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Feito de barro
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Arte dos figureiros do vale do Paraíba sobrevive e busca mercados
MARA NUNES e MARCO ANTONIO SÁ
As figuras de barro do vale do Paraíba, em São Paulo, são conhecidas por poucos, embora façam parte de uma história que começou no século 17. São quase 400 anos de uma arte que somente agora vem se consolidando, depois que os figureiros, num esforço diário, aprenderam também a contabilizar, comercializar e armazenar as peças, na busca de um lucro maior.
Nas oficinas improvisadas, os pedidos e encomendas se avolumam, de tal forma que muitas vezes é preciso aguardar um bom tempo para realizar a compra. É mais fácil encontrar as peças em lojas de artesanato nas grandes capitais brasileiras.
Produzir figuras de barro é uma atividade familiar, que passa de geração em geração. Aos 37 anos, José Eduardo Leite Santos é um exemplo dessa história. Vindo de uma das mais tradicionais famílias de figureiros de Taubaté, José Eduardo, após amargar um longo período de desemprego, esqueceu o sonho de ser engenheiro eletrônico e decidiu dedicar-se ao artesanato. Montou o ateliê sobre a laje de sua casa e assim sustenta a família.
Henrique Hidalgo, seu vizinho, tem uma trajetória diferente. É figureiro nas horas vagas, ou melhor, assim que chega em casa depois de um dia de trabalho na indústria. Nem por isso suas mãos deixam de ter a habilidade necessária para criar o pavãozinho, figura símbolo do artesanato de Taubaté. Na cidade, todos produzem essa ave, e cada artista procura caracterizar a sua com um detalhe identificador. No caso de Henrique a ave fica junto a uma árvore.
Como na maioria dos casos de quem vive de artesanato no Brasil, Henrique nunca entrou em uma escola de artes plásticas. O talento está no sangue e se aperfeiçoa no manuseio diário do barro. Sua filha Bruna, por exemplo, de 9 anos, até ensinou a professora a fazer uma galinha-d’angola.
A arte de criar figuras de barro também modelou a personalidade de José Eduardo, que após alguns percalços comerciais aprendeu a proteger com unhas e dentes seu trabalho e o das tias Maria Edith, Maria Cândida e Maria Luiza, que foram suas mestras. Se as figuras são copiadas ou têm sua autoria atribuída de maneira incorreta, ele imediatamente solicita a retificação e o direito pela obra.
José Eduardo tem peças na Alemanha e na Itália, mas o sobrinho das três Marias não é o primeiro da família a ver seu talento exportado. Quando o presidente Bill Clinton, dos EUA, esteve no Brasil em 1997 encantou-se com uma representação da Arca de Noé, feita por Maria Edith. Os assessores de Fernando Henrique Cardoso acionaram a prefeitura de Taubaté, que, por sua vez, contatou as três irmãs. Clinton levou para os Estados Unidos não só uma arca, mas um pavão e várias outras figuras.
Made in Brazil
Embora a exportação seja complicada demais para quem não é empresário e não dispõe da documentação necessária, as peças despertam grande interesse de estrangeiros. "Um banqueiro italiano ficou emocionado com uma figura de barro que recebeu como lembrança no Brasil. Explorar esse mercado é uma das alternativas de sobrevivência do artesanato", diz José Eduardo. "A maioria de nosso povo, com suas dificuldades financeiras, não consegue investir em arte", desabafa.
Henrique tem uma sólida clientela de lojistas no eixo Rio-São Paulo. Quem o ensinou a fazer presépios foi sua mãe, Maria Edith. Teve também aulas práticas para melhorar as expressões faciais no galpão das três Marias.
Para os figureiros, porém, as barreiras não são somente comerciais. Recentemente surgiu também a ameaça de alterações nos materiais utilizados. Os tradicionais pavões são pintados com Pó Xadrez azul ultramar, misturado a cola ou goma-laca com um pouquinho de álcool. Antigamente, as figureiras acrescentavam à fórmula algumas gotas de gasolina. Tudo para chegar ao tom desejado e conferir durabilidade à tinta. O resultado é uma cor única, que virou marca registrada por sua luminosidade e contraste.
Recentemente, porém, a fábrica que fornecia os pigmentos com a marca Pó Xadrez foi adquirida pela Bayer, que tirou o azul ultramar da linha de produção. De acordo com informações do químico responsável pela área de pigmentos da empresa, em Porto Feliz (SP), Sergio Guazzelli, essa tinta deixou de ser fabricada em decorrência de problemas ambientais e por apresentar alto grau de toxidez, e foi substituída por uma nova fórmula, à base de ftalocianina. "Para obter o azul ultramar o processo era muito complexo", afirma o profissional, que descarta sua volta à linha de produção. Além de ser inviável o investimento em equipamentos, foi desativada a unidade em que o pó era feito, na cidade de Mauá, segundo o químico responsável. Enquanto o estoque não termina, as figureiras mantêm o tom azul dos pavões de Taubaté, mas depois ele terá de mudar, encerrando uma longa tradição.
Fatores como esse descaracterizam o trabalho desses homens e mulheres, que se conservam fiéis à representação da vida e da cultura de uma das regiões mais ricas em história e folclore do Brasil.
Mesmo assim, imunes a modismos e interferências puramente comerciais, os figureiros expressam sua fé, suas recordações e o imaginário dos antepassados. Maria Luiza, de 73 anos, recorda a época em que começou a modelar suas figuras. Herdou a habilidade da mãe e do pai, Narciso Alves dos Santos, que também fazia peças de cimento para decoração.
A vontade de mexer no barro, que toda criança tem, transformou a brincadeira em arte, partilhada com outros aprendizes que cruzaram os caminhos das irmãs Maria Edith, Maria Cândida e Maria Luiza. Além da natureza, a religião é uma fonte de inspiração, e seus presépios mostram formas e cores vibrantes.
Maria Edith, a primogênita, faleceu em 1997. Deixou um legado não só para suas irmãs, mas também para as vizinhas. A rua onde moram tornou-se um ponto turístico da cidade.
O barro é trazido do leito do rio Itaim, que passa por Taubaté. Solteiras ou viúvas, essas mulheres tinham de, sozinhas, buscá-lo a pé, numa caminhada de pelo menos 3 quilômetros até o rio. A alternativa era comprar a matéria-prima ou contar com a boa vontade de alguém que se dispusesse a cedê-la. "Havia uma senhora que vendia uma lata de 18 quilos por 2 mil-réis. Imaginem a força que fazia para carregar todo esse peso", recorda Maria Luiza. Hoje, o transporte é mais fácil, feito de automóvel. O barro fica estocado em casa, em um tanque construído especialmente para isso.
Os santos são retratados pelos figureiros com suas principais características, mas a fé e o respeito não impedem que a criatividade se manifeste.
Maria Edith certa vez modelou uma imagem de Nossa Senhora inspirada em uma oração que seu pai sempre fazia. A imagem era rodeada de estrelas presas em um arco de arame. Ela achou que o resultado final não tinha muita cor e era meio sem vida. Criou então uma nova concepção, batizada de Nossa Senhora das Flores, em que as estrelas foram substituídas por pétalas coloridas.
A criatividade dos artistas também é estimulada por necessidades específicas dos clientes. Recentemente, José Eduardo enfrentou um desafio proposto pela equipe que organizava um rally em Taubaté. A peça teria de unir a tradição com o novo. Como associar um pavão a um automóvel? A solução foi colocar o pavão apoiado numa base em forma de pneu.
Outra empreitada difícil foi fazer a maquete de uma escola. Ela deveria ter 90 centímetros quadrados e levou quase um mês para ser concluída. O resultado agradou tanto que ele quase não entregou a obra.
Maria Luiza, Maria Cândida e Maria Edith sempre trabalharam nos fundos de sua casa. O local é também o ponto-de-venda e congrega outros membros da família que cuidam do acabamento e da embalagem das peças.
Se o atual modelo econômico exclui jovens do mercado de trabalho, no artesanato não se exige experiência. O que vale é gostar do que se faz. Aos 17 anos, Thaís Hellen da Silva é integrante da segunda geração "formada" pelas três Marias e sabe valorizar a riqueza e a importância da tradição transmitida por suas tias adotivas e mestras.
Na verdade, os artesãos são companheiros de trabalho que prestam ajuda mútua, em convivência cordial, sem ciúmes e sem concorrência. Estão conscientes de que o sucesso de cada um é também de todos. Assim, é comum que uma encomenda muito grande seja dividida entre os figureiros.
A disposição para ensinar também é freqüente em todos. Maria Luiza e Maria Cândida recebem visitas de inúmeros estudantes no ateliê repleto de tintas coloridas e peças prontas. Essa aproximação com o meio acadêmico contou com o incentivo do professor folclorista Rossini Tavares de Lima, já falecido. Em 1964, por intermédio dele, grande divulgador da arte popular brasileira, as três irmãs foram até São Paulo para suas primeiras exposições, uma no Parque da Água Branca e outra no Museu do Folclore, na época sediado no Parque Ibirapuera.
Outra pessoa que recebe o reconhecimento e a gratidão das figureiras é a professora Vanda Cursino, ex-reitora auxiliar da Universidade de Taubaté. Cliente fiel, presenteou a ex-primeira-dama Ruth Cardoso com a Arca de Noé que depois encantou o presidente Bill Clinton.
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