequenininha na Última Hora, lá do Rio, dizendo que eu ia gravar um disco com músicas de outros compositores. Passei então a receber discos do Brasil inteiro, já não agüentava mais. No começo, até respondia, mas é muita coisa. Há dez anos minha vida não era assim, e eu já era uma pessoa conhecida. Hoje em dia você tem que lidar com uma quantidade absurda de informações. Por isso que eu prefiro ser artesão. Não tenho o menor pique para esse ritmo, e nem mais idade. Se eu ficar em frente ao computador, morro... Tem uns amigos que estão assim, e suas mulheres estão quase pedindo divórcio.