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O país em clima de mudança


Foto: Gabriel Cabral

"Estamos diante de uma bifurcação"

BOLÍVAR LAMOUNIER

Em palestra proferida na Federação do Comércio do Estado de São Paulo no dia 7 de novembro de 2002, o cientista político Bolívar Lamounier debateu as perspectivas que se apresentam com o novo governo.

O Brasil está no limiar de uma mudança importante. Não nos é dado saber como se desenvolverá, mas será, sem dúvida, significativa, daí o valor da reflexão a que nos propomos, com o objetivo de compreender a gênese e o curso provável dessa transformação – e, também, de distinguir o que já é fato do que é mera impressão ou conjectura.

O clima de mudança que estamos vivendo pode ser captado mesmo numa leitura superficial dos jornais. Só de folhear as páginas, vemos, de um lado, os porta-vozes do governo eleito empenhados em acalmar os mercados, desfazendo percepções que consideram errôneas, diluindo expectativas negativas e mostrando que seguirão, no tocante à dívida pública, à questão fiscal e a outras matérias, um caminho não tão diferente do adotado por Fernando Henrique; indicando que o novo governo respeitará os contratos, que não se precipitará na reabertura de negociações de dívidas estaduais e municipais, e assim por diante. Por outro lado, vemos também o presidente Lula – cuja integridade e cujos méritos todo o Brasil reconhece – sendo, como diria, quase beatificado, tratado como figura supercarismática.

Como o período eleitoral só agora está chegando ao fim, não devemos superdimensionar esses acontecimentos, num sentido ou noutro. Devemos encará-los como aspectos normais da disputa, ainda mais em se tratando de uma eleição marcadamente plebiscitária e simbólica como foi a deste ano. Mas há uma questão a ser examinada. Talvez nunca na história brasileira e raramente em outros países tenhamos antevisto com tanta nitidez uma bifurcação, uma separação potencial de caminhos que se abrem logo ali, um pouco adiante, num ponto por onde o novo governo terá necessariamente de passar. Por um lado, temos o fato de que os requisitos da consistência econômica (vocalizados por numerosos especialistas, por porta-vozes representativos de organismos econômicos e do mercado financeiro de modo geral) tornam imperativa a manutenção – quiçá o aprofundamento – de políticas fiscais e monetárias restritivas. Por outro lado, no segundo caminho que se entreabre, temos clara indicação de que chegou ao poder um imenso caudal de expectativas, uma vasta federação de grupos, de anseios, de demandas. E é muito difícil imaginarmos como é que essas duas pontas vão se combinar, como vão se harmonizar, como poderão caminhar de maneira balanceada, uma vez que são potencialmente conflitantes. Isso não é nada extraordinário, e acontece em todo processo eleitoral. Mas o volume, a magnitude das pressões contraditórias que ora se delineiam, este, sim, é fato a se registrar. Não é que o Brasil possa vir a se expor a pressões econômico-financeiras importantes, ele já está exposto. A direção, a trilha seguida nos últimos anos, já está sob vigorosa pressão. Vimos isso durante a campanha eleitoral, e vemos diariamente na cotação do dólar e nos demais indicadores financeiros. Por outro lado, a mudança que notamos na esfera popular, eu diria mesmo no imaginário do povo, é muito maior, ao que tudo indica, do que em outras oportunidades de nossa história. E é assim registrada não só por nós, mas também pela imprensa estrangeira. A percepção é de que houve um esforço importante de reforma estrutural, do próprio Estado, do padrão histórico de relacionamento do setor público com o privado, mas que ela logrou sucesso apenas parcial, ficando a meio caminho, e portanto não produzindo os benefícios esperados, sobretudo em vista de nossas grandes carências sociais.

Por tudo isso, então, abriu-se sob os pés do governo Fernando Henrique, do Brasil, melhor dizendo, uma brecha enorme, da qual emergiu esse movimento que ora chega ao poder. O Partido dos Trabalhadores (PT), naturalmente, vem de mais longe, do final dos anos 70. Sempre foi um partido ou movimento militante, aguerrido, criativo, dinâmico, mas suas tentativas de alcançar a presidência foram por muito tempo barradas por uma linha imaginária chamada taxa de rejeição. Desta vez ela deixou de existir e, em vez de ser uma barreira, se tornou quase que um convite. De alto a baixo na sociedade, sem distinção de classe, de região, de gênero, o que vimos foi o apoio maciço à candidatura Lula.

Eis a bifurcação, as duas pontas sobre as quais gostaria de refletir, naturalmente com a expectativa de que depois, pela troca de idéias, possamos tornar mais nítido esse quadro e até relativizá-lo. Como diziam os velhos políticos mineiros, todo processo eleitoral se divide em fato e versão. Neste momento, a versão, como estou sugerindo, é avassaladora, mítica, tem dimensões de epopéia. Mas se tivermos a paciência de recuar um pouco e reconstruir o encadeamento dos fatos, veremos que ela é uma verdade parcial. A posteriori, quando as coisas são cantadas em diapasão tão elevado, tudo parece inexorável, como se não pudesse ter sido de outra forma. E até acho que a vitória do PT talvez estivesse mesmo nas cartas, fosse de fato inevitável. Já a dimensão desse sucesso e a proporção mítica que assumiu, penso que não. É a mitologização, não o fato em si, o problema a que me referi no início, como parte do objeto desta minha reflexão.

Claro, uma reforma econômica como essa que se intentou fazer no Brasil nos últimos anos tem percalços intrínsecos, desgasta o governo, sobretudo um de oito anos. Também aconteceram fatos externos notáveis, problemas financeiros severos, como é de conhecimento geral. Houve uma crise de energia, que causou danos significativos para a economia brasileira e teve um efeito importante no processo político-eleitoral desde o ano passado. Mas não me parece inexorável que o equacionamento das candidaturas e alianças tivesse de seguir o caminho trilhado. Acho que escolhas foram feitas, não necessariamente felizes. Houve acidentes de percurso, alguns deles sobredimensionados em sua significação pelos personagens, e tudo isso contribuiu para a fragmentação de uma estrutura de poder que não era brilhante nem à prova de crises, mas seguramente mais forte do que se revelou na campanha eleitoral. Ou seja, muitos fatores, em diferentes níveis, foram se acumulando para desequilibrar os pratos da balança na reta final. O importante a frisar é que a gestação desse enorme desequilíbrio se deveu a vários fatores, alguns deles até triviais.

Retrospectivamente, eu me pergunto se Fernando Henrique não poderia ter desempenhado um papel mais ativo no equacionamento das candidaturas. No Brasil é natural que o presidente da República tenha uma influência maior na fase prévia das composições do que a que teve Fernando Henrique. A candidatura José Serra, também, sabia-se de antemão que seria difícil, não só por ele pertencer ao governo havia oito anos e por ser até certo ponto um dissidente, portanto alguém que não o combateria mas também não o defenderia integralmente. Só isso já dificultaria muito a campanha, mas Serra era também uma pessoa com fama de ranzinza, de mal-humorado, com muitas arestas no meio político. Tudo isso tornava a candidatura, não digo inviável, mas pelo menos suscetível de questionamento.

Depois há a questão regional. Para amenizar um pouco a dificuldade de mais uma candidatura paulista após oito anos de governo Fernando Henrique, de certa aura de elitismo, de academicismo, o candidato José Serra tentou, a meu ver muito acertadamente, uma aliança para ter como vice-presidente o governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos; mas este desistiu na ultimíssima hora, quando tudo já estava para ser anunciado e sacralizado. Eu não sei por que o governador fez isso, não estou pondo em dúvida as razões, os motivos e as causas que o levaram a optar pela não-candidatura. Mas inegavelmente, ao fazer isso, ele praticamente paralisou a campanha do candidato José Serra por três meses, porque foi necessário, de afogadilho, encontrar um novo nome, com o desgaste político que uma busca assim precipitada geralmente engendra. A escolha recaiu no nome do deputado Henrique Eduardo Alves, que por sua vez se revelou inviável. E finalmente se chegou ao de Rita Camata. Não obstante os inegáveis méritos da deputada capixaba, ela é de um estado pequeno e de eleitorado reduzido, que passa por dificuldades graves, com certo grau de conturbação na esfera pública, no relacionamento entre Assembléia Legislativa e Executivo estadual, e tudo isso dificultou, suponho, a capitalização política da força local de Rita Camata como companheira de chapa. Ou seja, não apenas o quadro econômico global, mas também fatos endógenos à campanha, elementos políticos no sentido mais estrito da palavra foram debilitando a candidatura Serra no seu nascedouro.

E assim chegamos ao começo de junho. No momento em que se esperava que Serra finalmente se aprumasse, ele despencou, e Ciro Gomes decolou espetacularmente. Quando isso aconteceu e as duas linhas se cruzaram, sinalizando um desfecho eleitoral muito negativo para a coalizão de governo e, por extensão, para tudo o que ele representara como projeto de reforma nos últimos anos, teve início um severo impacto nos mercados, nas expectativas. Houve um desarranjo, um frisson muito grande entre os agentes financeiros, notadamente entre aqueles de que necessitamos no curto prazo, que financiam as nossas contas externas e linhas de comércio. Chegamos a julho com as exportações realmente à míngua, em boa parte devido às incertezas da campanha eleitoral, que se somavam ao impacto negativo da situação da Argentina.

Sabemos todos que o candidato José Serra era visto pelo mercado financeiro como a melhor solução, ou pelo menos como um mal menor, como aquele que poderia evitar uma deterioração mais séria, e assim foi se criando quase que um sebastianismo, um messianismo em torno do horário eleitoral gratuito. Iniciados os programas, dizia-se, o problema estaria resolvido. Com o dobro do tempo de Lula, com a densidade que traria aos debates, Serra finalmente tornaria realidade o script que de antemão se supunha vitorioso. Os fatos naturalmente não evoluíram dessa maneira. O conteúdo e a qualidade dos programas, as imagens, o fato de serem três candidatos de oposição contra um meio situação, uma vez que Serra não assumiu inteiramente a posição de governo, tudo isso, em vez de alterar, solidificou o desequilíbrio a que me referi, quase levando à vitória de Lula no primeiro turno.

Longe de diluir o quadro que se havia formado, o segundo turno aprofundou ainda mais a mitologização do vitorioso. Em vez de reequilibrar e de afetar de maneira mais positiva o quadro das expectativas, o que houve foi uma solidificação e uma "carismatização" ainda maior do eleito.

Voltemos a nosso tema. O que temos então diante de nós é uma bifurcação profunda. De um lado o Brasil, a menos que queira embarcar numa aventura que o levaria ao isolamento internacional, terá de manter a credibilidade, as linhas de entendimento com o exterior, e isso neste momento significa lutar com todos os meios possíveis para impedir o recrudescimento da inflação, manter o regime de política econômica em seus delineamentos básicos, recriar ou costurar de novo as expectativas para que todos os requisitos financeiros se mantenham. Essa opção aponta para um caminho ortodoxo de maneira muito mais dramática do que a moderação que o PT adotou como estilo eleitoral.

Essa moderação do PT foi um desvestir-se de símbolos de esquerda, revolucionários, de linguagem agressiva, de uma verbalização de ruptura. Foi a sinalização de que aceita as regras do jogo democrático, do processo eleitoral, as normas parlamentares, os balizamentos institucionais e os referentes a contratos de modo geral. Isso é historicamente significativo, tendo em vista as origens do PT, mas o que estamos aqui considerando é mais que isso. O PT no poder não apenas terá de cumprir esse script de automoderação, de caminhada para o centro, de aceitação de um papel de parceiro normal dentro da democracia capitalista, mas possivelmente terá de assumir um papel ativo, como executar um programa em princípio contrário à sua índole. Executor de um aprofundamento de políticas fiscais e cambiais naquilo que for necessário para revigorar a credibilidade do país, para refazer o que foi danificado por nosso processo eleitoral e por adversidades externas. Como dizem os americanos, it is a tall order, é uma pedida alta, uma encomenda difícil de ser entregue.

No outro braço da bifurcação, o que temos é um PT que vem para o centro pelas artes do marketing (digo isso sem ironia e sem qualquer malevolência), mas que não obstante traz à tona um enorme anseio popular, que é contrário ou convive mal com essa nova simbologia. Nas entrelinhas do discurso moderado e do terno bem cortado, muita gente entendeu que terá satisfação urgente e cabal para as suas necessidades.

Não há dúvida de que o Brasil amadureceu, que as instituições estão mais sólidas. Essa tranqüila assimilação do PT como interlocutor e como governo já indica isso. Embora aflito com a conjuntura financeira, com a situação social e com a criminalidade, o país é hoje menos pessimista a respeito de suas instituições.

O problema é que nós, brasileiros, temos uma tendência enorme a tomar dois terços por três terços da verdade. O que acontece é que sem dúvida nossas instituições são mais sólidas, mas talvez não tanto a ponto de resistir sem algum solavanco, sem alguma tensão, às dificuldades que podem surgir ao longo do processo que estou imaginando. Que dificuldades são essas? Se o governo Lula optar decididamente por uma política restritiva, com superávit primário elevado, dívidas estaduais não renegociadas, etc., terá pouco para oferecer a seus novos aliados.

Terá apoio, sobretudo no período inicial. As oposições no Congresso estarão um pouco pastosas, indefinidas, e a aura do poder ajudará a formar a maioria. Mas se a política econômica for restritiva, muitos desses apoios não serão entusiásticos, até porque alguns ficaram com Lula muito mais para se oporem a Serra e ao PSDB que por convicção.

Observe-se que uma sinalização efetiva em relação aos agentes econômicos exigirá muita audácia por parte do novo presidente. Como irá ele indicar que está mantendo a estabilidade e criando condições para o Brasil crescer numa perspectiva sustentável de médio prazo? Um bom projeto de reforma da previdência social teria esse efeito, mas temo que seja atacado pela esquerda do próprio PT como uma indevida "concessão neoliberal". E se mais adiante os demandantes sociais (quero dizer, sindicatos, movimentos reivindicatórios) resolverem testar os limites da situação jurídica do país? Nesse caso o governo precisará deixar claro até onde a demanda é razoável e onde deixa de ser.

Demandas sociais sempre envolvem dois aspectos, conteúdo e forma. Uma coisa é a pauta das reivindicações, outra é o grau de agressividade da conduta reivindicatória. O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), por exemplo, não causa maior sobressalto quanto ao conteúdo de suas exigências; o que assusta é a forma, a agressividade com que são apresentadas. Diante de demandas eventualmente justas, mas difíceis de ser atendidas, apresentadas de forma agressiva, a nova administração precisará sentir-se psicologicamente coesa para traçar uma linha divisória.

O problema é o governo não optar por um caminho consistente, o que, na prática, o levaria a um ziguezague de alto risco. Ou seja, diante da bifurcação a que me referi, não optar, embaçar o quadro. Aí é claro que as coisas se agravariam. O mundo atual é regido por comunicações e fluxos financeiros instantâneos. Embaçado o quadro, as conseqüências econômico-financeiras não tardarão a chegar.

Na direção do ziguezague, penso que vamos nos dar mal. Também é concebível que, em vez de ir para o caminho ortodoxo, em vez de ziguezaguear, o governo busque consistentemente uma política expansionista, baixando a taxa de juros, estimulando a economia, enfim, tentando gastar, keynesianamente, para depois colher os frutos.

Sinceramente, até acho melhor isso do que o ziguezague, porque pelo menos se reforça o apoio político durante uns três ou quatro meses e quem sabe isso dê fôlego para depois se tentar fazer outra coisa. Mas a chance de êxito é muito pequena. O mais provável é que por aí se crie uma inútil bolha de crescimento, a inflação volte com vigor, etc., etc., e nossa credibilidade no exterior fique danificada por um longo período.

Recapitulando brevemente as impressões que tentei transmitir, primeiro, na eleição presidencial, deu a lógica. Depois de oito anos de governo Fernando Henrique, era provável que o PT, também por seus méritos, vencesse a eleição. O que não era provável ou pelo menos não era necessário na escala em que ocorreu foi essa mitologização espantosa do PT e de Lula como uma força revolucionária dentro da ordem, que vai transformar o país de alto a baixo, estrutural e simbolicamente, em todos os seus comportamentos, objetivos e subjetivos, num espaço de tempo muito curto. Segundo, estamos diante de uma bifurcação. Feliz ou infelizmente, o que parece racional no momento é o caminho oposto ao indicado pela simbologia eleitoral, é o da responsabilidade fiscal, da manutenção e até do aprofundamento de algumas coisas ditas impopulares que foram tentadas nos últimos anos. Esse é o ponto-chave. Terceiro, eu compartilho, como toda a sociedade brasileira, a sensação de que as instituições melhoraram, mas sugiro que não exageremos na dose. Examinando a eleição para o Congresso Nacional, não posso deixar de me preocupar com o excesso de fragmentação do sistema partidário brasileiro. A pluralidade é sempre bem-vinda, mas a multiplicação, a dispersão excessiva das forças dificulta muito a governabilidade. Tudo indica que o presidente Luiz Inácio vai governar com o Congresso mais fragmentado de nossa história. O maior partido vai ser o PT, com 18% das cadeiras, menos do que era o PMDB na legislatura anterior. Somados, os três maiores partidos vão ficar com menos cadeiras que na legislatura anterior, e ainda com o agravante de que a coalizão majoritária que precisará ser criada será ainda menos "natural" do que a de Fernando Henrique em seu primeiro mandato, em 1994. Naquele caso o presidente estava vindo para o centro, mas não da extrema esquerda. E além disso se formou, nas esferas eleitoral e parlamentar, um clima de otimismo, para apoiar um megaprograma de reformas que, naquele momento, tinha a simpatia e o entusiasmo não só da opinião pública brasileira como também do exterior. Era o processo de reforma liberalizante que apenas se iniciava, sob os excelentes auspícios do controle da inflação, já em andamento.

Nesse sentido, a agenda legislativa de Fernando Henrique e sua coalizão eram naturais. Tanto assim que foi possível superar facilmente as desconfianças e antipatias entre o PFL e o PSDB, que durante vários anos cooperaram bem no Congresso.

Hoje, as coisas parecem mais difíceis. Temos um PT que caminhou para o centro, que criou muitos símbolos de centrismo, mas que ainda tem no seu bojo, tanto na militância como na própria representação parlamentar, grupos que não estão felizes com esse movimento. E que agenda poderá, hoje, amalgamar as forças políticas? Neste momento, o prosseguimento de nosso processo econômico e do robustecimento institucional a que estamos assistindo vai exigir muito tirocínio, discernimento, responsabilidade e realismo de nossas lideranças políticas. Na média de nossa história elas demonstraram essas qualidades, e espero que as demonstrem novamente agora.

Debate

Nota do Editor: As colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para ser respondidas de forma concentrada.

NEY PRADO – Não vou refutar o que você disse, mas reforçar, partindo de três premissas. A primeira é que a vitória política foi de Lula e não do PT propriamente dito. Em segundo lugar, há a diferença entre atitudes e convicções. Às vezes os políticos agem de uma forma e entendemos que é uma convicção, mas na verdade se trata de mera atitude. Por fim, temos de centrar a análise política na figura vencedora que é o candidato Lula.
Estabeleci aqui alguns cenários levando em conta aspectos atitudicionais e comportamentais. Quando se vislumbrou a possibilidade de Lula se eleger, tivemos duas reações básicas. A primeira de medo, a segunda de revolta. Cada uma delas provocou diferentes atitudes. A de medo levou a uma postura de defesa. A de revolta provocou uma de ataque. E isso produziu dois tipos de comportamento. No caso de defesa, alguns se omitiram: "Esse é o processo, não quero participar, não tenho o poder de influir", mas outros procuraram certas salvaguardas, dizendo: "Ele poderá ganhar, mas estará o Congresso pronto para, se for o caso, aplicar o impeachment e adotar uma forma parlamentarista?" Os radicais, aqueles que são incompatíveis com qualquer posicionamento do PT, buscaram a rivalidade e o conflito, afirmando: "É uma relação de adversários, de amigo e inimigo, e não há como nos compormos. O certo é um dominar o outro e, se possível, que a facção dominante seja a nossa".
Quando a vitória de Lula se tornou inevitável, uma nova reação surgiu na sociedade brasileira, já não mais de medo ou de revolta, mas de compreensão. Isso gerou outra atitude, de solidariedade, que depois se transformou em colaboração. Então estamos vivendo uma época que o cientista político cubano Carlos Alberto Montaner caracterizou como a da síndrome do revolucionário bom. Ela se relaciona com o que foi observado na experiência venezuelana. Na verdade trata-se de uma curiosa fantasia, segundo esse escritor, que consiste em acreditar que os reformadores sociais delirantes não tentarão levar a cabo seus longos projetos e que a maneira de enfrentar esse fato irremediável é imaginar que uma força mágica impedirá que isso aconteça. Na Venezuela, diz esse autor, foi entendido que Hugo Chávez seguiria a força dos fatos e deixaria de lado todas as suas convicções ou atitudes políticas. Agora é nossa vez. Muitos empresários e membros dos setores sociais médios começaram a pensar que um sindicalista radical, uma vez instalado no Palácio do Planalto, será possuído pelo espírito de Tony Blair e se comportará de forma democrática, favorável à economia de mercado, e será razoável no exercício do poder. A pergunta é a seguinte: por que esperar essa metamorfose? Lula da Silva, como muitos milhões de latino-americanos, acredita que a economia de mercado é um sistema injusto de produção e distribuição de bens e serviços, e que a tragédia dos 80 milhões de brasileiros pobres se deve à ganância insaciável dos 80 milhões que não o são e de forma muito especial desses 7 milhões que constituem os níveis sociais mais altos do país. Para Lula e para todo o seu círculo de amigos, cúmplices e companheiros, a tarefa dos governos é elaborar controles para fazer justiça mediante a repartição forçada da riqueza criada, estabelecendo padrões igualitários de consumo, e não criar condições para que a sociedade livre produza espontaneamente quantidades de bens e serviços.
Votar em Lula, nós sabemos, é uma opção legítima. A democracia não pode excluir alguém por estar equivocado. O que constitui um disparate é pensar que Lula, uma vez no poder, vai respeitar necessariamente as liberdades econômicas e comportar-se de forma sensata. Por que ele trairia suas convicções? Sabemos que os revolucionários latino-americanos são dirigistas, protecionistas, têm aversão aos empresários, detestam as nações desenvolvidas do Ocidente, que culpam pelas desgraças nacionais, e têm uma idéia cômica da elasticidade dos orçamentos e da capacidade arrecadadora do Estado. Todos eles crêem que a qualidade moral dos governos se mede pela dimensão do gasto público, o que desemboca na inflação e acaba por destruir a economia. Nenhum deles entende como se cria ou malbarata a riqueza. Se os brasileiros elegeram Lula, nós não sabemos o que pode acontecer, e aqui invoco novamente Montaner: "Não existe revolucionário bom, da mesma forma que não há uma espécie benigna de caruncho. Acreditar no contrário é só um sintoma da fase de negação que antecede a morte inevitável". Eu gostaria que você tecesse considerações a respeito disso.

JOSUÉ MUSSALÉM – Tenho alguns comentários e uma pergunta. Quanto ao governador Jarbas Vasconcelos, sou pernambucano e o conheço de perto. Posso lhe dizer que ele decidiu não ser vice-presidente na chapa de Serra por uma questão interna do estado. Houve um racha muito grande, e com a possível saída dele a aliança PFL, PMDB e PSDB seria derrotada em Pernambuco.
Os erros de Serra na campanha foram primordiais para explicar sua derrota. Primeiro, houve muita perda de tempo nos ataques a Roseana e depois a Ciro, o que deixou Lula incólume. Quando se tentou atingir a candidatura do PT, não havia elementos fortes. Outra coisa: a escolha de José Alencar como vice foi fundamental para atrair o empresariado. Houve também um forte direcionamento da antiga direita para Lula, como no caso de Antonio Carlos Magalhães, José Sarney e outras forças políticas que, por questões pessoais ou por inabilidade dos tucanos, apoiaram o PT.
Agora a pergunta. O senhor fez uma pesquisa que a "Gazeta Mercantil" divulgou recentemente a respeito do dissenso e consenso das elites. Seria possível projetar o papel delas no governo Lula?

OLIVEIROS S. FERREIRA – Professor Lamounier, creio que nosso pessimismo se junta. Estou de acordo, o panorama é catastrófico. Começo relatando dois episódios que aconteceram ontem. Na feira, conversava com o vendedor de frango e resultou muito claro que o aumento da gasolina tinha sido postergado para a vitória na eleição. Quer dizer, Lula começa a ser apontado no inconsciente pessoal como responsável pelo aumento da gasolina e do gás. Depois, recebendo uma aluna, ela disse: "Porque na época do Fernando Henrique..." Já está morto, o que confirma a opinião do feirante.
Eu não confio muito na firmeza das instituições. Lembro que o período 1946/64 foi marcado por sucessivas crises militares. Os eleitos tomaram posse, as instituições se fortaleceram. Só quando houve a ruptura definitiva com Jango é que as forças armadas assumiram o poder. Em segundo lugar, creio que na análise prospectiva que você fez deveríamos considerar que o PT perdeu espaços políticos importantes. Ele conta com apenas três ou quatro governos de menor importância, e com isso Lula na presidência terá de se compor com os governadores, que podem não ter muito poder mas têm influência sobre o Congresso.
O terceiro aspecto seria a falta de quadros do PT. E termino com o mito, que é a coisa mais importante que temos hoje. O mito – me permitam citar o velho Georges Gurvitch – está nas camadas profundas do inconsciente coletivo, está no que esse autor chamaria as correntes livres do psiquismo coletivo. Essas correntes podem brotar, rompendo todas as estruturas e organizações sociais. O problema que se coloca é saber se, ao brotar, vamos encontrar os jacobinos que façam aqui o serviço. Como você, tenho quase certeza de que esse mito vai se desfazer. Ao desaparecer, é preciso considerar o personagem, se ele terá estrutura psíquica suficiente para suportar ver o mito se transformar em agressão. Se ele a tiver, podemos ir para uma situação institucional muito grave. Ele poderá tentar ultrapassar a democracia, se contar com as forças armadas. Pelo que recordo, elas não eram a favor do empresariado de jeito nenhum e, segundo a informação que tive de um amigo na reserva, formaram com Lula.

BOLÍVAR – Ney Prado, inclusive se valendo de um artigo de Montaner que também li, traçou as dificuldades dessa alteração de perfil do PT, que chega ao poder mudando de posição. A análise de Montaner, que me parece ser também a de Ney Prado, questiona, eu diria, até a sinceridade. Sem entrar no tema da convicção e da sinceridade, atenho-me às dificuldades políticas operacionais. Há muitos casos pelo planeta afora de partidos de esquerda que se moderaram, operaram dentro da legalidade e foram perfeitamente adequados no exercício do poder. Sempre me lembro do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), que se comportou bem. Eu teria gostado de ter visto o PT alterar o seu posicionamento de maneira mais solene, reunido em congresso nacional, com menos marketing e mais debate programático, uns três ou quatro anos atrás. Então não teríamos tido esse abalo nas expectativas dos agentes financeiros. Como as coisas foram feitas, é evidente que as perspectivas se embaralharam e houve seqüelas. Os mercados poderão não acreditar no que não foi dito com pompa e circunstância.
Agradeço a Mussalém pelo esclarecimento a respeito da opção de Jarbas Vasconcelos. Quero deixar claro que não estava pondo em dúvida os motivos do governador. Quis apenas apontar o dano causado à campanha de Serra. Deu-se como viável um acordo inviável.
Quanto às elites, fico grato pela lembrança da pesquisa que acabei de divulgar. De fato há material muito interessante nesse trabalho. O que mais me chamou a atenção nos resultados foi o elevado grau de aprovação para as reformas do governo Fernando Henrique. É justamente porque uma parte do problema já foi resolvida que agora podemos tentar um passo adiante, desde que não seja em detrimento do que foi conseguido em matéria de estabilidade, responsabilidade fiscal, regime de câmbio e privatização, entre outras áreas. Essa nuance é que se perdeu na fase final da eleição, quando se tornou mitológica. Será um grande equívoco se o próximo governo, no embalo plebiscitário da eleição carismática, imaginar que tem um mandato da sociedade para desfazer reformas que já foram assimiladas pelo país.
Também acredito que as lideranças do país devem atuar. O que significa isso? Não se trata de ativismo, nem da simples multiplicação de acontecimentos, mas de restabelecer a perspectiva das coisas no debate público. Em 1993, no governo Itamar Franco, depois do impeachment de Collor, houve um momento grave. A desesperança parecia tomar conta do país, que não via solução para a inflação. O governo, desnorteado, demitira três ministros da Fazenda. Por isso a nomeação de Fernando Henrique foi recebida praticamente como a de um primeiro-ministro. Era algo importante que acontecia, porque o governo estava se exaurindo numa crise. A perspectiva dessa mudança, que aconteceu de 93 para 94, com controle da inflação, sensação de estabilidade e de que as coisas seriam feitas passo a passo, com realismo e competência técnica, se perdeu completamente nos últimos meses. Na campanha eleitoral, seria preciso primeiro lembrar como era o Brasil de 92/93, com 50% de inflação ao mês. Seria necessário colocar as coisas em sua devida perspectiva temporal, no horizonte próprio delas, de um país que tinha esgotado completamente seu modelo de desenvolvimento, que parecia não ter mais saída para um regime inflacionário crônico, e que de repente conseguiu superar isso, fazer reformas consideradas tabus, e que evidentemente não pode aceitar o risco do retrocesso.
Oliveiros, a questão fundamental que você suscitou no final de seu comentário é o que vai acontecer na hora em que o carisma se rotinizar. Aliás, nós, acadêmicos, estamos sempre citando Max Weber, a teoria do líder carismático. É interessante observar como nunca nos damos conta de que, nos textos desse autor, o desfecho mais grave, quando o carisma se desfaz, é o processo de rotinização. Max Weber não parece ter se dado conta de que, quando isso acontece, freqüentemente ocorre o contrário, a rejeição, também violenta, do líder mitológico. Lembremo-nos de Getúlio Vargas, ou de Juan Domingo Perón. Sim, as instituições brasileiras são boas para padrões de Terceiro Mundo, mas dizer que são extraordinárias é um pouco de exagero, de carnavalismo nosso. Uma avalanche plebiscitária como essa, que beatificou a figura de Lula em contraste com a realidade econômica, vai ser muito dura. São motivos de preocupação, sem dúvida.

ROBERT APPY – Fiquei satisfeito ao ouvir que o cientista político está de acordo com os economistas. A conclusão é que o pobre Lula, pelo menos no primeiro ano, não vai poder fazer muito. Creio que Serra teria feito uma reforma muito mais profunda do que Lula. Pergunto: no futuro não haverá uma aliança entre Lula e o PSDB para fazer um trabalho sério? Parece-me que a única vantagem da vitória de Lula será a de apressar algumas reformas estruturais que o próprio PT estava impedindo.

ÁLVARO MORTARI – Gostaria de levar nosso debate um pouquinho para trás e lembrar quando Fidel Castro assumiu o poder. Lendo jornais e revistas antigos, vendo Fidel Castro abraçado e beijado pela população em Havana – ainda não tinha dado o golpe –, faço uma comparação com o entusiasmo da população brasileira em relação a Lula. Outra observação: há um ano e meio ou um pouco menos, Lula esteve em Cuba e fez elogios rasgados a Fidel Castro e ao seu regime, como se viu em todos os jornais e revistas.
Agora uma pequena história. Uma senhora de vida bastante complicada, que não era aceita pela sociedade de uma cidadezinha e tinha uma vida bastante irregular, procurava uma maneira de resolver sua situação. Apareceu um conselheiro ou conselheira e lhe disse: "O ideal é procurar uma boa costureira, fazer um vestido bonito e começar a andar na rua com ele. Você provavelmente vai começar a ser aceita pela sociedade". Ela perguntou: "Mas isso será suficiente?" "Não. Vamos também arrumar um bom casamento para você, não com um pé-rapado, mas uma pessoa da sociedade. Você vai noivar e com o vestido novo será bem recebida." Muito bem, creio que deu para entender. O que gostaria de saber é o seguinte: como é que Lula, que há um ano e meio não usava roupas de Giorgio Armani, não tinha esses gestos sofisticados, fazia observações entusiásticas sobre o regime de Fidel Castro, mudou de repente, não só visualmente como também com novas idéias e um novo discurso?
Mais uma observação: em 2003 haverá a eleição de três novos ministros do Supremo Tribunal. As forças armadas, pelo que se sabe, tiveram a preocupação de não se envolver nas eleições, mas houve uma camada muito grande de militares que votaram em Lula ou o apoiaram. Vejo também com grande preocupação a patrulha ideológica. Aconteceu durante a campanha com a atriz Regina Duarte. E o PT é extremamente disciplinado, isso temos de reconhecer.
Finalmente, duas perguntas: o senhor acha que o PT, depois de tantos anos de luta para conseguir o poder, aceitaria governar apenas quatro anos? Se a candidatura de Roseana Sarney tivesse continuado, poderia ela ter realmente alcançado uma votação maior do que Serra ou até ter sido eleita presidente da República?

OZIRES SILVA – Infelizmente, como você mesmo colocou durante a apresentação, a probabilidade de caminharmos para uma crise é grande. Nesse aspecto, a pergunta que me vem à mente é: como vamos lidar com ela? Creio que nos parece hoje, ou a mim pelo menos, absolutamente essencial termos uma oposição competente para, no caso de uma crise, contarmos com um distensor político. Não acredito em intervenção de forças armadas, nada disso, porque elas estão hoje em grande medida desarmadas. Qual a probabilidade que temos de montar uma oposição com credibilidade, competente, que pudesse funcionar eficazmente no caso de uma crise?

BOLÍVAR – Começando pela pergunta de Robert Appy, creio que a questão-chave é se a eleição de Lula não poderia ser vista, de maneira até muito mais positiva, como a chance de acelerarmos reformas que eram difíceis enquanto o PT era oposição. De fato, a chegada ao poder de uma força que antes combatia determinadas mudanças de repente pode facilitá-las. É possível, é um cenário muito otimista mas não ilógico. Entretanto, não foram os votos do PT que bloquearam as reformas de Fernando Henrique no Congresso, porque o PT não tinha tantos votos assim.
Por outro lado, é claro que a força política do PT, sua presença na mídia, sua influência na sociedade dificultaram muito o andamento daquelas reformas. Agora que ele é vidraça, não mais estilingue, pode-se conceber que elas sejam alcançadas. Cheguei até a mencionar a hipótese de Lula realizar a reforma da previdência que Fernando Henrique fez pela metade. É plausível. Mas, infelizmente, nestas semanas pós-eleição o ziguezague ainda parece tão provável como um caminho mais consistente.
A questão de Álvaro Mortari é também o tema da transformação de um partido de esquerda em um partido de centro, que em parte parece cosmética, mas talvez não seja. E é difícil avaliar isso. Como disse antes, o PT poderia ter facilitado sua própria vida e a do país se tivesse demonstrado com antecedência e solenidade que a mudança não era cosmética. Talvez não seja, mas ele não a conduziu com a pompa e a formalidade necessárias na vida política. A transformação foi sugerida muito mais pelos sortilégios do marketing do que formalizada como decisão política em congresso, como aconteceu no caso do PSOE, do Partido Social-Democrata alemão e do Partido Trabalhista inglês. Então a ambigüidade, que sempre existe nesses casos, é maior no Brasil, por essa razão.
Outra coisa que dificulta nossa situação, e que talvez não tenha sido frisada o suficiente nos debates públicos, é que os partidos social-democratas europeus têm origem marxista. Houve um longo período em que foram se moderando, mas em sua forma de organização, nos textos lidos, no seu treinamento, no seu clima intelectual, havia muito marxismo. O marxismo tem mil defeitos, mas tem uma grande vantagem sobre o PT. Tem teoria, textos densos que lhe servem como referência. Tem, portanto, um realismo, uma visão da história, e diria até um profissionalismo, que são traços muito importantes. Então, quando um partido assim diz que vai revisar suas posições, a credibilidade é muito grande porque ele muda como um todo, como uma estrutura profissional.
O PT nunca foi isso, e este é um erro de análise muito comum no Brasil. O PT não tem teoria nenhuma que se compare ao marxismo, tem apenas certa alusão a um padrão ético, em nível abstrato. É esse elevado grau de abstração que permite a convivência, dentro do partido, de pessoas que são apenas bem-intencionadas com radicais de várias procedências. Ou seja, o PT é uma federação de grupos, sem uma teoria consistente. Por isso, ele não podia solenizar seu processo de mudança. Como solenizar o que nunca foi solene? Isso faz com que a ambigüidade dessa mudança ideológica do PT seja insanável enquanto ele não começar a governar. Só quando ele optar por leis, por decretos, por medidas específicas, quando tomar decisões, é que vai finalmente delinear sua fisionomia definitiva. Por enquanto, há uma nebulosa que vem de sua história e do processo pelo qual se transformou.
A questão de Roseana é difícil de avaliar, mas penso que o potencial eleitoral demonstrado inicialmente por ela era muito grande. Não sei se resistiria aos embates, aos debates, a uma campanha nacional, a uma exposição mais intensa, aos inquéritos que talvez houvesse. Mas, como contraponto, como hipótese contrária a Serra, é interessante de se examinar. O que ele nunca conseguiu foi apresentar-se como um fato novo. Serra tem grandes méritos, mas novidade ele não era, até porque foi ministro do governo. O que tentou foi dizer que faria com mais competência, com mais conhecimento técnico, com mais percepção de detalhes o que o governo Fernando Henrique tentou fazer e que Lula também estava dizendo que faria. Como afirmei, meu grande temor é um governo que fique ziguezagueando, sem optar com clareza pelo caminho que ora se impõe.
E o mesmo vale para a oposição. Ela não será desestabilizadora ou agressiva, isso sei que não. Mas pode ser pastosa, indefinida e, portanto, insuficiente como alternativa e como fator de fiscalização. Para que isso não aconteça, o mais importante é retomar o debate das políticas públicas, das reformas, da estrutura do país na perspectiva de tempo. É voltar ao final dos anos 80, começo dos 90 e perguntar: se não tivéssemos estabilizado a moeda, onde estaríamos? Essa é a questão fundamental, e a resposta é aterradora. Se não fosse a estabilização, teríamos o país mergulhado numa crise seriíssima. O patamar mais alto em que hoje nos encontramos é que está criando a sensação de que as instituições se robusteceram. Realmente, em vez de viverem à mercê de uma inflação que corroía a sociedade de alto a baixo todo dia, elas puderam gradualmente solidificar suas práticas, a vida se tornou mais civilizada. O temor da questão militar desapareceu porque o país se estabilizou. O valor disso precisa ser recolocado em sua devida perspectiva histórica, para que uma oposição responsável, com discernimento e com clareza, se organize. Se ela for apenas parlamentar, apenas para dizer "não gosto desse projeto", não vamos resolver nada, vamos ter como oposição o que o PT foi para Fernando Henrique.

EDUARDO SILVA – Gostaria de comentar um pouco a história que se conhece de Lula. Ele está na política há 20 anos e se tornou um bom intérprete. Conviveu muito bem com a televisão e representa aquilo que é mais agradável ao sentimento do povo, não podemos negar isso. Outro mérito importante de Lula: durante a campanha exerceu seu poder de negociação, dominou as várias facções internas do PT, soube lidar com a televisão – a Rede Globo ficou praticamente ao lado dele – e se relacionar com o presidente Fernando Henrique. Há até suspeitas de que FHC o apoiou. Os outros candidatos infelizmente não souberam fazer isso.
Lula, portanto, é pragmático; ele conseguiu montar essa equação. Não sei se vai se manter, mas penso que não devemos mais chorar o leite derramado. Ele é o presidente, ganhou a eleição, soube se comunicar com o povo e precisamos estimular políticos para que façam isso também. Se Lula conseguir o apoio da imprensa, que me parece vai alcançar, e utilizar uma linguagem adequada, chegará ao final dos quatro anos de mandato, e é o que queremos. Ele sabe que a reação contra algum erro grave que cometer será tão grande que acarretará a perda do poder em curto espaço de tempo.

JOSEF BARAT – Há cerca de dez anos, conversando com um velho líder comunista, perguntei o que achava do PT, e ele me disse que os petistas eram os comunistas sem cultura. Achei uma definição fantástica. O marxismo e os partidos comunistas, mal ou bem, criaram uma cultura e o que você chamou de profissionalismo, o que permitiu a transição e as mudanças. Mesmo no Brasil, o velho partidão mudou com mais clareza do que o PT.
Mas você colocou três cenários possíveis. O de uma apropriação, por parte do novo governo, dos objetivos da administração anterior, aprofundando as mudanças e reformas, seria otimista. O segundo seria o ziguezague. Jango fez exatamente isso, era uma pessoa contraditória que ora pendia para a esquerda, ora para alguns compromissos internacionais que o Brasil precisava manter naquele momento, e assim a coisa desembocou em um golpe. Curiosamente, hoje os militares estão com Lula, o que é algo aparentemente surrealista, mas tem sua lógica também. Eles estão desprestigiados, sentem-se abandonados pelo governo de Fernando Henrique, que não os valorizou como gostariam. A possibilidade de um golpe ou ruptura nesse ziguezague talvez não seja igual à que havia com Jango. Mas pode acontecer outra coisa: os militares se juntarem a Lula buscando a afirmação de outra situação.
O terceiro cenário seria o do nacionalismo, da recuperação da capacidade de investimento do Estado. Chamou-me a atenção uma declaração de Celso Furtado, um homem que mantém sua dignidade, depois de receber a visita de Lula. Ele disse que o novo presidente não tinha um projeto, um programa, que dançava conforme a música do governo, o que é verdade. Não tendo esse projeto, não existe a alternativa do terceiro cenário. Parece que diante disso tudo o mais provável é realmente o ziguezague, até pelas características do partido, suas disputas entre facções internas. Enfim, embora você já tenha falado sobre essa questão, como é que seria isso? O país suporta ficar à deriva por quatro anos? Uma última observação: Lula não era o candidato de Fernando Henrique?

BOLÍVAR – Não sei.

BARAT – Acho que era.

VAMIREH CHACON – A mudança do programa do Partido Social-Democrata da Alemanha ocorreu em congresso realizado na cidade de Bad-Godesberg, em 1959. Portanto, veio depois do Plano Marshall. A mudança do PSOE até hoje se alimenta, em termos de aval eleitoral, dos fundos compensatórios da União Européia. Portanto, por trás da transformação do partido alemão em 1959 estava o Plano Marshall. E do PSOE, os fundos da União Européia. Ora, não existem fundos compensatórios no FMI e é pouco provável que venham a existir na Alca.
Pergunto: qual será a reação do PT diante da exigência que o Brasil tem de se costurar com as próprias linhas – tão frágeis e tão poucas? Quais as possibilidades de racha interno, com repercussão inclusive na saída de deputados federais do partido? No caso de evasão dos senadores, isso não causará grandes problemas, porque os petistas são pouco numerosos. Mesmo assim isso traria a repercussão natural. Existe a expectativa de o PT levar a autocrítica ao ponto da autodepuração? Isso poderá ocorrer já nos seis primeiros meses do governo ou vamos assistir a uma longa agonia de saída dessa minoria durante os próximos quatro anos? Que partidos vão substituir numericamente, nas contagens de votos na Câmara e também no Senado, os petistas evadidos? Parece-me que será o PL, que foi criado com o objetivo de esvaziar o PFL. Gostaria de ouvir suas respostas a respeito.

BOLÍVAR – Vou começar pelas ponderações de Eduardo. Lamento se transmiti a impressão contrária, mas não quis subestimar o lado positivo de Lula, sua experiência como negociador, o aspecto pragmático. Ele teve uma atuação extraordinária como líder sindical e de partido e, junto com José Dirceu, à frente dessa mudança de posição do PT. São papéis que exerceu em situações colegiadas, não conhecemos Lula como executivo monocrático. Ele demonstrou grande capacidade, não há como subestimar isso. Foram situações que não exigiam dele conhecimento muito aprofundado da matéria das decisões. É claro que ele melhorou muito seu aprendizado, mas não precisou assimilar o conteúdo de uma decisão em poucas horas, como o presidente da República freqüentemente tem de fazer. Suas qualidades, que me parecem inegáveis, são como um recipiente. A matéria que será colocada nesse recipiente, à qual ele terá de dar forma, infelizmente tem a ver com aquela bifurcação a que me referi. É a escolha imperativa, já no curto prazo, entre um caminho de continuação, talvez até de radicalização da política de Fernando Henrique, o que geraria resistências no PT e nos aliados, ou um nacional-desenvolvimentismo, uma política expansionista, que também envolve riscos elevadíssimos, depois de poucos meses. Suas qualidades serão postas à prova num meio muito árido, porque a bifurcação decisória em que ele vai se ver no curto prazo é muito séria.
Se não há muitas alternativas, se o programa escrito é vago, como em geral o são, e sendo essa tendência a mais provável, como é que esse ziguezague se manifestaria? Imagino algo assim: Lula pode dizer para o FMI que está cumprindo o superávit primário, mas o BNDES e o Banco do Brasil, com recursos extra-orçamentários, estarão aumentando os gastos. Criar-se-á então uma desconfiança no relacionamento com as instituições internacionais. Isso é perfeitamente concebível e seria um claríssimo exemplo de ziguezague, você dizer que está fazendo uma coisa e fazer outra. Os ministros Antonio Palocci e José Dirceu encontraram uma maneira muito interessante de responder aos governadores que pediram revisão de dívidas. Disseram: "Vamos fazer isso depois da reforma tributária". Ela pode acontecer daqui a seis meses ou 30 anos. Fernando Henrique, em vez de fazê-la, preferiu arrecadar 35% do PIB com um mau sistema tributário. Então o que significa realmente a resposta dos ministros? Evidentemente uma saída política para uma saia justa criada por uma demanda que foi colocada no colo dos vencedores. É uma emenda que não ajuda muito o soneto. Então o ziguezague pode surgir assim passo a passo, nas declarações ou decisões parciais.
Vamireh, você apenas tornou minha análise um pouco mais pessimista. Eu estava tentando imaginar que o PT pudesse formalizar seu novo posicionamento. Mas você me lembrou que as mudanças de Bad-Godesberg e do PSOE foram estimuladas por financiamentos. E há o caso do Partido Trabalhista inglês, que fez duas vezes isso, com um intento. Isso falta ao PT, mas sobretudo pela razão que discutimos antes, na verdade essa federação de várias nebulosas que o constituem e impedem o enunciado mais formal da mudança. Com essa composição, é difícil ao partido dar esse passo.

ROBERTO PENTEADO – O empresário da atividade privada somente sobrevive quando zela pelo patrimônio, aperfeiçoamento constante de critérios e tecnologias para participar da competição nacional e internacional, seleção permanente de mão-de-obra. Quanto à parte operacional e funcional, é necessário um permanente rigor contra a corrupção, principalmente nos departamentos de compras e comercial. A sobrevivência da empresa está também sempre dependente dos recursos financeiros conseguidos pela eficiência operacional. Cabe uma pergunta: será que a experiência do empresário privado se constitui em exemplo para a do cenário político? Assim como as gerações participam do processo de proteção do patrimônio familiar, algo semelhante deveria ocorrer na troca de governo.

MÁRIO AMATO – Como homem chamado para arrumar empresas quase falidas, tenho tentado organizar as coisas que devem ser feitas ou não, procurando pessoas honestas e evitando a corrupção. Um exemplo disso foi a administração de Mário Covas, que encontrou São Paulo de joelhos, e o estado está de pé novamente. Com Lula tive muitos debates e o considero uma figura honesta, idealista, com muito mais vontade do que capacidade de realizar. Será que os estados em que ganhamos a eleição (digo ganhamos porque declaradamente sempre fui a favor de Serra) não darão condições de tornar este país viável?
Durante a campanha enviei uma carta a José Serra, dizendo que ele tinha um patrimônio extraordinário que era sua vice-presidente. Hoje a mulher está ocupando posições mais fortes na administração, mostrando sua capacidade. Posso falar isso porque sou autor de uma frase infeliz que ficou famosa, quando disse que alguém, "apesar de ser mulher, era inteligente". Hoje elas dominam grande parte deste país, e eu dizia na carta que se Serra por alguma razão tivesse de se afastar a presidência do Brasil ficaria nas mãos de uma mulher. Não seria uma oportunidade de ouro para que se prestigiassem as mulheres que tanto bem têm feito no país?

FÉLIX MAJORANA – Após a vitória de Lula surgiu no Congresso uma proposta de dobrar o salário dos deputados. Em sua opinião, ela é meramente oportunista, uma atitude impatriótica dos parlamentares, ou uma primeira enxadada para abrir um buraco no governo de Lula, ou ainda para ampliar o descrédito do Legislativo?

JANICE THEODORO – Sua exposição levanta uma série de questões. Em primeiro lugar, a imagem de Lula hoje. Trabalhando com jovens percebi claramente uma mudança nas razões que os levaram a votar no PT. Entre os eleitores de Lula, muitos estão em torno de 18 anos. Essa geração vê a questão sob o ponto de vista da ética e da política. Eles não disseram sim para a esquerda e não para a direita, eles disseram não a uma antiga maneira de conceber a política e sim à ética na política. Isso é bom, embora o resultado possa ser difícil. Concordo que há um problema de ziguezague. Como o PT não tem quadros e precisa deles para montar a máquina governamental, vai fazer alianças. O problema é que nem o PT nem a oposição têm de fato um projeto para os desafios que estão sendo enfrentados. Ele é de responsabilidade de todo mundo, tanto do PSDB quanto do PT. Eu não tenho medo do PT ou da guerra fria, isso já passou. Tenho medo da ausência de projetos. E tenho a sensação de que já começam a se apresentar algumas soluções que vão levar a um fortalecimento inequívoco do Estado.
Temos uma crise em vista; ela tem de ser enfrentada e só pode ser resolvida com um projeto político. Mas o desafio de encontrar um modelo é de todos. É necessário regular o mercado, inevitavelmente com uma nova regra. O que tem se apresentado até agora são as agências reguladoras, que deveriam ter um formato que responderia às necessidades do mercado e aos anseios de uma geração que pede ética na política e na economia. É com essa perspectiva que pergunto como vê a saída do ziguezague.

BOLÍVAR – A questão dos setores público e privado é importante. Temos de reconhecer que as reformas que Fernando Henrique se propôs a fazer ficaram a meio caminho. A do setor público teve um caráter predominantemente fiscal, de evitar desperdício e economizar recursos. Mas em relação à qualidade da máquina, não se fez muito. E mesmo no caso dos gastos, ainda há muito a ser feito. Corrupção não tenho como quantificar, mas desperdício é evidente que há. O que me preocupa é que, ideologicamente, essa questão sai um pouco do foco com a mudança que estamos vivendo. No início do governo Fernando Henrique havia um foco até exagerado. Era o Estado agigantado, inchado, com excesso de desperdício, gastos malfeitos, mal direcionados, uma grande soma de recursos supostamente destinados à política social que nunca atinge os beneficiários. Essa reforma foi encaminhada e não concluída. E agora sai um pouco do foco porque voltamos à crítica, às restrições – "é o FMI que nos impõe sacrifícios" –, e com isso nossa cultura católica começa, de novo pela porta dos fundos, a legitimar gastos malfeitos, desperdícios, etc.
Voltando a meu tema, ressalto a necessidade de repor o debate integralmente no período que vem desde a Constituição até hoje, sem nos atermos ao processo eleitoral dos últimos meses. Se nos restringirmos a esse horizonte de tempo, vamos ficar falando como se a questão do Brasil fosse a redução inadequada, indevida e absurda de funções do Estado, quando na verdade não é essa. O Estado não cumpre certas funções mínimas, como segurança e justiça. Cumpre algumas, mas com muito desperdício. É o que Janice está dizendo, temos de continuar a discutir o Estado, sua eficiência e padrões de desempenho.
Roberto Penteado fez a comparação com o setor privado, porque este tem um açoite que o obriga a se ajustar. O setor público depende da discussão coletiva para prosseguir seu ajustamento. Então temos de manter no debate o setor público, não obstante a verbalização a esse respeito ser diferente com Fernando Henrique e com Lula.
Concordo inteiramente com Janice. Para evitar um ziguezague que nos levaria a uma crise talvez até institucional, temos de criar pontes partidárias. Não necessariamente alianças ou participação no governo, mas ligações que permitam a colaboração no delineamento de políticas e na troca de quadros quando for necessário. Não vejo por que isso não possa acontecer, uma vez que não há animosidade e hostilidade entre PT e PSDB. Em segundo lugar, devemos utilizar os mecanismos institucionais que existem. As agências reguladoras são controversas, mas são uma inovação institucional importante, necessária a um mundo mais privado. Elas vêm substituir antigos conselhos, comissões etc., que eram muito piores como instrumento de atuação em relação ao mercado e aos consumidores. É outro caminho a ser examinado, a necessidade de manter em pauta a discussão sobre a reforma do Estado, sobre o que já foi feito e deve ser preservado e o que ainda está por ser realizado, e obter a colaboração política em torno desses temas. Para isso é preciso que o PSDB não se ressinta demais da derrota eleitoral e, por outro lado, que o PT tire da cabeça certas idéias obsoletas sobre gastos públicos. Há muita gente no partido que pensa que se resolve o problema social desembolsando mais recursos.
Quanto aos salários, francamente não sei de que cabeça saiu o aumento neste momento. É uma dessas coisas lamentáveis que de tempos em tempos o Congresso faz. Muitas vezes os deputados mais éticos são os que sentem maior aperto e subterraneamente mais reivindicam aumento de salários na Câmara. O problema é que o momento não poderia ser pior.

NEY – Esse é um pleito do PT. Uma parte do salário dos deputados petistas é destinada ao partido e a grande maioria do quadro do PT é composta de gente humilde, que não tem outras fontes de renda.

ISAAC – Além do que o partido está endividado.

BOLÍVAR – Não quero individualizar o PT, mas sei que uma parte dos que criaram isso é do partido. O momento, entretanto, não poderia ser pior. Na véspera de troca de governo, isso evidentemente não contribui em nada para a imagem do Congresso.
Mário Amato falou sobre a natureza da oposição e a colaboração que precisamos dar. Fernando Henrique foi muito feliz quando disse que o PSDB não pode agir em relação ao PT como o PT se comportou em relação a ele. Isso diz tudo. O PSDB dispõe de quadros, ficou oito anos no governo e tem a experiência de haver tentado uma reforma estrutural profunda no país. Deverá, pois, colaborar para a viabilidade da etapa que agora se abre. Ao mesmo tempo, o Brasil não pode ficar sem oposição e sem fiscalização. Partidos como o PSDB, o PFL e o PMDB têm de encontrar o ponto certo, a colaboração necessária e indispensável sem prejuízo de sua autonomia e independência, até porque, no cenário de ziguezague, existe o risco de que grupos políticos diversos atuem de maneira desestabilizadora.
Daí também a necessidade de uma oposição firme, clara, responsável, altiva, sem prejuízo da colaboração.

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