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Papel decisivo
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Há 50 anos nascia o BNDES, para financiar a modernização do país
OSWALDO RIBASEm 1952, o Brasil vivia a plena efervescência política do segundo mandato presidencial de Getúlio Vargas, reconduzido que fora democraticamente ao Palácio do Catete pelo voto popular. O centro do país era o Rio de Janeiro e, por indústria nacional, os brasileiros dessa época conheciam, no máximo, as grandes fábricas do setor têxtil ou alimentício, mais concentradas em São Paulo. A Petrobras seria criada só no ano seguinte, e a implantação da indústria automobilística ainda era uma visão futurista: a frota de veículos em circulação, menos de 100 mil, era fabricada principalmente em Detroit. A televisão, recém-inaugurada, estava restrita à aristocracia de algumas residências no eixo Rio-São Paulo, e a programação limitava-se a três horas diárias num único canal, a TV Tupi. O rádio era o principal veículo da comunicação de massa e consagrava ídolos populares como Francisco Alves, o Rei da Voz. Segundo o censo de 1950, éramos 52 milhões de brasileiros, dos quais apenas 36% viviam nas cidades. O Brasil real estava no campo, e a economia nacional era essencialmente agrícola.
Foi num país assim que há exatos 50 anos tomou corpo a idéia de se criar um banco cuja tarefa principal seria financiar a grande transformação brasileira rumo à modernidade industrial. Em 20 de junho de 1952, num decreto do então presidente Vargas, nascia o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, o BNDE, que só 30 anos depois iria acrescentar o "S", de Social, à sigla. Com o Brasil de 1952 inserido ainda num mundo marcado pelo pós-guerra, em que a Europa, longe do nazismo, mas dividida agora entre os blocos comunista e capitalista, se reconstruía, o BNDES daquela época surgiu como uma versão do Plano Marshall (programa criado e financiado pelos Estados Unidos para reerguer a Europa Ocidental após a 2ª Guerra Mundial). Só que, em vez de capital norte-americano, o Plano Marshall à brasileira, ou seja, o BNDES, limitou-se a usufruir do know-how dos EUA em bancos de desenvolvimento na chamada Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, uma entidade que diagnosticava, naquele momento histórico, os gargalos do progresso do país.
O capital inicial para o BNDES acabou saindo de uma idéia casuística: uma sobretaxa no Imposto de Renda, que seria integralmente canalizada para financiar as grandes obras que o Brasil precisava para a economia dar seu salto qualitativo. De uma base agrícola e arcaica, o país sonhava em transformar sua economia num novo modelo moderno e industrial que, um dia, poderia servir de paradigma para todas as nações em desenvolvimento do mundo.
"Sem o BNDES no Brasil dos últimos 50 anos, certamente estaríamos hoje num nível de amadurecimento industrial muito inferior ao que estamos agora acostumados a usufruir", declara Paulo Sérgio Moreira da Fonseca, superintendente de planejamento do BNDES, um profissional que viveu, como funcionário de carreira, quase metade da cinqüentenária trajetória do banco e, nesse período, tornou-se um dos maiores especialistas em assuntos corporativos da instituição financeira, que mantém até hoje sua matriz no Rio de Janeiro, na Avenida República do Chile.
Com base no relatório interno "BNDES, um Agente de Mudanças", Moreira da Fonseca conta que, a partir dos diagnósticos do governo federal e da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, os dois principais entraves ao desenvolvimento econômico brasileiro foram identificados como a escassez de energia e a inadequação da malha ferroviária então existente. "Até 1959, a quase totalidade do orçamento do BNDES foi aplicada nesses dois setores, fundamentais para o processo de industrialização", destaca o porta-voz do banco.
Foi nesse período, quando Getúlio Vargas já havia chocado o país com seu suicídio e Juscelino Kubitschek, como seu sucessor legitimamente eleito, se aventurava na construção visionária de Brasília, que o BNDES participou intensamente na redação do conteúdo técnico do Plano de Metas do governo, que, em fins dos anos 50, passou a dar apoio estratégico à expansão da produção de aço no Brasil, na época concentrada basicamente na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).
Entre 1957 e 1973, os investimentos nessa área se deram paralelamente aos destinados à energia elétrica. Cerca de metade de todos os recursos do banco foi canalizada para tornar o Brasil auto-suficiente em aço e, depois, exportador de produtos siderúrgicos. "Essa atuação foi fundamental para garantir o crescimento da indústria automobilística no país", acrescenta o especialista do banco. Nessa época, e por conta das ações do BNDES na expansão dos setores energético, ferroviário e siderúrgico, o governo decidiu criar três grandes estatais que consolidariam a infra-estrutura nacional na segunda metade do século: Eletrobrás, Rede Ferroviária Federal e Siderbrás.
Milagre brasileiro
Quando o Brasil atravessava o momento talvez mais dramático da vida política nacional, com a tomada do poder pelos militares por meio de um golpe de Estado, o BNDES abria um novo front de atuação, de apoio aos investimentos no setor privado. Nessa fase, começa o período em que, além de financiar o estabelecimento de novas indústrias, o banco também passa a promover o desenvolvimento tecnológico, o financiamento para a compra de máquinas e equipamentos de fabricação nacional e, depois, o segmento das pequenas e médias empresas.
Essa nova orientação passa a ser adotada ao mesmo tempo que o governo nacionalista, nascido nas forças armadas, implanta uma política mais agressiva de substituição de importações, um mecanismo destinado a incentivar a empresa nacional, por meio de restrições à entrada de produtos estrangeiros no país. O programa subsidiou vários setores, durante os anos 70, como a indústria da informática, e coincidiu com a era do chamado "milagre brasileiro", em que a economia, antes dos choques do petróleo (provocados em escala mundial pelos conflitos no Oriente Médio), chegou a apresentar índices de crescimento de até dois dígitos. Essa época, de fechamento econômico e de fortíssimos ingredientes ideológicos, acabou gerando os elementos para duas décadas depois, no início dos anos 90, lançar o Brasil no ambicioso projeto de sua inserção na economia globalizada, com planos de completa liberalização comercial e atuação das forças do livre mercado. "O banco soube antecipar", admite Moreira da Fonseca, "o esgotamento do modelo substitutivo de importações e vislumbrou que havia chegado a hora de o país adotar uma nova política industrial, voltada à competitividade interna e externa."
A criação e o fortalecimento da indústria de base no Brasil, ao longo dos anos 70, são, em parte, resultado direto dos estudos, pesquisas e políticas do BNDES, que deu aos empresários nacionais a oportunidade de suprir as deficiências existentes no processo de consolidação da infra-estrutura industrial do país. Essa disposição do banco desencadeou diversos e importantes projetos privados em segmentos como papel e celulose, química e petroquímica, mineração e produtos siderúrgicos. Nesse período, segundo levantamento feito pela instituição, "nenhum empreendimento de vulto com capital privado nacional foi desenvolvido sem o apoio oficial do BNDES".
"O banco ajudou a promover o desenvolvimento oferecendo crédito relativamente barato ao setor privado", afirma o economista, ex-ministro do Trabalho e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Edward Amadeo. Hoje atuando como consultor, ele esclarece que o grande trunfo do BNDES é ter o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) como uma de suas principais fontes de recursos. "Os empréstimos do banco acabam sendo subsidiados, já que o FAT é remunerado abaixo da taxa de mercado", acrescenta. Em sua opinião, essa ação do BNDES se justificou no passado e continuará sendo justificável enquanto o país não contar com um mercado de capitais desenvolvido e taxas básicas de juros mais baixas.
Para conseguir enfrentar as novas exigências do projeto nacional de industrialização, o BNDES também criou várias subsidiárias, como a Finame (Agência Especial de Financiamento Industrial) e o BNDES Participações S.A., cuja atuação mais dirigida pôde dinamizar a utilização do capital privado, nacional e internacional, na instalação do parque industrial brasileiro.
No início dos anos 80, quando, finalmente, havia condições de infra-estrutura para que deslanchasse o crescimento econômico, o país ingressa num período recessivo. Esgota-se o modelo de substituição de importações como fonte dinâmica da economia, assim como a capacidade de endividamento do Estado. Dentro desse novo contexto, o BNDES introduz a prática do planejamento estratégico, com a criação de cenários prospectivos. Essa configuração leva o banco a uma guinada histórica. "Fica clara a necessidade de uma reorientação da política econômica que se voltasse para a busca de maior competitividade das empresas brasileiras, condição prévia para a inserção do país na economia globalizante. É nessa fase que surge a formulação de um novo modelo econômico: o de integração competitiva", destaca Moreira da Fonseca. A partir daí o BNDES passa a privilegiar os investimentos em empresas que agregassem a seus produtos vantagens com vistas a melhorar sua posição na concorrência interna e externa.
Como parte dessa orientação, o banco reduz drasticamente seu envolvimento em saneamento financeiro de companhias em dificuldades, que lhe valeu por muitos anos o apelido pejorativo de "hospital de empresas", em muitos casos em operações com fortes suspeitas de viés político ou de apadrinhamento. E deixa, além disso, de se comprometer com programas de governos estaduais e municipais, cujas operações se mostravam de difícil retorno.
Em 1982, com a criação do Finsocial (Fundo de Investimento Social), o BNDES se transforma também em agente do desenvolvimento social e adota, nos projetos avaliados, a obrigatoriedade de aplicação de recursos destinados exclusivamente à realização de empreendimentos voltados para a cidadania.
Menos Estado
Entre 1984 e 1989, quando o Brasil volta a enfrentar imensos desafios políticos com a redemocratização do país por meio da vitoriosa campanha das "Diretas, já!", o BNDES elege o setor privado – e a competitividade dos empreendimentos – como prioridade para a alocação de recursos. As discussões sobre a redefinição do apelo do Estado na economia levaram a uma importante alteração na função do BNDES. Em vez de continuar subsidiando estados e municípios, o banco passou a atuar na mobilização de capitais privados para a realização de investimentos em serviços públicos. Mesmo assim, o BNDES financiou, ao longo dos anos 80, projetos gigantescos ligados ao setor estatal, entre os quais a hidrelétrica de Itaipu, a informatização da Rede Ferroviária Federal e vários programas de transportes urbanos em cidades de grande e médio portes.
Em 1986, segundo dados oficiais, o BNDES criou também o Programa de Preservação do Meio Ambiente, que visava apoiar projetos de controle ambiental, além de dar sustentação a empreendimentos de coleta de lixo.
Ao se iniciar a década de 90, o governo federal redefine sua política industrial e de comércio exterior e decide aprofundar o Programa Nacional de Desestatização e confere ao BNDES a tarefa de ser seu gestor. Para o banco, a privatização representa parte de um conjunto de medidas que buscam a modernização da economia. A atuação dessa instituição tem de avançar em direção à desconcentração dos mercados, reduzindo o peso dos monopólios e oligopólios, com maior democratização da propriedade do capital e adoção de novos modelos de administração de empresas.
O marco nessa fase, que vem tendo desdobramentos até hoje, foi a transferência da Usiminas para o setor privado, em 1991. De lá para cá, o banco se viu envolvido em amplos programas de liquidação de empresas do Estado, cujo objetivo principal é a ampliação e maior eficiência dos serviços públicos.
A partir de 1994, com a estabilização econômica proporcionada pelo Plano Real, o banco acelerou o programa de desestatização. Em fins dos anos 90, mais precisamente em 1998, a privatização do sistema Telebrás, a maior operação de venda de empresas estatais já ocorrida em todo o mundo, desembocou na modernização da área de telefonia brasileira, considerada uma revolução nas comunicações, também ainda em curso, com novas etapas de liberalização do mercado. Do outro lado, contudo, a operação da Telebrás trouxe ao BNDES seu maior desgaste de imagem pública desde sua fundação, com o caso que ficou conhecido como o "grampo do BNDES", em que uma escuta clandestina instalada nas dependências do banco gravou conversas, depois divulgadas para a opinião pública, e acabou derrubando figuras do primeiro escalão do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (ver texto abaixo).
"No decorrer dos seus 50 anos, o BNDES viveu períodos de altos e baixos, nos quais a política influenciou muito o destino dos recursos, nem sempre de maneira transparente e eficiente", afirma o empresário Mário Amato, ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). "Houve época em que a instituição favorecia o esperto em vez do expert, chegando a ser um verdadeiro balcão de negócios pessoais", complementa. Segundo sua avaliação, no entanto, a fase atual do banco é muito boa: "Com uma gestão altamente profissional, o BNDES vem procurando mudar a imagem negativa do passado e exercendo realmente sua função de instrumento para o fortalecimento da indústria nacional". Para Amato, um dos pontos positivos da política de crédito do BNDES é o de atender, ao mesmo tempo, o empresário industrial, grande ou pequeno, e o proprietário rural: "Essa é a verdadeira política desenvolvimentista, que trata a interdependência dos setores rural e urbano como um todo".
Para os críticos do projeto industrializante capitaneado pelo BNDES, como o ex-ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Veloso, "a economia que emergiu desse processo é uma colcha de retalhos, que mistura o moderno e o arcaico". Segundo ele, a onda de capital estrangeiro dos anos 90 fez trocar de mãos uma parcela relevante da indústria e do setor financeiro, mas não resolveu o problema da escassez de crédito nem forneceu à economia brasileira a capacidade de exportar. Da mesma forma, a privatização, que modernizou setores da siderurgia à telefonia, terminou sem que o país tivesse utilizado seus recursos para obter estabilidade nas contas públicas, que seguem fragilizadas.
"Apesar de tudo o que já fez, o banco reconhece que ainda há muito por fazer para o Brasil atingir o status de nação desenvolvida", contra-argumenta Moreira da Fonseca. "Ainda não estamos satisfeitos, mas o BNDES, sozinho, não tem como dar conta dessa tarefa: o problema é grande demais, e precisamos contar com o esforço coletivo de toda a sociedade e do governo."
Para fazer frente aos desafios que ainda bloqueiam o pleno desenvolvimento brasileiro, o atual presidente do BNDES, o economista Eleazar de Carvalho Filho, acena com uma novidade: dedicar especial atenção aos projetos de exportação e ao apoio às micro, pequenas e médias empresas, dado o dinamismo desses segmentos e sua capacidade de geração de empregos. "O BNDES intensificará o trabalho voltado para a integração de cadeias produtivas, a internacionalização das empresas brasileiras e o desenvolvimento de novos produtos que possam facilitar o acesso ao crédito por parte da pequena empresa", afirma.
Dentro dessa perspectiva, e com um orçamento de R$ 28 bilhões para aplicar "onde o Brasil mais precisa para se tornar globalmente competitivo", Eleazar promete continuar consolidando o foco de atuação do BNDES nas sete dimensões estratégicas estabelecidas pelo Plano 2000/2005: modernização dos setores produtivos; infra-estrutura; social; micro, pequena e média empresa; desenvolvimento regional; exportação; e privatização. "O plano estratégico determinou também que o fortalecimento do mercado de capitais será um fator-chave para atingir as metas", acrescenta.
Nos próximos meses, o banco pretende deslanchar iniciativas com o objetivo de dar um novo rumo para a economia do país: tornar mais forte seu braço de exportações, o BNDES-Exim, para ampliar a base exportadora nacional e fomentar a criação de empresas brasileiras internacionalizadas.
Outra iniciativa é ampliar e diversificar o chamado "capitalismo popular", ou seja, o acesso de milhões de trabalhadores, por meio de seus respectivos FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), às ações de empresas de porte e bancos nacionais. Recentemente, duas grandes operações de ofertas públicas de ações, uma que envolveu a Petrobras, e outra a Companhia Vale do Rio Doce, atraíram mais de R$ 1 bilhão em recursos do FGTS. Para o segundo semestre do ano está prevista a venda de ações do Banco do Brasil. A idéia por trás dessas ofertas de ações, sem que o Estado perca seu controle acionário, no caso do BB e da Petrobras, é fortalecer o mercado acionário no país, sob os princípios da boa governança corporativa, para que possa contribuir com sua parte no papel de fornecedor primário de capital para o empresário brasileiro.
Imagem arranhada Uma instituição financeira como o BNDES não poderia passar por 50 anos da vida nacional, intercalados por períodos de forte turbulência política e econômica, sem desgaste de imagem pública. E, de fato, não passou.
Em toda a história da instituição, no entanto, o episódio que mais negativamente marcou sua imagem pública foi aquele que ficou conhecido como o "grampo do BNDES", o notório caso de espionagem telefônica realizada antes, durante e depois do leilão de privatização do sistema Telebrás, a maior venda de estatais já realizada. Hoje sabe-se que a autoria da espionagem foi da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
A divulgação do conteúdo das fitas pela grande imprensa colocou sob suspeita o processo de privatização do sistema Telebrás e provocou o afastamento do então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, e do então presidente do BNDES, André Lara Rezende. Até hoje o caso continua trazendo desdobramentos e acusações que, indiretamente, ainda prejudicam o esforço do banco em mostrar ao mundo sua nova imagem, a de instituição transparente e eficiente.