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Quem é o responsável?

 


Andrea Tissenbaum / Foto:
Gabriel Cabral

Pessoas físicas e empresas assumem papéis que cabem ao Estado

Organizações não-governamentais (ONGs), responsabilidade social das empresas e papel do Estado, esses foram os temas tratados no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo no dia 9 de maio de 2002. A psicóloga e professora de história Andrea Tissenbaum, coordenadora de projetos da Central Globo de Comunicação, debateu com os conselheiros esse assunto, que vem atraindo a atenção de empresários de todo o país. A seguir, Problemas Brasileiros apresenta um resumo do encontro.

ANDREA TISSENBAUM – O comportamento empresarial socialmente responsável é um poderoso agente de mudanças e ocupa um lugar essencial nas organizações. Nenhuma grande empresa pode ignorar que tem responsabilidades com relação à comunidade em que produz, investe, vende, presta serviços e prospera.

Responsabilidade social, porém, não é filantropia, que existe no Brasil há muito tempo, com as Santas Casas, a Igreja, a maçonaria e diversas associações de serviços que prestam ações assistenciais. A filantropia gera uma relação de dependência entre esses grupos e os doadores, e dispensa a auto-sustentabilidade.

A responsabilidade social, diferentemente, busca com sua ação um impacto, uma mudança. Ela é muito mais do que um projeto social, é uma ação comunitária ou uma mobilização nacional. E se reflete tanto na área externa, através de suas iniciativas, como entre os próprios funcionários. A grande questão da responsabilidade social hoje é o compromisso. Sempre se atribuiu ao governo a solução dos problemas, com relação à educação, à saúde, ao meio ambiente, ao bem-estar. Mas agora pode-se falar em parcerias entre empresas e o setor público.

Esse compromisso social das empresas objetiva a mudança, através de um comportamento cidadão, manifestado por meio de projetos sociais, que em geral se desenvolvem através de voluntariado. A empresa busca a auto-sustentabilidade do projeto e a formação de uma consciência cidadã. Já a filantropia não tem a pretensão de formar cidadãos, nem de apresentar o que está sendo feito. No caso da responsabilidade social, é preciso mostrar o que está sendo realizado, porque só assim é que se pode multiplicar a ação. Daí ser importante o marketing social, que cria no indivíduo uma reflexão sobre a necessidade de participar. Na filantropia a ação é passiva.

Embora o voluntariado exista no Brasil há muitos anos, adquiriu a forma que tem hoje no início da década de 1990. Foi quando surgiu a Ação da Cidadania e o Natal Sem Fome, do Betinho, que este ano completa dez anos. Instituiu-se também nessa época o balanço social como o indicador de empresas que desenvolvem projetos e aplicam recursos tanto em iniciativas voltadas para os funcionários como para grupos externos. Criou-se o Instituto Ethos, uma referência para quem trabalha com responsabilidade social empresarial, surgiram a Fundação Abrinq e uma série de parceiros que atuam na promoção de integração entre cultura e questões sociais e ambientais.

Com relação a acionistas e investidores, uma gestão de responsabilidade social proporciona melhor acesso a novos empreendimentos. Ela cria uma imagem muito positiva. Quanto ao público interno, gera a capacidade de recrutar e manter talentos. As pessoas se identificam com uma marca que é positiva, que é socialmente responsável.

Já os consumidores identificam um valor social agregado ao produto, o que é muito bom. Isso valoriza a marca e fideliza o consumidor, que passa a querer participar e contribuir de alguma forma. Os fornecedores também se tornam parceiros de empresas socialmente responsáveis em projetos bem-sucedidos. Quando os programas são consistentes, encontram-se situações de colaboração entre vários agentes.

O Brasil é um país de muita desigualdade, concentração de renda acentuada, pobreza. Se a população e as empresas não participarem, vai aumentar cada vez mais o gap que existe entre o que temos e o que o Primeiro Mundo oferece. O brasileiro é extremamente solidário, mas precisa ser orientado para uma solidariedade participativa.

Internamente, a consciência dos funcionários sobre o estado de coisas, que vem sendo formada nos últimos dez anos, força também uma atuação mais participativa e mais concreta, que identifique oportunidades em que possam desenvolver-se. Temos vários exemplos: Natura, Boticário, Coca-Cola, Fundação Ford e muitas outras. São empresas com projetos consistentes, que fazem com que os funcionários participem.

A Rede Globo tem entre seus projetos sociais o Criança Esperança, já com 16 anos, que é uma campanha de arrecadação de fundos, pautada na necessidade de conscientizar a população sobre os problemas da infância e da adolescência. Hoje o projeto é uma referência internacional pelo que gera, pois os fundos, administrados pelo Unicef, sustentam inúmeras ONGs e instituições carentes, e tem por objetivo a auto-sustentabilidade dessas mesmas instituições e organizações. Um bom exemplo de um projeto que começou com o Criança Esperança e que hoje caminha sozinho é a Pastoral da Criança, da doutora Zilda Arns. Outro exemplo é o Afrolata, no Rio de Janeiro, que vem desenvolvendo a capacidade de se sustentar sozinho.

O projeto Amigos da Escola é uma ação de incentivo à participação comunitária através do trabalho voluntário nas escolas públicas. Ele estimula iniciativas complementares às ações pedagógicas.

O Globo Universidade é um canal de comunicação entre as universidades e a empresa, para troca de idéias, busca de novos talentos, acompanhamento de teses de mestrado e doutorado. O Ação Global é um projeto em parceria com o Sesi que promove a prestação de serviços.

Já o merchandising social da Globo é um produto da própria empresa. Ela ganhou um prêmio importante no ano passado, o BitC Awards, pela qualidade e audiência das novelas. Um bom exemplo foi a novela "Laços de Família", que tratou da leucemia. Após esse trabalho, a doação de medula óssea subiu significativamente.

O Globo Serviço são campanhas criadas e produzidas pela rede para informar e orientar a população.

 

Debate

MÁRIO AMATO – Na Springer Carrier, que faz equipamentos de ar condicionado, e que hoje tem capital norte-americano, desenvolvemos uma grande atuação social, oferecendo educação, inclusive cursos superiores para filhos de funcionários.
Se não fizermos algumas modificações nas leis trabalhistas, esse tipo de ação social se transformará em dificuldade. Infelizmente, sabemos de empresas de 40, 50 anos que estão falindo em grande quantidade. Você poderia me explicar essa confusão mental que estou atravessando, por querer fazer coisas que caberiam ao governo e depois ver pessoas que tiram proveito das causas sociais?

ANDREA – Existe hoje uma lei de voluntariado, justamente para proteger as empresas de possíveis ações trabalhistas. Há determinado número de horas que um voluntário pode fazer. Além desse limite, configura-se o vínculo. Nenhum funcionário de uma empresa pode ser obrigado a prestar esse tipo de trabalho.

NEY PRADO – O que cria a economia informal é a formalidade, o excesso de leis que impossibilitam principalmente pequenas e médias empresas de exercer sua atividade. Elas ficam assim: ou tentam cumprir a lei na sua totalidade ou a descumprem por inteiro. Como há uma tendência a reduzir o tamanho do Estado e como os problemas sociais são relevantes, alguém tem de preencher esse espaço, que vai ser ocupado não pelo altruísmo das pessoas, mas por conveniência. É a racionalidade que leva o empresário e os outros setores a fazer um trabalho social, na medida em que a omissão do Estado cria uma situação de instabilidade de que todos provavelmente seremos as maiores vítimas.

PEDRO KASSAB – Todos sabemos que a solidariedade, que afinal constitui o motor das iniciativas, teve um dos seus exemplos mais vibrantes e mais perenes na ação da rainha Leonor de Portugal, que criou as Santas Casas de Misericórdia. Elas se desenvolveram de tal modo que em determinadas regiões tornaram-se riquíssimas em recursos assistenciais, estritamente em função da solidariedade humana individual, doações de pessoas ou famílias. Depois da Revolução Industrial passou-se aos seguros sociais, iniciados com Otto von Bismarck na Alemanha, e à organização da assistência social e da benemerência. Nos últimos tempos, tudo isso aparentemente desapareceu. Paralelamente, os encargos sociais foram onerando empresas e depois também as famílias. É claro que sua palestra não se volta para uma atividade dessa natureza, mas lhe pergunto se a responsabilidade social, no fim de contas, consiste na substituição da antiga iniciativa de pessoas físicas e famílias pela de empresas.

ANDREA – Não penso que seja isso. Não acho que a empresa venha a substituir a pessoa física, até porque a primeira pode entrar com o projeto, mas sem a segunda ele não se desenvolve. O que penso é que talvez as iniciativas sociais criadas por empresas organizem o voluntariado de outra forma. Não percebo um recuo da comunidade no que diz respeito à participação. O que tenho visto é que talvez a comunidade se amolde a projetos de maior porte e se integre a eles como parceira voluntária, porque hoje há uma profusão de ONGs e de empresas com programas sociais.

JOSUÉ MUSSALÉM – No nordeste, a Fundação CDL, do Clube dos Diretores Lojistas, formado por 200 empresas comerciais, sustenta 740 crianças durante o ano inteiro. Elas recebem alimentação, educação básica e religiosa. Além disso, existem outras organizações, como a Ação Empresarial pela Cidadania, apesar de ser bastante raro esse tipo de iniciativa na região. Ainda há uma mentalidade muito aristocrática, principalmente em Pernambuco.

SAMUEL PFROMM NETTO – Permito-me propor aqui algo que talvez fuja um pouco à exposição. Responsabilidade social em última análise refere-se apenas a bens materiais ou deve necessariamente incluir bens espirituais no sentido mais amplo do termo? A atualidade do tema é a meu ver ao mesmo tempo animadora e desconcertante.
Por mais importante que seja o intuito de minorar os sofrimentos, as mazelas sociais e econômicas, preocupa ver o tom irrefletido, superficial, barato e até demagógico com que essa temática vem se traduzindo, quer em palavras, quer em ações. A caricatura de responsabilidade social cheira um pouco ao pão e ao circo dos romanos antigos, que perde de vista um espectro muito mais amplo do que aquele que prevalece entre nós como principais bandeiras do voluntariado. Existem, sem dúvida, excelentes exemplos de iniciativas generosas, de casos bem-sucedidos, mas há em contrapartida o tom negativo e contundente do seu oposto, a irresponsabilidade social dos que com uma das mãos distribuem migalhas e com a outra semeiam e estimulam a dissolvência, o oportunismo, a filosofia materialista e hedonista de vida, o envenenamento da criança e do jovem, a fragilização da família e dos valores maiores. Há tristes exemplos na mídia a esse respeito, mas creio que o pior de todos é essa fórmula de pornoviolência que nos últimos anos tomou de assalto parte significativa da mídia nacional e internacional.
Irresponsabilidade social, portanto, é um polvo cujos tentáculos múltiplos podem paradoxalmente se ocultar debaixo de um pretenso senso de responsabilidade social. O que pode ser feito, se é que algo pode ser feito, em relação a esse desvirtuamento de um belo ideal muito antigo, que corre o risco de passar a seu oposto, seu contrário?

ANDREA – Concordo com o que foi dito, acho que o setor corre esse risco porque mexe com necessidades e carências. Penso que é responsabilidade nossa, de pessoas que trabalham com projetos consistentes e coerentes, esvaziar isso não através de denúncias, mas de competência e de demonstração de que esse trabalho pode ser muito bem feito.

JANICE THEODORO – Tenho a sensação de que estamos vivendo um momento de confusão de papéis.
A responsabilidade é da sociedade e, sendo da sociedade, é do Estado. Só o Estado terá mecanismos de controle social para dar conta do desafio que está sendo criado. Você disse que as empresas irresponsáveis não terão como ficar de pé. Posso citar dezenas de faculdades, por exemplo, que funcionam no fim de semana para ter um custo inferior ao daquelas que têm aulas de segunda a sábado, exatamente porque são socialmente irresponsáveis. Existem outras instituições que dizem que preservam o meio ambiente para fazer marketing, e com isso conseguem certos privilégios, mas na verdade não trabalham para o bem da comunidade.
Para você levar esse projeto à frente, é necessário ter mecanismos de controle e de sanção social. E qual é o único instrumento que foi criado até agora na face da Terra? Infeliz ou felizmente, não sei, é o Estado. Como é que vamos resolver isso?

Acredito que é de importância extraordinária a discussão que você colocou hoje, sobre a relação que deve ser estabelecida entre empresas, ONGs e o Estado, e se vale a pena a gente abrir mão dos mecanismos de controle estatais.

ANDREA – Não acho que seja papel nem do segundo nem do terceiro setor substituir o primeiro. O trabalho é em parceria. Não se pode desenvolver uma ação social sem consultar o Estado, não se pode criar um projeto em educação sem consultar o MEC. Caso contrário vai se construir, aí, sim, um projeto social irresponsável, porque não é papel dele entrar numa escola ou num hospital e determinar regras, que já existem e são claras. E não é papel de uma ONG. Mas isso acontece e é lamentável, porque atrapalha o trabalho.

REGINA HELENA DE PAIVA RAMOS – Com relação ao voluntariado, é imprescindível que continue e se fortifique, até porque alguns voluntários são mais inteligentes e mais preparados do que muita gente que tem postos de comando hoje. As sociedades de amigos, pelo menos na região em que atuamos, no litoral norte, têm levado a reboque as autoridades estaduais e municipais. Em Juqueí, por exemplo, há 16 anos começamos um trabalho para a instalação da rede de esgoto. Pedimos orientação à Cetesb e fizemos um projeto básico de saneamento para nosso bairro, às custas dos moradores. Apresentamos o documento a todos os governadores que assumiram nesse período. Somente há quatro anos Mário Covas atendeu ao pedido e estamos inaugurando este mês um projeto de 16 anos. Não vejo mais, portanto, este país andando sem o voluntariado, até porque é uma forma de exercer a cidadania.

NEY PRADO – Certa vez, há cinco ou seis anos, fui hóspede de Roberto Marinho em Angra dos Reis e tive a oportunidade de fazer algumas considerações a respeito da má qualidade das novelas, uma delas em especial. Ele me disse: "De todas as pessoas com quem falo a reclamação é sempre essa. Eu só queria colocar o seguinte à sua consideração: mandei preparar uma novela com base no livro de Eça de Queirós O Primo Basílio, e ela alcançou 18% de audiência. A novela que o senhor está criticando tinha 61%. Como é que uma empresa privada que precisa sobreviver pode divulgar somente assuntos que são de interesses mais altos?"

CECÍLIA PRADA – Gostaria de lembrar que essas novelas baseadas em Eça de Queirós, como "Os Maias", passam sempre num horário em que o povão não pode vê-las. Ao passo que a novela que deseduca o povo é exibida justamente no horário nobre. Além disso, a colocação de que se deve dar ao povo o que ele quer é elitista, errônea e fascista.

JOÃO TOMÁS DO AMARAL – Você apresentou seis projetos, começando com o Criança Esperança, Amigos da Escola e o merchandising social das novelas. São ações que estão de uma forma ou outra dentro da grade de programação da Rede Globo. Também nessa grade estão os reality shows, que exploram um pouco a falta de emprego e influenciam nossas crianças.

ANDREA – Se nosso produto é entretenimento, é natural que se coloquem programações que influem no comportamento das pessoas. É inevitável mostrar um produto que não agrade a todos. Por essa razão, as organizações Globo têm o Canal Futura, que é educativo. Se você assistir a esse canal de cabo a rabo, não fará essa crítica, porque ele tem como preocupação a promoção de idéias e hoje está presente em inúmeras escolas da rede pública do ensino fundamental e médio do país inteiro.

TOMÁS – O Canal Futura está numa rede fechada.

ANDREA – Mas vai se tornar um canal aberto.

JOSEF BARAT – Temos de um lado o Estado e de outro a sociedade, representada por empresas e organizações não-governamentais. A sociedade tem baixo grau de cidadania e de consciência, mas um grande espírito de solidariedade. O Estado poderoso se degradou, decaiu e não cumpre as funções para as quais existe a expectativa da sociedade. Com a degradação do Estado, a sociedade se fortaleceu, por ações de ONGs que de certa forma substituíram também a falta de consciência dos partidos políticos. E houve um fortalecimento das empresas também, que adquiriram a consciência de que têm uma dívida a ser resgatada com a sociedade, o que é muito positivo.
Qual é o papel que a sociedade, por meio das empresas e das ONGs, vai exercer nessa mudança? O Estado é imprescindível? Essa é a questão que está em discussão hoje, para entender melhor o que está acontecendo nas relações entre Estado, empresas, ONGs e sociedade.