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A luta contra a fome


Crianças desnutridas em São José da Tapera (AL) /
Foto: Leonardo Sakamoto

O acesso à comida é problema antigo. Lula terá sucesso?

MARCIO KAMEOKA

Em 1946, Josué de Castro publicou Geografia da Fome, análise crua dos problemas nutricionais do país, em que descrevia as principais deficiências alimentares de cada região do Brasil, desde o rico sudeste (falta de vitaminas) até o depauperado nordeste (fomes endêmicas). O autor entendia do assunto. Médico, geógrafo e antropólogo, tinha sido representante do Brasil em uma conferência internacional sobre agricultura e alimentação, realizada em 1947 em Hot Springs, nos Estados Unidos, com o objetivo de discutir meios para reerguer a produção agrícola mundial, devastada pela 2ª Grande Guerra, e mais tarde viria a ser presidente do Conselho da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Em 1993, Herbert de Souza, o Betinho, lançou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, mobilizando milhões de brasileiros. A iniciativa levou o governo federal a criar o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), órgão que incluiu a sociedade civil na formulação de políticas de combate à miséria e à fome. Finalmente, em 16 de outubro (Dia Mundial da Alimentação) de 2001, Luiz Inácio Lula da Silva e o Instituto Cidadania lançaram o Projeto Fome Zero, com a esperança de erradicar o problema no Brasil – um objetivo que, desde as eleições de 2002, é posto como prioridade no novo governo.

Nesses mais de 50 anos entre os primeiros trabalhos de Josué de Castro e as iniciativas do governo Lula, a fome e a desnutrição permaneceram como parte da realidade do país, em nítido contraste com seu potencial de produtor de alimentos. A própria FAO diz que o Brasil, há anos, tem comida mais que suficiente para sua população. Segundo essa agência, hoje estariam disponíveis para cada brasileiro 2.960 quilocalorias diárias, bem mais do que as 1.900 recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O problema, portanto, não é a produção, mas o acesso à comida.

De acordo com relatórios do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgão ligado ao Ministério do Planejamento, os 10% mais ricos da população brasileira acumulam mais de 50% da riqueza nacional, enquanto os 50% mais pobres só têm acesso a 10% dela.

Embora a Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada em 1948 pelas Nações Unidas, tenha lançado luzes sobre o debate em torno dos direitos dos indivíduos, foi somente em 1966 que a ONU aprovou um documento que tratava explicitamente de alimentação: o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que define, em seu artigo 11, que os Estados partícipes "reconhecem o direito de todos a um padrão adequado de vida para si e sua família, inclusive alimentação, vestuário e habitação adequados, e à contínua melhora das condições de vida".

O mesmo texto lembra que os Estados devem também reconhecer "o direito fundamental de todos de se libertar da fome", cabendo-lhes adotar medidas para "melhorar métodos de produção, conservação e distribuição de alimentos". Complementarmente, a ONU publicou em 1999 o "Comentário Geral 12", em que definiu com mais detalhes o direito humano à alimentação.

As Nações Unidas criaram também a figura dos relatores especiais dos direitos humanos, que percorrem o mundo investigando denúncias de violações e a situação geral em diversos países. Em março de 2002, por exemplo, o Brasil recebeu o relator suíço Jean Ziegler. Ao cabo de 18 dias de visita, suas opiniões sobre a desigualdade social não poderiam ser mais contundentes: "No Brasil, existem a Inglaterra, a Alemanha e a França, ao mesmo tempo que Serra Leoa e Nigéria", disse durante encontro com ONGs em São Paulo.

Metas distantes

Realizada em Roma, em junho de 2002, a Cúpula Mundial de Alimentação tinha por objetivo verificar o cumprimento das metas de diminuir pela metade o número de famintos, estabelecidas em encontro ocorrido em 1996. A FAO convocou a reunião como uma retomada daquele projeto, consciente de que praticamente nada se fizera nos últimos anos para reduzir a miséria. Estimava-se que cerca de 830 milhões de pessoas passaram fome no período de 1990 a 1992. Segundo Ziegler e a FAO, havia ainda 815 milhões nessa situação.

Uma decisão importante da cúpula de 2002 foi a criação de um sistema de diretrizes voluntárias. Na avaliação do médico Flávio Valente, especialista em segurança alimentar que representou a sociedade civil na cúpula, esse foi o grande fracasso do encontro, pois enfraqueceu a proposta de elaboração de um Código Internacional de Conduta sobre a Operacionalização do Direito Humano à Alimentação, transformado em simples diretrizes voluntárias sob a pressão dos governos da Inglaterra e dos EUA. O fracasso foi "reflexo de uma forte vontade política dos governos e das agências financeiras internacionais em apoio ao modelo de desenvolvimento global baseado na liberalização mundial do comércio", afirma Valente.

Ziegler, entretanto, declarou que as diretrizes voluntárias são, ainda assim, um progresso, pelo potencial que têm de fortalecer o entendimento dos governos, abrindo "espaço para reafirmar a importância dos direitos humanos na luta contra a fome".

Itamar e a Ação da Cidadania

Ao assumir a presidência em 1992 após a renúncia de Fernando Collor, Itamar Franco também colocou o combate à fome como prioridade. Na verdade, o presidente assumiu propostas da Política Nacional de Segurança Alimentar, elaborada em 1991 pelo governo paralelo, criado por Luiz Inácio Lula da Silva para acompanhar a administração de Fernando Collor de Mello após as eleições de 1989.

Foi nessa época também que surgiu a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Mobilizando mais de 30 milhões de brasileiros, Betinho organizou milhares de comitês para angariar e distribuir alimentos para populações flageladas. Essas ações colocaram a fome e a desnutrição na agenda nacional. Em 1993, o IPEA elaborou os Mapas da Fome no Brasil, revelando um diagnóstico preocupante: 32 milhões de brasileiros não dispunham de renda suficiente para se alimentar. Dados mais atuais dão conta de que o número dos que vivem em condições de pobreza e miséria absoluta cresceu de forma assustadora, chegando a pelo menos 54 milhões de pessoas.

Itamar criou o Consea em abril de 1993. Formado por ministros e representantes da sociedade, esse órgão indicava os rumos para o Plano Nacional de Combate à Fome e à Miséria e promoveu em Brasília, em julho de 1994, a 1ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar. O evento reuniu cerca de 2 mil delegados de todo o Brasil, que apontaram a concentração de terra e de renda como a principal causa da fome no país. A conferência definiu dez prioridades, separadas em três eixos: ampliar as condições de acesso aos alimentos e reduzir o seu peso no orçamento familiar; assegurar saúde, nutrição e alimentação a grupos populacionais determinados; e assegurar a qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos e seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares corretas e estilo de vida saudável.

Flávio Valente fez parte desse conselho, representando a sociedade civil. Em sua avaliação, o Consea, contando com a força de mobilização da Ação da Cidadania, possibilitou um grau inédito de independência em relação ao poder do Estado. O órgão cumpria o importante papel de fiscalizar a atuação governamental, além de promover a descentralização das ações e a defesa de programas prioritários para o combate à fome e à exclusão.

O Consea, entretanto, teve vida curta. Foi extinto nos primeiros dias do mandato de Fernando Henrique, desfazendo a parceria com o Movimento pela Ética na Política. Em seu lugar foi criado o programa Comunidade Solidária, órgão de consulta, que provocou uma fragmentação das políticas contra a fome.

Fome Zero, o prato do dia

Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o combate à fome foi, entretanto, alavancado por políticos da oposição e pressões da sociedade civil. Minas Gerais, Alagoas, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul estabeleceram parcerias com o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar, formado por ONGs. Mato-grossenses e mineiros criaram inclusive conselhos estaduais.

Em 1999, o Projeto Alvorada foi anunciado como a nova instância dos programas de combate à miséria no governo federal. Ligado à Secretaria da Assistência Social, foi financiado, majoritariamente, pelo Fundo de Combate à Pobreza. O atual ministro de Segurança Alimentar, José Graziano, lembra que o fundo só foi aprovado no Congresso Nacional em 2001, logo após o lançamento do Projeto Fome Zero.

Um dia após a eleição, o presidente Lula anunciou a criação de um ministério para combater a fome, com verbas e poderes para iniciar, já em janeiro, esse trabalho. O que o governo procura fazer, agora, é unir o conhecimento e as experiências acumuladas desde 1991 para agir.

O Projeto Fome Zero – Uma Proposta de Política de Segurança Alimentar para o Brasil aborda de forma abrangente o assunto, apresentando várias medidas para erradicar a fome e a desnutrição.

Sua programação inclui um conjunto de medidas a serem tomadas. Há as estruturais, que devem fazer a economia crescer e melhorar a distribuição de renda. E as emergenciais, para atender a famílias em situação grave, as quais levarão algum tempo para sentir os bons efeitos do desenvolvimento.

No campo emergencial, algumas ações concretas já estão em vista: estímulo à agricultura familiar, revitalização de varejões e centrais de abastecimento, distribuição de cestas básicas e cupons de alimentação, entre outras.

Cupons e cestas básicas, no Brasil, são vistos como estratégias viciadas e assistencialistas. Foi por essa razão que Fernando Henrique descontinuou o Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos (Prodea), que trabalhava com a doação de cestas básicas, substituindo-o por projetos de renda mínima, como Bolsa-Escola, Auxílio-Gás e Bolsa-Alimentação. Segundo Wanda Engel, ex-secretária de Assistência Social e responsável pelo Projeto Alvorada, houve uma evolução: "Saímos da distribuição de comida, de boletos, para dar dinheiro diretamente à família".

Mas, mesmo optando pela doação de cestas e cupons, o Fome Zero não prega o fim do Renda Mínima, que deve ser expandido, agora na forma de Renda Cidadã, destinada a toda a população, como propôs o senador Eduardo Suplicy. "O Renda Mínima é para quem tem renda zero. O programa dos cupons do Fome Zero é outro", diz José Graziano. Os cupons funcionam como complemento de outras iniciativas, como o Bolsa-Escola, lembra o ministro. Além do mais, argumenta, projetos de renda mínima são em geral caros, pois incluem gastos administrativos e assistência social e psicológica aos beneficiários – para haver certeza do uso do dinheiro em necessidades básicas. No caso dos cupons ou alimentos, que chegarão às famílias como suplemento de renda, o acompanhamento é mais barato por ser menos intensivo.

O Fome Zero prevê que a distribuição de alimentos e os estabelecimentos credenciados a trocar os cupons sejam localizados de forma a facilitar o acesso das populações beneficiadas. Isso deverá estimular, diz o projeto, a economia local, gerando emprego nas fazendas, lojas e no sistema de transporte de alimentos. "Pretendemos dar alimentação pelo menos a 2 milhões de famílias no primeiro ano", afirma Graziano.

Problema multifacetado

Cupons e cestas básicas são apenas duas das medidas do Fome Zero. Os coordenadores técnicos do programa, José Graziano, Maya Takagi e Walter Belik, advertem que "a segurança alimentar de um país vai além da superação da pobreza e da fome". É necessário associar esse objetivo a estratégias de desenvolvimento econômico e social que garantam eqüidade e inclusão social, dizem eles.

Além de mobilizar o governo federal, o projeto pretende estimular administrações estaduais e municipais e a sociedade civil a se envolverem igualmente na luta contra a fome. E promete rever o modo como as decisões são tomadas para resolver um problema nacional. Segundo Graziano, o Consea, no período em que funcionou como prioridade política, deu resultado. Foi prejudicado quando suas atribuições se diluíram no programa Comunidade Solidária. A recriação do Consea visa "dar participação à sociedade civil organizada – precisamos dos Betinhos da vida", afirma ele.

Caberá ao órgão gerir as diversas ações emergenciais da secretaria, bem como congregar os setores socioeconômicos do governo, como o Ministério da Fazenda, para que os rumos da economia sejam compatíveis com as políticas sociais. O próprio Lula, ao apresentar o Fome Zero, alertou: usar apenas medidas emergenciais sem mexer na economia "significa desperdiçar recursos, iludir a sociedade e perpetuar o problema". Sem esquecer que "as políticas estruturais requerem anos e às vezes décadas para gerar frutos consistentes, enquanto a fome segue matando a cada dia".

E o dinheiro?

Combater a fome, todos concordam, não será uma tarefa fácil nem barata. A alteração nos rumos da economia levará tempo para refletir-se no dia-a-dia da população pobre. O desafio que se apresenta ao Ministério de Segurança Alimentar será arranjar fundos para aplicar em medidas urgentes, como a distribuição de cestas básicas e cupons de alimentos.

O Projeto Fome Zero prevê várias formas de financiamento, através do orçamento da União. Para 2003, já estão disponíveis R$ 1,8 bilhão. Mas outros recursos vêm sendo lembrados: o Fundo de Combate à Pobreza, as receitas do ICMS da cesta básica, obtidas com incentivos aos governos estaduais, e um imposto de 5% em restaurantes de luxo, com o objetivo claro de envolver a população de renda mais alta.

Segundo Wanda Engel, o Fundo de Combate à Pobreza tem recursos médios anuais de R$ 4 bilhões, mas eles estão divididos para atender à rede de proteção social, ao Bolsa-Alimentação, Bolsa-Escola, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, Agente Jovem e projetos de saneamento. O remanejamento dessa verba, evidentemente, não será simples. A boa notícia foi o anúncio de que o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) disponibilizarão recursos para o combate à fome.

Críticas

Além da preocupação com a busca de fundos, Graziano tem tido muito trabalho para defender o Fome Zero, pois as críticas, especialmente direcionadas às cestas básicas e aos cupons de alimentação, não são poucas. Zilda Arns, por exemplo, médica sanitarista e coordenadora da Pastoral da Criança, afirma que "dar o dinheiro é um avanço em relação ao bônus, pois implementa a cidadania e permite que alguém o use para comprar sementes e plantar para obter alimentos, se quiser". Sem dúvida, ela sabe do que está falando. Ligada à Igreja Católica, a Pastoral tem uma longa história de combate à miséria e desnutrição materno-infantil na maioria dos municípios brasileiros.

Graziano retruca que a distribuição de cupons e cestas é apenas uma das mais de 40 medidas contidas no Fome Zero. Uma delas, considerada fundamental, é o aumento do salário mínimo – ação recomendada até pela ONU. Lula, aliás, prometeu durante a campanha dobrar o poder de compra do mínimo.

Dom Mauro Morelli, nomeado Distinguished Nutrition Advocate no Comitê Permanente de Nutrição das Nações Unidas – uma espécie de promotor da nutrição –, também manifestou sua preocupação: "Sem planejamento atento às características e às necessidades regionais, sem descentralização das ações e sem a participação direta dos cidadãos na elaboração e no controle das políticas públicas, o Fome Zero não atingirá seu objetivo". O presidente Lula procura conter as críticas e aproximar adversários e defensores do projeto, lembrando que o programa não está fechado e tudo pode passar por aprimoramento.

Voltar a discutir um tema tão relevante para a população é sempre saudável para o país. Pode ser um passo, desta vez decisivo, no longo caminho rumo à erradicação da fome e da miséria.

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