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O mestre da concisão
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Sesc Pompéia mostra vida e obra de Graciliano Ramos
LAURA LOPES e CARLOS JULIANO BARROS
Ser eleito "cidadão do século", de onde quer que seja, já é motivo de orgulho. A honra fica ainda maior quando resulta de um plebiscito, ou seja, de uma escolha popular. Alagoas, através de uma votação puxada pela imprensa do estado, deu esse título ao escritor Graciliano Ramos, seu "filho maior", como define o governador Ronaldo Lessa.
Exageros à parte, pois o próprio Graciliano hesitaria em receber tal honraria, a verdade é que ele teve uma trajetória ímpar na história literária do país. Foi moderno, mas não modernista; esquerdista, mas não panfletário. "Se existe algo que o singulariza é o fato de ele não se enquadrar em nada", resume o jornalista Audálio Dantas. Amante da obra do escritor, Dantas é o curador da exposição O Chão de Graciliano, que até o dia 30 de março conta, no Sesc Pompéia, em São Paulo, um pouco da vida e da produção do escritor, que faleceu há 50 anos.
O Chão de Graciliano divide-se em duas partes: uma reunião de documentos e um ensaio fotográfico, de Tiago Santana. A primeira expõe manuscritos, incluindo o capítulo "Baleia", que deu origem à sua obra-prima, Vidas Secas. Além disso, há cartas de próprio punho, documentos, objetos pessoais, fotografias e edições brasileiras e estrangeiras de seus livros – traduzidos para 24 idiomas.
A segunda parte reúne fotos da paisagem e dos tipos humanos que compõem a obra do escritor, tiradas em cidades por onde ele passou. Na verdade, o objetivo inicial de Dantas era fazer um livro, "uma reportagem que relacionasse vida e obra de Graciliano". A idéia não foi esquecida, mas acabou adiada devido à exposição no Sesc.
Estilo despojado
Por incrível que pareça, o talento literário de Graciliano veio à tona em um relatório, daqueles que deveriam ser bem burocráticos, enviado ao governador de Alagoas, no final dos anos 20. Naquela época, ele ocupava o cargo de prefeito da modesta Palmeira dos Índios. No relatório, Graciliano se queixava das dificuldades em gerir a cidade, devido aos poderes paralelos ao da prefeitura – como a influência dos coronéis, dos oficiais de justiça e dos policiais. O poeta Augusto Schmidt desconfiou que por trás do administrador que escrevia em estilo despojado haveria um escritor, com algum livro pronto. Estava certo. Em 1933, publicou-se Caetés, o primeiro romance.
Das andanças pelo sertão, quando ainda muito menino, e da pobreza enfrentada nos tempos de administração pública – e na vida inteira – é que Graciliano extraiu a matéria-prima de suas reflexões. "A justiça social e a denúncia da barbárie brasileira permeiam toda a sua obra", afirma Valentim Facioli, professor da Universidade de São Paulo (USP). "Ele possui um olhar moderno a respeito de velhos problemas brasileiros que até hoje não estão resolvidos, como a questão agrária e o coronelismo", completa.
Outro traço marcante em sua literatura é o caráter de confissão que as histórias assumem. Apesar de ter escrito livros claramente autobiográficos, como Infância e Memórias do Cárcere, torna-se impossível negar a influência que a miséria vista por ele imprimiu aos textos considerados ficcionais. "Não dá para considerar como experiência pessoal, mas sim como consciência social do autor", ressalva Facioli.
Entre todas as características da obra do escritor, a mais alardeada é a sua concisão. Avesso à revolução na linguagem promovida pelos modernistas de São Paulo, como Mário e Oswald de Andrade, Graciliano sempre zelou por uma escrita objetiva e acessível, mas que não fugisse aos padrões clássicos. A entrada da exposição no Sesc Pompéia denuncia seu estilo, através de uma faixa com a opinião do autor: "A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer". Ele, então, pode ser entendido como "tirano contra qualquer má escrita", resume Yêdda Lima, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
Esse rigor, na verdade, era um traço da personalidade de Graciliano transposto para a literatura. Há quem diga que o escritor chegasse a ser frio, mas Dantas garante que isso é lenda. "Graciliano era por natureza uma pessoa recuada, que odiava badalações", e completa: "Ele não viveu a vida espetaculosa própria dos escritores de São Paulo", rodeada de influências artísticas da Europa. Apesar disso, suas amizades formavam uma espécie de "elite intelectual" de Maceió, com Rachel de Queiroz e Aurélio Buarque de Holanda, entre outros.
Além disso, a pieguice, assim como o pitoresco, não têm lugar na literatura de Graciliano. Dessa maneira, fica difícil tachá-lo de "regionalista", como Jorge Amado e José Lins do Rego, que trabalharam suas obras em torno do ciclo do cacau e da cana, respectivamente, com boas doses de exotismo e esperança. "Sua postura é de reinvenção da realidade. A opressão é aparentemente sem fim e a desesperança é reinante", conclui Facioli.
Vida
Escritor, jornalista, secretário da Educação, comerciante, diretor da Imprensa Oficial e prefeito. Graciliano Ramos exerceu diversas funções ao longo de sua vida, e sempre as cumpriu com retidão. Certa vez, na prefeitura de Palmeira dos Índios, distribuiu inúmeras multas à população porque havia proibido a permanência de vacas na rua; nem seu pai foi poupado. "Esse episódio prova que ele foi um dos homens que tiveram maior rigor na administração pública, na história do Brasil", afirma Dantas. Além disso, é considerado por Lessa "o precursor da Lei de Responsabilidade Fiscal".
Essa idéia de "homem incorruptível", no entanto, é questionada por alguns estudiosos. "Na época da ditadura de Getúlio Vargas, Graciliano escrevia para a revista ‘Cultura e Política’, do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) [órgão responsável pela censura]", rebate Facioli. Essa personalidade íntegra mitificada "foi criada pelo Partido Comunista e pela família do escritor, interessados em preservar sua imagem", completa. Isso não quer dizer que a qualidade e a autonomia de seu trabalho tenham sido abaladas, "afinal, ele precisava sobreviver", pondera Yêdda.
Sertanejo, nascido na alagoana Quebrangulo, "teve uma formação intelectual autodidata", diz Facioli. Quando adolescente, emprestava livros de bibliotecas e de amigos. As maiores influências vêm do realismo/naturalismo europeu, com as obras do português Eça de Queirós e do russo Fiódor Dostoiévski, além de escritores brasileiros, como Machado de Assis. Aprendeu inglês e francês sem nunca ter assistido a uma aula de língua estrangeira.
No campo ideológico, Yêdda conta que "Graciliano tinha uma visão humanitária de igualdade", compartilhada pelos militantes do Partido Comunista (PC). Acreditava no comunismo como solução dos problemas sociais, mas nunca foi submisso ao PC, que mesmo assim tentava controlá-lo. "Ele sempre disse o que quis e nunca aceitou ordens em relação a sua obra", completa ela.
Suas idéias esquerdistas lhe renderam 11 meses de prisão, em 1936, nove anos antes de sua filiação ao PC. Na época em que Graciliano escrevia Memórias do Cárcere, colegas de partido pediam para ler os manuscritos a fim de conferir se havia algo contrário à ideologia comunista. "Quando isso acontecia, ele produzia menos", diz Yêdda.
Graciliano trabalhou muito tempo na imprensa. Em alguns veículos era crítico e ensaísta, em outros, revisor. Muitas vezes, "se a matéria estava mal escrita, Graciliano a amassava e jogava no lixo", afirma Yêdda.
Além da atividade jornalística, dedicava-se com afinco à escrita de seus livros. Varava noites fumando, bebendo e procurando a expressão mais exata para suas idéias. O trabalho diário, conta seu filho Ricardo em Retrato Fragmentado, rendia apenas uma página e meia. A pequena produção é facilmente compreendida observando-se os originais do autor: tudo é rabiscado, corrigido e despido de floreios.
Memória
Manuscritos, recortes e fotos do escritor alagoano foram doados para o IEB por Heloísa Ramos, a dona Ló, sua segunda esposa. Além de sua obra, cerca de 2 mil títulos de livros que pertenciam a ele estão no instituto. "Não é uma biblioteca grande porque ele se mudava muito", diz Yêdda. No total, o IEB concentra aproximadamente 15 mil documentos do escritor. O que não foi para lá ficou na Casa Museu de Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios.
A exposição O Chão de Graciliano é uma boa oportunidade para conhecer o universo de um dos maiores escritores do Brasil. Prova, ainda, a possibilidade de se formar um crítico dos problemas do país longe dos grandes centros econômicos e intelectuais. Problemas esses que, infelizmente, ainda persistem no cotidiano daqueles que o mestre alagoano tentou representar através de sua literatura. Uma eterna luta pela justiça social, que nem sempre é bem-sucedida.
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