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Herança cultural
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Museu de São Paulo resgata papel dos jesuítas na formação do Brasil
JOÃO MARCOS RAINHOO descobrimento e a posterior colonização do Brasil foram frutos de ambições políticas, econômicas e de expansão da fé católica. Neste último caso, os integrantes da Companhia de Jesus – os jesuítas – tiveram um papel fundamental no processo de arrebanhar novos fiéis para a Igreja. Mas eles superaram as expectativas. Fundaram vilas, construíram as primeiras escolas, criaram cooperativas de produção – as famosas Missões – e catequizaram índios. Influenciaram corações, mentes e almas com idéias libertárias no plano material e espiritual. Nada mais perigoso num Estado centralizador.
A escravização indígena, prática corrente desde os primórdios do descobrimento do Brasil, chocava-se com os objetivos catequéticos dos jesuítas. A incompatibilidade de princípios agravou-se no decorrer do tempo, culminando com sua expulsão do território brasileiro, em 1759, por ordem do marquês de Pombal, e a posterior decisão do papa Clemente XIV, em 1773, de extinguir a Companhia de Jesus.
Quando falamos dessa ordem fundada em 1539 pelo espanhol Inácio de Loyola também nos lembramos imediatamente do padre José de Anchieta, cujo processo de canonização, que deve torná-lo o segundo santo brasileiro, está em andamento. Mas o que muita gente não conhece é a verdadeira herança dos jesuítas na formação cultural do Brasil. Ao desembarcar no novo continente com os primeiros colonos, eles se espalharam por diferentes regiões, fundando os alicerces de muitas cidades hoje importantes, como São Paulo, por exemplo. Cultos e solidários, construíram igrejas e escolas, e educavam sem distinção índios e filhos tanto de portugueses bem-sucedidos quanto de colonos pobres, numa época em que a Coroa portuguesa se recusava a oferecer educação pública local – ao contrário da Espanha, que incentivou a criação de instituições de ensino em suas colônias da América Latina, como comprovam universidades quatrocentonas de países da região, a exemplo de México e Bolívia.
Depois da expulsão das terras brasileiras, os jesuítas literalmente desaparecem das páginas dos livros de história escolares. Entretanto, a Companhia de Jesus voltou à ativa em 1814, por decisão do papa Pio VII, e continua viva e poderosa. É uma das ordens mais bem organizadas e ricas da Igreja Católica. No Brasil, controla a editora Loyola e alguns dos melhores colégios e universidades privadas, entre eles o Colégio e Faculdade São Luís (SP), o Colégio Santo Inácio (RJ), a Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), a Escola Superior de Educação e Negócios (Esan-SP) e a Faculdade de Engenharia Industrial (FEI-SP) – para citar apenas algumas dessas instituições.
"Os jesuítas exercem uma influência discreta porém marcante em vários setores da sociedade, até mesmo no Vaticano", comenta Maria Aparecida Toschi Lomonaco, historiadora e curadora do Museu Padre Anchieta, localizado no Pátio do Colégio, marco da fundação da cidade de São Paulo. Reinaugurado em abril deste ano, o museu faz parte de um projeto maior, que objetiva transformar essa casa jesuítica no Centro Loyola de Fé e Cultura.
"Queremos concentrar num só lugar documentos históricos, livros e peças de arte sacra que resgatem a trajetória da Companhia de Jesus no Brasil", complementa o padre Roberto Albuquerque, superior da comunidade religiosa do Pátio do Colégio. Esse acervo ficaria num memorial composto pela igreja, museu, biblioteca, centro cultural e sala multimídia. Dentre essas unidades, o centro cultural é a única que ainda não está em operação, mas, de acordo com os planos do padre Roberto, no local acontecerão apresentações de teatro, peças musicais, cursos de formação religiosa, política e cultural. Tudo ao estilo da Companhia de Jesus, cujos princípios ressaltam a mudança social a partir da transformação moral, religiosa e sociocultural do indivíduo. Em outubro o Pátio do Colégio deverá sediar um seminário para debater a questão da violência. "Será nosso primeiro grande evento", afirma o padre.
O museu já está aberto para visitas monitoradas, e o público poderá consultar o acervo de 15 mil livros da biblioteca, totalmente informatizada. "Existem raridades e documentos históricos importantes para quem deseja pesquisar a história do Brasil, de São Paulo ou dos jesuítas especificamente", destaca Lomonaco. Ela cita como exemplo a História da Companhia de Jesus no Brasil, de Serafim Leite, obra editada em dez volumes anuais entre 1938 e 1948, que será relançada ainda neste ano, com patrocínio da Petrobras. Na Capela Padre Anchieta, destaca-se um órgão tubular Tamburini, adquirido através do Fundo Nacional de Cultura para dar continuidade aos concertos no local.
O atual acervo do museu, composto de 500 peças, foi constituído a partir de 1979 e encontrava-se exposto em salas do Pátio do Colégio em sua quase totalidade, sem a observância de critérios museográficos. A grande mudança começou a ocorrer no ano de 1998, ocasião em que o padre José Maria Fernandes Machado chegou ao Pátio do Colégio com o propósito de transformá-lo num Centro de Fé e Cultura. Para isso, contou com o aporte financeiro inicial da Companhia de Jesus e posteriormente o apoio do Ministério da Cultura – através da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) – e da Petrobras, que investiu R$ 1 milhão no projeto.
"Hoje, os objetos que constituem o acervo foram restaurados e encontram-se identificados, classificados e organizados em coleções de forma a evidenciar o valor que possuem", afirma a curadora. Entre os itens mais importantes, Lomonaco destaca uma pia batismal do século 16 (a peça mais antiga do museu), que pertenceu à primeira igreja do Colégio. Cabe ressaltar que a construção atual data de 1979 e é uma réplica da original. Há também imagens representativas da arte sacra de São Paulo dos séculos 17, 18 e 19, além do baldaquino neogótico, do século 19, feito de latão, prata e bronze, e folheado a ouro. Essa peça fica num ambiente fechado, com uma cúpula que imita um céu estrelado e brilhante, efeito produzido com a utilização de tecnologia de fibra ótica em 480 pontos de luz. Numa sala anexa à igreja encontra-se um pequeno acervo de objetos de uso pessoal do padre Anchieta.
Marco zero
Poucas cidades conhecem o local exato de sua fundação. E São Paulo é uma delas, graças ao trabalho dos jesuítas, que começaram a construir onde hoje é o marco zero da capital. Em 1553, o superior dos jesuítas, padre Manuel da Nóbrega, que estava na Bahia com os primeiros colonizadores, foi conhecer a capitania de São Vicente. Em busca de local para a instalação de um novo colégio jesuíta, subiu trilhas indígenas até o planalto de Piratininga. Ali encontrou condições que considerou extremamente favoráveis: o clima era temperado, mais parecido com aquele a que estavam acostumados os europeus. As terras eram boas para a agricultura e a criação de gado. Os rios Tamanduateí e Anhangabaú, próximos ao planalto, forneciam água fresca e comida fácil e farta, além de servir como via de transporte. O relevo acidentado facilitava a defesa, oferecendo uma ampla visão de todas as terras vizinhas. Nóbrega percebeu também que Piratininga poderia ser o ponto de partida para atingir outras regiões ao sul. Todo esse panorama geográfico foi reconstituído em uma maquete de gesso e resina que está exposta em uma das salas do museu.
Os jesuítas, contudo, encontraram o planalto habitado por índios tupiniquins. Caiubi e Tibiriçá, caciques locais, se encarregaram de construir uma pequena cabana para abrigar os padres que Nóbrega enviaria de Salvador. Em 25 de janeiro de 1554, dia em que a Igreja comemora a conversão de São Paulo – e também data da fundação da capital paulista –, os padres Manuel de Paiva, Afonso Brás e José de Anchieta oficializaram a presença dos jesuítas com a celebração de uma missa, assistida pelos índios que ali viviam.
Em setembro de 1554, o padre Afonso Brás iniciou em São Paulo de Piratininga a construção de uma nova casa e de uma igreja, com o auxílio de índios e demais membros da Companhia de Jesus, que se ocupavam das funções de pedreiros, carpinteiros, taipeiros, oleiros e ferreiros.
Porém, como criticavam a escravização indígena na região, os jesuítas acabaram sendo expulsos de Piratininga em 1640. Reintegrados às suas atividades 13 anos mais tarde, voltaram a construir igrejas e colégios. A parede de taipa de pilão que se encontra preservada e protegida por uma redoma de vidro na entrada do museu é remanescente de uma edificação erguida em 1653.
Mas os problemas dos jesuítas com o sistema econômico vigente se agravaram um século depois, quando em setembro de 1759 o marquês de Pombal promulgou a lei que abolia a presença da Companhia de Jesus no reino e nas colônias de Portugal. Expulsos os jesuítas e confiscados seus bens, o Colégio foi transformado em palácio dos governantes de São Paulo.
Até 1953 o Pátio do Colégio foi palco de diversos acontecimentos importantes da história do Brasil, destacando-se a permanência de dom Pedro I durante a semana da independência. Em 1954, nas comemorações do IV Centenário da Cidade, foi organizada uma Campanha de Gratidão aos Fundadores, para recuperar o espaço do Pátio do Colégio e devolvê-lo à ordem. Esse projeto se efetivou somente em 1979, com a inauguração do museu e da Capela Padre Anchieta.
Santo brasileiro
Outro fato que deverá colocar o Pátio do Colégio em evidência é a possível canonização do padre Anchieta. Se isso acontecer, ele será o segundo santo brasileiro, já que em maio último madre Paulina se tornou a primeira. O processo está em andamento no Vaticano. Anchieta já é beato, o primeiro passo da santificação, e teve milagres comprovados à época da beatificação. Agora precisam surgir novos milagres para que ele entre na galeria dos santos da Igreja Católica. "Estamos investigando um caso concreto no Espírito Santo", informa o padre César Augusto dos Santos, presidente da Associação Pró-Canonização de Anchieta (Canan), com sede em São Paulo.
O padre César Augusto está autorizado a correr o mundo em busca de milagres do candidato a santo. Milagre, na definição da Igreja, é um acontecimento que não encontra explicação do ponto de vista material. Por exemplo, a cura de um doente desenganado pelos médicos. Já o fato de conseguir um emprego por meio de um pedido ao beato Anchieta não é milagre, e sim graça.
Anchieta nasceu nas ilhas Canárias em 1534. Sua nacionalidade, portanto, é espanhola. Ele veio para o Brasil com 19 anos e faleceu no Espírito Santo em 1597, na cidade que hoje tem seu nome. O trabalho do presidente da Canan é também divulgar Anchieta como beato e incentivar as pessoas a pedir milagres em seu nome.
Considerado Apóstolo do Brasil, Anchieta fundou as cidades de São Paulo e de Santo André. Escreveu a primeira gramática tupi e exerceu papel fundamental nos primórdios da educação brasileira. Foi um autêntico representante de sua ordem, que coloca a educação como um dos principais pilares que sustentam o trabalho de transformação social.
"Inspirados em uma determinação de Loyola, os jesuítas estudaram vários modelos pedagógicos e sintetizaram as melhores experiências em suas escolas", diz o padre Guy Ruffier, diretor-geral do Colégio São Luís, pertencente à Companhia de Jesus. Instituição de elite, a escola diplomou personalidades de destaque da vida pública nacional, como o senador Eduardo Suplicy, o ex-governador Paulo Maluf, o navegador Amyr Klink e o ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, entre outros.