Postado em
Poeta para o século
|
Ensaios destacam a riqueza da poesia de Drummond de Andrade
CECÍLIA PRADA
No centenário do nascimento de Carlos Drummond de Andrade, comemorado em 2002, multiplicaram-se artigos, estudos, livros e eventos, homenagens. Dentre eles destacamos o lançamento de Drummond Revisitado (Unimarco Editora, 152 páginas), organizado por Reynaldo Damazio. Com ele inaugura a editora sua coleção Leitura Crítica, que será dedicada ao debate de temas e autores relevantes à cultura contemporânea. Este primeiro volume traz seis primorosos textos de jovens especialistas em letras, quase todos também poetas, dos quais diz o apresentador da obra, o professor e crítico Carlos Felipe Moisés: "Os ensaios aqui reunidos representam o que pode haver de mais auspicioso em matéria de vigor e maturidade da nossa literatura".
Realmente, são seis olhares diferenciados que esmiuçam a riqueza expressiva daquele poeta desajeitado que se dizia apenas "um gauche na vida", e permitem ao leitor decifrar os segredos da sua melancolia, do humor peculiar, dos embates com os rumos políticos da época – e sua época (1902-87) foi praticamente todo o século 20... E ainda aprofundam seus recursos estilísticos, o relacionamento mágico da memória com o tempo, a onipresente penetração das imagens criadas, do discurso capaz de captar de cada detalhe da vida cotidiana o aspecto eterno, conciliando o eu lírico com aquele grande "sentimento de estar no mundo". Seis estudos comprometidos com a prerrogativa da criação literária, em sentido estrito, pois são ensaios de escritores, que em nenhum momento abdicam dessa condição, e igualmente marcados pelo rigor que se espera da produção crítica universitária. Cada qual a seu modo, todos parecem empenhados em responder à indagação singela, não obstante decisiva: por que, afinal, devemos continuar a ler Drummond, hoje?
O mais extenso desses ensaios, "Drummond e a Poética da Interrupção", de Eduardo Sterzi, tem 40 páginas. Sem "devassar a engenharia do poema", o autor se detém na forma cristalina, geométrica, do poema "No meio do caminho", e dele parte para a análise do recurso recorrente em toda a obra do poeta itabirano – a "interrupção" capaz de desviar o curso da reflexão, ou da ação, para contagiar o leitor com a fundamental perplexidade do poeta. "Só assim", diz Sterzi, "poderiam (os poemas) fixar-se na memória e exigir respostas, preferencialmente em forma de ação." Com grande fluência e erudição, o ensaísta consegue caracterizar o "trágico moderno" em Drummond como a coincidência exata entre a consciência histórica e a interrupção do pathos reflexivo – homem do seu tempo, que era um "tempo de homens partidos", sua obra é também testemunho da impotência do artista, diante do cataclismo.
Não são menos importantes os cinco ensaios menores. Tarso de Melo trata do caráter onipresente da poesia de Drummond no cotidiano e da posição central que ela ocupa no referencial de toda a produção poética nacional. Ressalta como seus versos, "simples", "podem conter todo um tratado de estética, de ética, um turbilhão de imagens, um caminhão de sentidos", na síntese de tudo o que os artistas se dedicaram a imaginar nos séculos anteriores de nossa poesia. A monumental, caleidoscópica obra drummondiana constitui um largo arco modernista que promove, com uma espécie de "violência de pensamento", a releitura de quase todas as coisas da vida, para através de suas palavras construir "o verbo antipático e impuro" de um poeta a quem "resta a alegria de estar só, e mudo".
Sérgio Alcides prefere individualizar, na temática de Drummond, a melancolia. É esse sentimento que aglutina as questões propostas pelo poeta, e o seu grande feito teria sido, a vida toda, o de conseguir aprofundá-lo sem nele comprazer-se – sem cair no que era tradição, e tentação, na literatura ibérica. Só a ironia salva o poeta do isolamento melancólico e vai estabelecendo as bases "de um acordo provisório entre o mundo e o indivíduo, renovado a cada dia". Como Charles Baudelaire, Drummond consegue também converter em alegoria tudo o que vê. Sérgio Alcides leva mais longe a comparação entre os dois, detectando na poesia do brasileiro "um certo odor a enxofre que lembra o satanismo literário de Baudelaire", embora temperado com a discrição mineira. Isso termina por estabelecer os termos do conflito verdadeiro – no dizer do ensaísta, "uma oscilação que não era entre o tempo do indivíduo e seus vislumbres de eternidade", mas sim "entre indivíduo e mundo, aflição e participação, negatividade e responsabilidade".
Jerônimo Teixeira estuda a poética do resíduo em que Drummond foi mestre – "Para fora do tempo arrasto meus despojos..."–, um movimento que, segundo a imagem ousada de Teixeira, "pode fazer, dos tais despojos, uma referência velada ao cadáver do próprio poeta". Os resíduos da vida, em Drummond, são "coisas fora do tempo" – com elas, objetos subtraídos à sua inteireza, o gênio faz um inventário detalhista do mundo, à maneira daquelas enumerações tão ao gosto de outro grande poeta, o norte-americano Walt Whitman. Diz Teixeira que ao "gauche e deserdado", reduzido a funcionário público, e que só está nessa condição porque já não tem ouro, gado, fazendas, só "resta o jornal rasgado, a madeira de velhos móveis, um vaso sem flor, o exemplar de um velho livro, uma estranha xícara sem uso". E amores em surdina, dolorosos e crepusculares. Em sua poesia, mais duradoura do que os monumentos de concreto, Drummond, nos diz Teixeira, "dedica-se a fazer aflorar a dor histórica que se entranha nas coisas mais ínfimas e desprezadas".
A retomada da tradição romântica, expressa na dramatização lírica e temperada pelo humor do poeta, é o tema do ensaio de Ivone Daré Rabello. Em uma análise que vai buscar raízes no romantismo alemão do século 19, ela estabelece que em Drummond a dramatização irônica parece estar ligada diretamente ao modo pelo qual, na cena da história brasileira, o artista romântico foi obrigado a alijar-se do público. A grande tarefa dos primeiros modernistas seria justamente a "quebra da auréola" e a promoção do escândalo, dirigido contra o burguês. E a de Drummond, em particular, a de superar a conjuntura em que se encontrava a poesia lírica, desprestigiada. Na sua atitude irônica, o eu lírico se desdobra – daí a "visão distanciada" do mundo e o advento pleno do humor – onde inclusive o amor pode reinstalar-se.
A série de livros de poemas intitulada Boitempo – que tem como tema a lembrança dos tempos de colégio – está ligada intimamente à tradição do Bildungsroman (romance de formação) da literatura universal, mas a forma poética reveste-a de características inteiramente originais. É esse o objeto de estudo de Chantal Castelli, que encerra o volume editado pela Unimarco. O material autobiográfico, retrabalhado pela invenção formal, realiza o que Antonio Candido já definira como "uma dupla entrada" para a leitura. A partir desses dados a autora vê Boitempo como obra que, embora não dominada pela negatividade, acaba por constituir um "exercício de desmascaramento" – o "fim da casa paterna" (como já diz o título de um dos poemas), com a perda da proteção familiar e o enfrentamento de uma outra realidade, o colégio interno, pelo adolescente. Processo repetido quando, expulso do colégio de Friburgo, ele se vê diante do verdadeiro mundo exterior – mas a própria condição do internato, um ambiente de injustiça e desilusão, prepara-o para adotar diante da vida uma posição crítica que nunca mais abandonaria. A análise de Chantal Castelli do imenso material autobiográfico da série, e da sua resolução em termos formais, de tão detalhada constitui uma poderosa lente de aumento aplicada à riqueza do universo do poeta, e da sua obra tomada como um todo.
![]() | |