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Reféns da pobreza


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Produção de veículos cresceu, mas falta comprador para tanto carro

ALBERTO MAWAKDIYE

A fantástica proliferação de fábricas de automóveis no Brasil – mais visível a partir de meados da década de 1990 – está assumindo todo o jeito de ter sido um erro de estratégia das montadoras. Já dá para perceber que pode não haver espaço para todas elas. O país conta, hoje, com nada menos do que 25 empresas e 51 fábricas, com capacidade de produção instalada de 3,2 milhões de veículos por ano. Entretanto, desde 1997, quando no Brasil foram fabricados 2,2 milhões de veículos – o melhor resultado de todos os tempos –, o total produzido não ultrapassa 1,8 milhão de unidades anuais. Pior ainda: a perspectiva é de estabilização, com viés de baixa. No ano passado, foram fabricados 1,7 milhão de automóveis, utilitários, ônibus e caminhões, quantidade inferior à de 2001, quando o total foi de 1,8 milhão de veículos, idêntico ao do ano 2000. A impressionante média de ociosidade tem oscilado desde 1998 entre 40% e 50% da capacidade instalada da indústria automotiva, algo nunca visto no setor, que é considerado o mais importante do país.

É um quadro assustador, já admitido sem reservas pelas montadoras, que confessam não saber muito bem o que fazer. "O mercado interno está estrangulado e estamos com dificuldades para competir no exterior", reconhece o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Ricardo Carvalho. "O setor investiu pesado na modernização e ampliação do parque industrial, mas o retorno, até agora, está abaixo das expectativas." De fato, as montadoras gastaram US$ 23,5 bilhões desde 1991, tanto em readequação de antigas plantas como na construção de novas unidades produtivas, processo que se acelerou a partir de 1996 – das 51 fábricas hoje existentes, 21 foram inauguradas desde aquele ano. Embora apresentem lucratividade em seu conjunto – o faturamento anual do setor está na casa dos US$ 20 bilhões, o equivalente a 10% do PIB industrial brasileiro –, há algumas montadoras que operam no vermelho e outras cuja receita está longe de satisfazer as matrizes.

O mais grave é que nada revela que o quadro se modifique em curto prazo. A queda do poder aquisitivo dos brasileiros, devido à crise econômica e ao desemprego, fez com que a compra de automóveis zero quilômetro perdesse espaço na lista de prioridades. Em 2002, foram vendidos 1,3 milhão de novos automóveis e veículos leves, contra 1,4 milhão em 2001 – o restante da produção foi para a exportação (que movimentou US$ 3,9 bilhões em 2002, contra US$ 4,1 bilhões em 2001) ou permanece nos estoques. O carro usado continua a reinar no mercado. Uma estimativa do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças) dá conta de que pelo menos 7 milhões de automóveis, um terço da frota nacional, têm mais de 11 anos de idade – um sinal inequívoco do baixo poder aquisitivo da massa compradora de carros.

Concorrência

Não é difícil descobrir o que levou as montadoras a cometer esse provável erro de programação, que tem tudo para se tornar um dos mais crassos da história da indústria automobilística (o Brasil só perde hoje em número de fábricas para os Estados Unidos). A origem está na disputa feroz que vem mobilizando – e atormentando – o setor pelo menos desde o final dos anos 1980, devido à esperada saturação dos antes apetitosos mercados do Primeiro Mundo. Para compensar essa perda anunciada, os fabricantes passaram a buscar freneticamente posições nos mercados emergentes – uma estratégia que possibilitaria também jogar para baixo o custo de produção de peças e componentes. Todos fizeram isso mais ou menos ao mesmo tempo, e nos mesmos lugares – leste europeu, sudeste asiático, Índia, China, alguns países do Oriente Médio e América Latina, onde o Brasil foi o país que recebeu as apostas mais altas. A capacidade instalada mundial explodiu, saltando para algo em torno de 50 milhões de unidades por ano, quase igualmente distribuídas entre Europa, Américas e Ásia-Oceania.

A verdade, porém, é que essa estratégia até agora não deu resultado em praticamente parte alguma – o Brasil é apenas o exemplo mais dramático. Se, de fato, os custos foram reduzidos com a globalização das linhas de montagem, a produção mundial não ultrapassou ainda 40 milhões de unidades, o que significa que 20% da capacidade instalada no planeta não está sendo utilizada. "A realidade é que a demanda nos países mais pobres está se mostrando insuficiente para compensar a estabilização nas nações desenvolvidas", diz o consultor Marcelo Möller, da Roland Berger. Na prática, Estados Unidos, União Européia e Japão concentram ainda 75% do comércio de carros, embora a demanda seja hoje principalmente de substituição. Nos EUA e na Europa ocidental, a comercialização de automóveis novos alcança cerca de 16 milhões de unidades por ano em cada um deles. O crescimento absoluto de vendas na casa dos 5% registrado no conjunto dos países emergentes chega a ser insignificante nesse contexto. Mesmo um aumento de 20%, no Brasil, adicionaria um volume de pouco mais de 300 mil unidades à indústria mundial. O mesmo pode se dizer da China, mercado menor do que o brasileiro, onde a produção ainda não ultrapassa os 700 mil carros por ano.

As previsões para o futuro imediato são sombrias. Já houve um recuo nas vendas de 3,2% nos mercados tradicionais em 2001 – volume parcialmente recuperado no ano passado –, e espera-se uma queda de 12% na produção de carros nos Estados Unidos até 2004, e de 5% no Japão nesse mesmo período. No tocante às vendas, as estimativas mais otimistas são de um crescimento de 1% ao longo da década nesses países, onde quase todas as famílias já possuem mais de um automóvel. Esse quadro nada auspicioso é o principal responsável pela surpreendente quantidade de parcerias operacionais e mesmo institucionais que vem caracterizando o setor nos últimos anos. Sem possibilidade de conquistar novos mercados, algumas montadoras não têm encontrado outra saída senão juntar-se para atuar de modo combinado naqueles já existentes.

Motorização

Diga-se que a escolha do Brasil como uma das principais plataformas da indústria automobilística mundial parecia ser uma boa idéia em meados dos anos 1990. O país possuía – e ainda possui – um dos menores índices de motorização entre as nações de desenvolvimento equivalente, com um carro para cada oito habitantes, contra um para cinco na Argentina (a relação é de um para dois nos países desenvolvidos). A estabilização da moeda, a abertura do mercado, a possibilidade de crescimento econômico e a política automotiva bastante liberal adotada pelos sucessivos governos a partir de Fernando Collor (1990-92) também estimularam a vinda das empresas. Até então, o Brasil abrigava não mais do que uma dezena de montadoras – entre as quais se destacavam as dominantes (até hoje) Volkswagen, General Motors, Ford e Fiat no setor automobilístico, e Mercedes-Benz, Volvo e Scania no de ônibus e caminhões. As poucas fábricas concentravam-se basicamente na região do ABC paulista, em algumas cidades do interior de São Paulo e em Minas Gerais, e a capacidade instalada era a metade da atual.

"Sem a política automotiva do governo, as montadoras não teriam como se multiplicar no Brasil", afirma Jefferson da Conceição, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que fez vários trabalhos sobre o assunto para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, a cidade do ABC que é o berço da indústria automobilística brasileira. "Poucos setores da economia se beneficiaram tanto das políticas governamentais como o automotivo na década de 1990." Conceição cita desde os benefícios fiscais – que, estendidos aos estados, provocaram a famosa "guerra fiscal" dos anos 1990 e levaram a indústria automobilística para o sul, nordeste, norte e centro-oeste do país – até as regras estabelecidas para o comércio exterior, que facilitaram as exportações e tornaram a importação de autopeças um negócio quase obrigatório, por conta da redução de alíquotas. Algumas alcançaram incríveis 2% em 1995, e deixaram os componentes importados mais baratos do que os fabricados aqui. Era uma conjuntura que não se podia desprezar.

Carroças

Também não é por acaso que esse cenário otimista tenha surgido a partir de uma das piores crises institucionais vividas pela indústria automobilística nacional. Todos se lembram da fúria de Collor ao denunciar as "carroças" produzidas pelas montadoras brasileiras, que, favorecidas por uma virtual reserva de mercado, estavam de fato fabricando nos anos 1980 automóveis completamente defasados em termos tecnológicos, se comparados aos carros europeus, norte-americanos e japoneses, e cobrando mais caro do que nos países ricos. Collor escancarou o mercado para as importações, e milhares de modelos estrangeiros sofisticados passaram a circular pelo país. Após esse choque, que fez a produção cair para assombrosas 900 mil unidades em 1991, principalmente por conta do desastre econômico promovido por aquele governo, logo uma seqüência de "acordos automotivos" recolocaria o mercado nos eixos e daria o impulso para a reconfiguração do setor.

A febre de importações foi interrompida pelo presidente Itamar Franco (1992-95), até restringir-se novamente ao segmento de luxo, e a redução de impostos e preços, principalmente no segmento popular, fez a produção aos poucos ser retomada. Em contrapartida, as indústrias comprometeram-se a investir em tecnologia – o que fizeram, melhorando substancialmente a qualidade dos carros brasileiros. O crescimento das vendas, estimulado pelo sucesso inicial do Plano Real, pelos acordos comerciais assinados com a Argentina no âmbito do Mercosul e pelo crescimento horizontal e vertical do parque industrial, acabaria por atrair a concorrência. Sob aplausos do governo e dos consumidores, muitas montadoras que sempre torceram o nariz para o mercado brasileiro vieram para o país, como as francesas Renault e Peugeot e o segmento automobilístico da germano-americana Daimler-Chrysler, fruto da fusão da Chrysler com a Mercedes-Benz.

Outras abriram unidades apenas para fabricar uma parte dos carros a serem terminados em local diferente, aqui ou no exterior, ou para complementar modelos que chegavam já parcialmente montados. As que devem ser as últimas desse segmento – naturalmente, hoje ninguém mais aposta um centavo na vinda de novas montadoras para o Brasil – se instalaram no ano passado e são completamente desconhecidas dos brasileiros. São a portuguesa Fabral – que começou neste ano a produzir utilitários e chassis para ônibus no quase desabitado estado do Tocantins, em parceria com uma empresa espanhola e outra indiana – e a romena ARO, que iniciou em julho de 2002 a produção do jipe Cross Lander em Manaus, no Amazonas, junto com um grupo norte-americano.

Mal-entendido

Ressalte-se que não foi a crise econômica ressurgida com toda a força no final do governo Fernando Henrique (1995-2003) a única responsável pela posterior derrapagem da indústria automotiva no mercado interno. Nem foi apenas a crise argentina a culpada pela queda pronunciada do volume de exportações – a participação daquele país no total de veículos exportados pelo Brasil caiu de 32,9% em 1998 para 15,8% em 2001, reduzindo a fatia da indústria automobilística nas exportações brasileiras de 16,6% para 12,8% no mesmo período. Sempre houve também uma espécie de mal-entendido nas estratégias de crescimento das montadoras e do governo, e que só agora começa a se mostrar como um equívoco de grandes proporções. A ampliação das vendas internas, por incrível que pareça, não foi levada em consideração nos dourados anos 1990. Toda a estratégia de crescimento foi centrada em mercados mais ou menos preexistentes e na exportação.

As principais montadoras multiplicaram as fábricas para ocupar parte do mercado com os novos carros populares e parte com os de porte médio, que juntamente com os modelos de luxo lhes permitiriam participar da exportação com produtos diferenciados. Só que não foi estabelecida uma política consistente de redução de preços, e veículos realmente baratos nas duas categorias não foram lançados. Os novos carros populares continuaram acessíveis apenas à classe média, o que garantia maior lucratividade, mas não ampliava o leque de consumidores. As companhias que trabalham com montagem parcial incidiram em erro parecido. Além de não considerar a possibilidade de recessão mundial, não procuraram abrir nichos alternativos no mercado interno.

No contexto da crise do final dos anos 1990, o plano foi obviamente por água abaixo. A classe média não tinha mais condições de arcar com a compra de carros de maior valor agregado, e as grandes montadoras foram obrigadas a concentrar-se nos chamados "carros 1000", que hoje ocupam quase 80% da produção, com um máximo de concorrência e um mínimo de clientela. Se a opção pelo carro popular permite ainda vender alguma coisa no mercado interno – bloqueando-o, de passagem, para as concorrentes recém-chegadas –, praticamente inviabilizou a exportação de unidades prontas. Os carros 1000 não têm apelo algum para consumidores da Europa e dos Estados Unidos, que são os mais tradicionais mercados brasileiros, depois do latino-americano, e as vendas externas nesse segmento são próximas de zero. As montadoras acabaram por se tornar reféns da pobreza do país.

Talvez até pior do que isso: elas acabaram por depender de um mercado de classe média empobrecido, mas ávido por novidades, que deseja em seus carros populares as mesmas inovações tecnológicas que vê nos automóveis médios e de luxo, o que é inviável por questões de custos. "Temos de equipar cada vez mais os carros 1000, porque nosso público praticamente o exige", reconhece Marcelo Olival, gerente de Planejamento e Programas de Marketing da Volkswagen. "Mas é óbvio que há um limite físico para isso." De fato, freios ABS, air bags e sistemas de navegação são ainda prerrogativas, no Brasil, de pouquíssimos modelos de automóveis. De qualquer forma, a tendência é o carro 1000 ficar cada vez mais sofisticado e voltado exclusivamente para as classes detentoras de renda – e progressivamente mais caro.

Ajuda

A Anfavea já manifestou que quer ajuda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pretende conversar com ele sobre a necessidade de reduzir novamente a carga tributária que incide sobre os automóveis – hoje entre 30% e 40% – e também sobre a adoção de uma nova política de estímulo à exportação. A entidade assinou vários acordos bilaterais no ano passado e deseja que o governo acene com algumas medidas concretas, que facilitem a assinatura de outros. A implantação de um amplo programa de financiamento para as classes populares talvez conste igualmente da lista de propostas. São medidas consideradas paliativas pela própria Anfavea, que vê na retomada do desenvolvimento econômico a única saída para suas mazelas.

É provável, no entanto, que a entidade não obtenha para essas propostas – todas elas de curto prazo, mas que podem mexer com a receita do governo – o desfecho esperado. Isso porque, por conta das políticas desastradas dos anos 1990, a indústria automobilística perdeu a função estratégica que sempre desempenhou na economia brasileira. Devido à automação, as montadoras já não oferecem tantos empregos como na época de Juscelino Kubitschek (1956-61) ou mesmo no começo da década de 1990, quando cada operário fabricava por ano dez unidades – hoje produz 21. Em 1990, havia 138 mil empregos diretos na indústria automobilística. Atualmente, não há mais do que 93 mil – apesar de o número de fábricas ter quadruplicado.

A indústria nacional tampouco teria a ganhar diretamente com a recuperação do setor automotivo, com exceção de um ou outro segmento. As fábricas modulares que já substituíram por toda parte as velhas unidades fordistas quase prescindem, por exemplo, do fornecimento de autopeças. Elas operam hoje em sistemas de consórcio ou de condomínio, nos quais as produtoras de autopeças, quase sempre multinacionais associadas, instalam-se dentro da própria montadora. O modelo – altamente concentrador – tirou do mercado milhares de empresas nacionais desse segmento e foi responsável pela internacionalização de ícones do setor, como a Cofap e a Metal Leve. Para cada fábrica de autopeças que se fecha, perdem-se 50 anos de tecnologia e memória administrativa. Na prática, não há mais engenharia de pesquisa na indústria automotiva brasileira, já que tudo vem de fora, inclusive o design dos automóveis, segundo o conceito hoje universalizado de "carro mundial".

Assim, sem uma mudança estrutural mínima no setor, as medidas propostas pela Anfavea beneficiariam apenas as próprias montadoras. É difícil imaginar que Lula – um presidente que, por uma dessas ironias da história, começou sua carreira política no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo – dê mesmo essas medidas paliativas de graça.

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