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Origens do preconceito
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As façanhas de Salvador de Sá, incansável caçador de escravos
HERBERT CARVALHO(colaborou Alessandra Gaspar Costa)
Há tesouros enterrados na história do Brasil. É difícil resgatá-los, porque foram sepultados por séculos de dissimulação e mentiras. A historiografia oficial tem sido um biombo que encobre o passado, para que não se revelem as origens de iniqüidades atuais, como o racismo e a perpetuação do abismo social, que separa a classe dominante de uma massa de famintos, mantidos na ignorância (ou seja, a senzala e a casa-grande amplificadas no tempo e no espaço).
Todos sabem que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, declarando extinta (formalmente) a escravidão no Brasil. Mas quem projetou, introduziu e manteve o regime escravista de negros africanos, nas fazendas e engenhos de nosso primeiro ciclo de produção, a monocultura agroindustrial exportadora de açúcar?
O Brasil possuiu e possui, dos primórdios de seu passado colonial aos dias que correm, uma elite branca e racista, que apenas não desfila pelas ruas com cabeças raspadas como suas congêneres norte-americana e européia porque, a seu modo, é mais inteligente e sofisticada. E obtém resultados melhores com a hipocrisia e a dissimulação, do que com a ostentação de suas idéias e objetivos. Seu projeto de dominação ideológica e conservação do poder político e econômico foi meticulosamente elaborado e posto em prática ao longo dos cinco séculos de nossa história.
Só recentemente e por esforços de brasilianistas como o inglês Charles Boxer, autor de vasta obra sobre o império marítimo e colonial português começa a se dissipar a névoa que pairou sobre os primeiros séculos de nossa existência, nos quais se formou a nacionalidade brasileira tal como ela é.
Quem olhar nesse espelho vai encontrar, no século 17, a figura truculenta de Salvador Correia de Sá e Benevides (1602-86), que juntamente com o padre Antônio Vieira (1608-97) constituiu a dupla dos maiores "estadistas" do Brasil colonial. Estadistas com o desconto da época, em que as nações e o Estado moderno ainda estavam se formando e a diplomacia se fazia por meio de embaixadores nomeados para cada situação. No caso de Portugal, sua política externa sobre as colônias era determinada pelo rei, com audiência prévia do Conselho Ultramarino, do qual fizeram parte tanto Salvador de Sá como o padre Vieira.
Salvador de Sá, que pode ser considerado a "consciência branca", tanto quanto Zumbi dos Palmares encarna a consciência negra, foi autor de uma proeza militar decisiva, na disputa pelo Brasil entre holandeses e portugueses.
Ele partiu do Rio de Janeiro em maio de 1648, com uma frota de 15 navios e perto de 2 mil homens a bordo, e reconquistou Luanda (atual capital de Angola) das mãos dos holandeses em agosto do mesmo ano. Privados da principal fonte fornecedora de escravos, que haviam tomado ao mesmo tempo da invasão do nordeste brasileiro, os holandeses perceberam que a sorte de sua Companhia das Índias Ocidentais, no Brasil, estava selada. A importância estratégica desse feito militar, que devolveu aos portugueses o controle das rotas do Atlântico Sul, pode ser avaliada por esta síntese feita pelo padre Vieira em carta a el-rei: "Sem Angola não há Brasil".
A família Sá
A expulsão definitiva dos holandeses do nordeste, que ocorreu em 1654, veio coroar a encarniçada defesa do Brasil pelo clã dos Sá, cuja saga começou com Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil (de 1558 a 1572), fidalgo da Casa Real e desembargador da Casa de Suplicação de Lisboa. Portugal representava, na época, ao abrir a fronteira global, o maior poder agressor mundial. Mem de Sá, por exemplo, tinha um ódio incontido contra o gentio e chegou a mandar colocar à boca de bombardas, para serem feitos em pedaços, índios que mataram cristãos, prática que os ingleses copiaram e aplicaram depois na Índia.
O sobrinho de Mem de Sá, Estácio de Sá, fundador da cidade do Rio de Janeiro, morreu em 1567, em plena batalha para expulsar da baía de Guanabara os franceses comandados por Villegaignon.
Aqui entra em cena o nome Salvador Correia de Sá, que designa duas pessoas diferentes no tempo e no espaço, embora ligadas por laço de parentesco: Salvador Correia de Sá, o primeiro ou mais antigo, conhecido também como o Velho, foi avô do segundo, personagem central desta matéria. Aliás, muitos livros de história fazem confusão entre os dois.
O primeiro Salvador era primo de Estácio e foi seu sucessor, inaugurando a dinastia dos Sá no governo da capitania do Rio de Janeiro, que somou 48 anos no poder. Ele governou o Rio de Janeiro por duas vezes, de 1568 a 1571 e de 1577 a 1598. Em 1583 deu início à introdução de escravos africanos em território fluminense, por meio de um contrato com o traficante João Gutierres Valério. Seu filho, Martim Correia de Sá, pai do outro Salvador, exerceu o mesmo cargo também por duas vezes, de 1602 a 1608 e de 1623 a 1632.
Filho de Martim, neto e homônimo do primeiro Salvador, conforme já assinalado, nosso personagem, também chamado de o Moço, nasceu no Rio de Janeiro, de mãe espanhola, de quem adotou o sobrenome Benevides, para diferenciar-se do avô. Assim, Salvador Correia de Sá e Benevides superou seus ascendentes, governando o Rio de Janeiro em três períodos: 1637-1643; em 1648 e de 1660 a 1662.
Sua vida parece um filme de aventuras. Aos 18 anos, caçava índios no sertão. Em 1625 teve participação ativa na retomada da cidade de Salvador das mãos dos holandeses. Foi nomeado almirante dos mares do sul em 1634. Sufocou a revolta contra a oligarquia dos Sá, chefiada por Jerônimo Barbalho, a quem mandou enforcar e depois decapitar, para expor sua cabeça no pelourinho. Ao deixar o governo do Rio, voltou para Lisboa, onde foi processado e condenado a dez anos de degredo na África. Graças ao dinheiro que tinha amealhado nos anos de poder absoluto no Rio de Janeiro, conseguiu a reabilitação, chegando ainda a ocupar um cargo no Conselho Ultramarino de Lisboa.
Dono de cartório
Em 1637, já no primeiro ano de governo, ele obtém um dos mais lucrativos "cartórios" da história brasileira. Graças a concessão perpétua da Câmara de Vereadores (única instância parlamentar no Brasil colonial), ele garante para si e seus herdeiros o monopólio da pesagem e da armazenagem do açúcar exportado no Rio. Só em 1850 o governo imperial consegue rescindir, mediante gorda indenização, os direitos dos Sá sobre os embarques de mercadorias no porto fluminense.
Vastas propriedades na cidade e na capitania do Rio de Janeiro pertenciam aos Sá. É seu nome que aparece ao pé das antigas certidões de partilhas de terras de Campos e da Barra da Tijuca, cujos processos de titularidade se arrastam até hoje nos tribunais fluminenses.
Acumulando o governo das capitanias do sul, Salvador torna-se protetor da Companhia de Jesus, que estava em permanente atrito com os bandeirantes chefiados por Raposo Tavares. No parecer sobre a situação de São Paulo, encomendado pela Coroa em 1647, Salvador historia os excessos dos paulistas. Para conservar os índios cativos, eles haviam expulsado os jesuítas, "obrando em tudo como se foram República livre e independente" do governo-geral. Malgrado a gravidade dos delitos, Salvador aconselhava a concessão de uma anistia.
Não que ele se importasse com os índios, mas é que precisava destes e dos bandeirantes para guerrear os holandeses. Lisboa cedeu perante a "razão de Estado" e anistiou os paulistas, em "crimes cometidos nas entradas dos sertões". Com o mesmo espírito pragmático, Salvador Correia de Sá e Benevides sugeriria, em 1644, o incêndio dos canaviais e engenhos do Brasil holandês, por grupos que seriam mandados da Bahia.
Traficantes negreiros
Em agosto de 1641, o governador português de Angola, Pedro César de Menezes, abandonava Luanda sob o fogo da frota invasora da Companhia das Índias Ocidentais. Vale lembrar que os holandeses foram os pioneiros na criação desse tipo de sociedade por ações, que teve sucessores em outros impérios coloniais, como Inglaterra e França, e também congêneres orientais (a Companhia das Índias Orientais, dos próprios holandeses, dominou a Indonésia por mais de dois séculos).
Ao ocupar o nordeste brasileiro, eles relutaram, a princípio, em manter o tráfico de escravos, vetado pelos princípios rígidos do protestantismo calvinista. Mas depois renderam-se à evidência de que precisavam, para produzir e exportar açúcar, de mais 4 mil "peças" por ano. Mesmo antes de tomar pelas armas as feitorias do litoral africano, eles já compravam escravos negros de traficantes portugueses, cuja ganância eliminava qualquer pudor em negociar com o inimigo. Em seguida o tráfico tornou-se monopólio da Companhia das Índias Ocidentais e uma de suas maiores fontes de renda.
Os batavos, contudo, não tinham o know-how dos traficantes portugueses, como confirma este testemunho do holandês P. Morthamer: "Os portugueses são muito melhores negociantes de escravos do que nós. Levam numa pequena caravela, com facilidade, 500 escravos, enquanto nossos grandes navios levam apenas 300 por vez. Acostumam já os negros na África à vida de escravos, para que não sintam, no Novo Mundo, o peso do cativeiro. Se lhes seguíssemos o exemplo, conseguiríamos ter menos perdas em viagens e alcançaríamos melhores preços no Brasil".
O governo-geral do Brasil temia que a perda de Angola implicasse "desfabricar" os engenhos e a economia da América portuguesa. O tráfico perde muito de sua força e tem muitos navios capturados pelos holandeses. O comércio negreiro sente a falta de "peças". Para se ter uma idéia do que era Luanda como praça fornecedora, já em 1575 lá viviam 300 portugueses, que embarcavam anualmente 12 mil escravos.
Tropas, navios e munição para o socorro da África central não poderiam sair de Portugal, país sempre espremido no paradoxo de ser pequeno e constantemente ameaçado na Europa pela Espanha (que anexou Portugal entre 1580 e 1640), Holanda, Inglaterra e França, e ao mesmo tempo ser um gigante no ultramar, onde suas possessões se estendiam do Brasil até Macau, na China, passando por Goa, na Índia, e por Málaca, na atual Malásia.
Por isso, cabia ao Rio de Janeiro e às capitanias adjacentes principais interessadas no restabelecimento do tráfico negreiro a tarefa de fornecer gente e petrechos, "pois todo o Brasil necessita escravos para seu remédio", segundo a fórmula do padre Vieira: "Porque sem Angola não se pode sustentar o Brasil, e menos Portugal sem aquele Estado".
Salvador de Sá só ele e mais ninguém detinha recursos no Rio de Janeiro para bancar, organizar e levar a expedição avante. Só ele, seus parentes e sua gente podiam ali reunir a maior parte da ajuda, mantimentos, homens, armas e navios da força-tarefa. A Corte já havia reconhecido formalmente o fato, dando-lhe, a um só tempo, a dupla governança do Rio e de Angola.
Depois de propor a guerra dissimulada, Salvador aponta duas opções. A primeira, moderada, é negociar com os holandeses para fazê-los largar a América e a África portuguesa. Mesmo que isso custasse muito dinheiro. No futuro, as rendas do Brasil e Angola cobririam os custos da indenização à Companhia das Índias Ocidentais.
A outra opção, secreta, lhe daria poderes para tirar os holandeses pela força. Quatro anos mais tarde, a proposta teve curso. Sob o pretexto de levar ajuda aos moradores sitiados pelos jagas da rainha Jinga (tribo de guerreiros temidos pelos portugueses como o paradigma da "barbárie" africana), e com respaldo dos jesuítas fluminenses, Salvador desembarca em Luanda e expulsa os flamengos.
Fronteiras angolanas
As ações de Salvador de Sá em Angola foram registradas por Luiz Felipe de Alencastro, em seu livro O Trato dos Viventes: "Apelidado pelos ambundos [ao lado dos quimbundos, uma das etnias predominantes em Angola] vassalizados de Nfumu-Etú-Lálânâ Nosso Senhor Salvador , o governador sacode Angola durante quatro anos (1648-52)". Suas tropas desbarataram muitas aldeias, matando gente e fazendo mais de 7 mil escravos.
"Comissionado por Salvador de Sá, Francisco de Souto Maior, que combatia desde 1633 na guerra brasílica e havia sido nomeado governador provisório do Rio (1644), zarpa da Guanabara para assumir o governo de Angola, com cinco navios cedidos por negreiros fluminenses, 300 soldados e algumas dezenas de índios."
O autor descreve os avanços dos soldados como uma conquista territorial: "Os capitães de Salvador de Sá avassalam o sertão até um raio de 150 quilômetros. Ali são cravadas as balizas marcando as fronteiras orientais lusitanas na África central até meados do século 19. Parte dos gastos dessas entradas será coberta pelos novos direitos criados pelo governador, que se traduzem num aumento de 75% das taxas de exportações de escravos".
Aqui é possível desfazer outro equívoco, ou simplismo, histórico: o de que os escravos africanos eram produto de guerras tribais, em que os vencedores aprisionavam e vendiam os vencidos em feitorias na costa. Esta é apenas parte da verdade. O tráfico jamais tomaria as proporções a que chegou se os brancos, holandeses, portugueses e brasílicos, e entre estes especialmente Salvador de Sá, não tivessem criado uma estrutura militar de choque, conquista e apoio aos sobas (chefes tribais) locais.
Dessa forma, os brancos mancharam suas mãos tanto no mar, com os tumbeiros (assim também chamados os negreiros, pelos mais mortos que vivos que transportavam), quanto na terra africana, onde se embrenharam sertão adentro até o Congo, chegando quase a criar uma rota terrestre de tráfico entre Angola e Moçambique, e também na terra brasileira, tendo lá como cá os açoites, as marcas de ferro em brasa e as grilhetas abençoados pelos jesuítas, que garantiam estar salvando para Cristo almas antes perdidas no paganismo.
Alencastro relata também que, ao retornar ao Brasil em 1652, com um importante butim de escravos arrancados de Angola, Salvador de Sá beneficiou os cinco engenhos e as 40 fazendas de gado que possuía no recôncavo da Guanabara. Retomou também a administração de seus negócios e das suas terras de Campos, de onde conseguira expulsar os guerreiros goitacás, devastados pela varíola.
Com a reconquista de Angola pela expedição luso-fluminense de Salvador de Sá, a economia brasileira se apropria por dois séculos inteiros da maior reserva africana de mão-de-obra escrava.
No rastro da invasão militar, no farnel dos milicianos brasílicos, desembarca uma mercadoria de escambo que conquista as feiras negreiras da África central: a cachaça. Na virada do século 17, outro produto brasileiro, o tabaco, dará aos traficantes da Bahia o domínio de boa parte do comércio da Costa da Mina.
O valor do escravo
Além de organizar o trabalho, a escravidão era a forma básica de poupança e investimento. Numa sociedade em que, mesmo com o ouro, circulava pouco dinheiro, o escravo era um dos raros bens que podiam ser vendidos com facilidade, no caso de uma crise imprevista. Era também a principal garantia dos empréstimos: um produtor rural tinha muitas dificuldades para dar suas terras como fiança, mas nenhuma em penhorar seus escravos.
Na lavoura e indústria do açúcar, André João Antonil, nome português adotado pelo jesuíta de origem italiana João Antônio Andreoni (1650-1716), resumiu o papel dos negros escravizados, em seu livro Cultura e Opulência do Brasil, obra fundamental para o estudo do Brasil Colônia: "Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho. Sem eles, não é possível fazer, conservar ou aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. À menor falta, eram castigados pelo feitor com açoite de couro cru, chamado de bacalhau". Esse livro foi publicado pela primeira vez em Lisboa em 1711, mas proibido logo em seguida.
O engenho açucareiro, primeira forma de empresa comercial exportadora, foi, a um tempo, o instrumento de viabilização do empreendimento colonial português e a matriz do modo de ser dos brasileiros. Em 1600 havia 200 grandes engenhos com 30 mil escravos. A produção anual de açúcar superava 1 milhão de libras esterlinas. O sistema inglês de plantations foi criado a partir da experiência portuguesa nas ilhas de Cabo Verde e São Tomé. Eram produzidas de 7 mil a 8 mil arrobas de açúcar por engenho. Os escravos trabalhavam com enxada e foice no eito do canavial, no transporte da cana e da lenha para o engenho, moagem e purga do açúcar. Dirigiam a produção um mestre-de-açúcar, um banqueiro e o soto-banqueiro, um purgador, um caixeiro no engenho e outro na cidade, feitores nos partidos e roças, um feitor-mor de engenhos, todos assalariados.
Mesmo antes de ser vendido, o escravo que sobrevivia à viagem do navio negreiro era recebido no Brasil com uma surra de "boas-vindas". Explica Luiz Felipe de Alencastro: "Método de terror luso-brasílico, e mais tarde autenticamente nacional, brasileiro, o choque do bárbaro arbítrio do senhor visando demonstrar ao recém-chegado seu novo estatuto subumano voltou a ser praticado durante a ditadura de 1964-85. Instruídos pela longa experiência escravocrata, os torturadores do DOI-Codi e da Operação Bandeirantes também faziam uso repentino da surra, à entrada das delegacias e das casernas, para desumanizar e aterrorizar os suspeitos de subversão".
De acordo com o antropólogo Darcy Ribeiro, em seu livro O Povo Brasileiro, as atuais classes dominantes brasileiras, constituídas de filhos e netos dos antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro, "a mesma atitude de desprezo vil. Para seus pais, o negro escravo, o forro, bem como o mulato, eram mera força energética, como um saco de carvão, que desgastado era facilmente substituído por outro que se comprava. Para seus descendentes, o negro livre, o mulato e o branco pobre são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidade inatas e inelutáveis".
Esse preconceito tem origem no período colonial. Num relatório sobre a situação em Angola, datado de 1665 e encomendado pela Coroa, Salvador de Sá é explícito: "No Estado do Brasil há muita quantidade de mulatos forros, criminosos, revoltosos e de mau viver que em Angola poderão servir na guarnição dos presídios. Pareceria conveniente mandar S.M. encomendar aos governadores de Pernambuco e do Rio de Janeiro que façam prender daqueles mulatos o que lhes for possível e remeter a Angola nas embarcações que vão àqueles portos".
Herança oligárquica
A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nada fez pelo escravo negro que a construiu. Negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para cultivar, de escolas em que pudesse educar os filhos, e de qualquer ordem de assistência.
A imigração originou as "colônias" étnicas, que reforçaram o elemento branco. Não modificaram a síntese da personalidade brasileira, mas fortificaram as elites dominantes, no seu europeísmo e ocidentalismo e na rejeição às contribuições de outras etnias e culturas. Surgiu o "complexo do colono": espírito discriminatório, às vezes racista, anti-semita, ultraconservador, defensor do status quo ou de um gradualismo suave e moroso nas reformas. Sentimento de superioridade e de incompreensão do Brasil mestiço, mostrando que houve sempre, entre nós, duas grandes correntes de opinião. A hegemônica nasceu da sociedade colonial, é tradicionalista e conservadora, quer manter o status quo, deforma o processo histórico e ludibria o povo.
Salvador Correia de Sá e Benevides legou aos dias que correm o que existe de mais empedernido e arraigado nas oligarquias brasileiras: a certeza de poder usar o ser humano com impunidade, como quiser e até onde puder, porque esse direito lhes foi assegurado desde sempre, seja por Deus, seja por el-rei, seja pela boca do pau-de-fogo, usando o pelourinho ontem, o pau-de-arara hoje, matando e torturando índios, negros, mulatos, cafuzos ou, simplesmente, pobres.
O maior galeão do mundo Salvador Correia de Sá e Benevides demonstrou sua capacidade de liderança ao construir, na ilha do Governador, o maior galeão do mundo na época, o "Padre Eterno", com 53 metros de comprimento e 2 mil toneladas, preparado para receber 144 canhões e com um mastro feito de um único tronco, com quase 3 metros de circunferência na base. As madeiras ele fez vir da ilha Grande, distante quase cem quilômetros, e trouxe técnicos europeus para orientar seus carpinteiros índios. Em sua primeira viagem, em 1665, o navio assombrou tanto governantes portugueses como espiões estrangeiros. Luiz Felipe de Alencastro o chama de "Titanic da Revolução Comercial", porque acabou também vencido pelo oceano, afundando no Índico alguns anos depois. "Salvador de Sá tinha a pretensão de enfrentar corsários e tempestades, sem ser pautado pelas frotas régias: os mares se convertiam num território só, num único mercado dominado pela onipotência do grande galeão fluminense."
Defensor de interesses luso-brasileiros O padre Antônio Vieira nasceu em Lisboa em 1608 e morreu em Salvador, em 1697. Jesuíta, celebrizou-se por seus sermões, nos quais defendia os interesses do Brasil contra a ganância da metrópole, que, segundo ele, "não se interessava pelo bem, mas pelos bens do Brasil". Foi o artífice civil, religioso e diplomático da reconquista do nordeste e de Angola, ao lado de Salvador Correia de Sá e Benevides, chefe militar no ataque a Luanda. Obteve apoio de dom João IV para fundar, em 1649, a Companhia Geral do Comércio do Brasil, empresa mercantil monopolista, financiada e comandada por cristãos-novos, que Vieira defendeu das ameaças permanentes da Inquisição. Realizou viagens diplomáticas a Haia, Londres e Paris, tentando resgatar o nordeste dos holandeses mediante um acordo financeiro. Era contra a escravização dos índios mas abençoava a dos negros, pois achava que cada um destes convertido ao cristianismo era mais uma alma ganha para o Paraíso.