Postado em
Saudade do peixe-vivo
|
Há cem anos nascia Juscelino, hoje quase esquecido pelos brasileiros
CECÍLIA PRADAJuscelino Kubitschek de Oliveira foi o 21º presidente do Brasil. Número altamente significativo – com o distanciamento histórico de meio século, passadas tantas e tão turvas águas sob a ponte da República, uma avaliação imparcial e madura do que foi o seu governo ressalta, com unanimidade, que aqueles anos de 1956-61 foram os da maioridade da nação.
No entanto, mesmo para os que se habituaram com a expressão transformada em clichê – "somos um país sem memória" – há fatos que chocam: recente pesquisa de opinião realizada por uma instituição carioca mostrou que, neste ano do centenário de nascimento de Juscelino Kubitschek, dentre 800 pessoas entrevistadas nas classes A, B, C e D, somente 17 souberam responder quem ele era e o que tinha feito.
A geração atômica
A expressão "anos dourados" foi difundida por uma minissérie da TV para designar, de forma superficial e genérica, a segunda metade dos anos 50. Mas a geração que se pretende, hoje, tão dourada e embelezada foi a primeira da era atômica – marcada profundamente, em todo o mundo, pela idéia da catástrofe possível, mantida em tensão especial com o desenvolvimento da guerra fria, consciente de que, nesse novo contexto, tudo mudava de escala e de perspectiva. Depois de Hiroshima e Nagasaki, dos campos de concentração e do Holocausto, o mundo nunca mais seria o mesmo – como dizia o filósofo Theodor Adorno, até a arte perdera sentido, depois de Auschwitz.
No imediato pós-guerra o mundo reerguia-se, cicatrizado, sobre os esforços diplomáticos que reuniam políticas de alianças e o reconhecimento de "áreas de influência" bem delimitadas à imperiosa necessidade de uma reestruturação econômica e social. Redesenhava-se um perfil para o mítico ser denominado "Homem" – uma entidade já antiga no planeta, mas vaga demais até então, com abrangências que deviam incluir (segundo rezava a Declaração Universal dos Direitos do Homem) seres díspares e desencontrados como homens e mulheres, crianças e velhos, pretos, brancos e multicoloridos, com direitos e deveres iguais e inegáveis, etc.
O nascimento da ONU (das próprias cinzas de outra mítica entidade, a Liga das Nações) corporificava a grande aspiração de uma revolution of rising expectations de proporção global – a independência da Índia, em 1947, irradiava seu espírito de rebeldia por outras nações da Ásia e da África. A Conferência de Bandung, em 1955, marcou época, pois pela primeira vez 23 Estados asiáticos independentes, e seis da África, se reuniram sob a denominação comum de "Terceiro Mundo". Contando com a presença de figuras proeminentes como Jawaharlal Nehru, da Índia, e Chu en-Lai, da China, a assembléia marcava também a emergência de um punhado de líderes como Kwame Nkrumah, de Gana (que logo mais se tornaria o primeiro presidente africano negro), ou o arcebispo Makarios, herói da independência de Chipre.
No Brasil, mastigávamos o fim da era Vargas. Ou éramos mastigados por ela. Passada a euforia do final do Estado Novo, que coincidira com o término da guerra, o ufanismo que embelezara com sonhos de grandeza os míticos "recursos naturais" do Brasil retraía-se. O país real começava a ser visto – não mais gloriosamente "novo" e potencialmente poderoso, mas atrasado, atrofiado, subdesenvolvido.
O governo do general Eurico Gaspar Dutra (1946-51), passado à história como um dos mais medíocres e ambíguos, não fez mais do que deixar que o mercado brasileiro fosse inundado com toneladas de bugigangas plásticas e gadgets de todo tipo – recebidos dos Estados Unidos como pagamento por nossa participação na guerra. Essa foi a grande era do náilon. Ao tomar posse como presidente eleito, em 1951, Getúlio Vargas tinha como meta a industrialização. Mas seu arraigado nacionalismo e o descontrole em que caiu seu governo não lhe permitiram estabelecer medidas eficientes com esse objetivo.
Internamente, o ano de 1954 viu o Brasil às vésperas de uma guerra civil, com a insubordinação da aeronáutica, apoiada por outros setores militares, depois de uma desvairada campanha antigovernista desencadeada pelo jornalista Carlos Lacerda.
O suicídio de Vargas, no dia 24 de agosto, quando sua deposição já era iminente, lançou o país em um pesado clima de insurreição e agitação que se prolongou durante 1955 – um dos mais agitados anos da história nacional. No dia 3 de outubro de 1955, o ex-governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira, pertencente ao Partido Social Democrático (PSD) foi eleito novo presidente, por uma diferença de apenas 500 mil votos sobre o general Juarez Távora.
Sob o pretexto de que Juscelino no poder representaria o continuísmo do governo Vargas e que fora eleito com o apoio dos comunistas, os militares ligados à União Democrática Nacional (UDN) arquitetaram um golpe para impedir sua posse. Numa ação segura, inesperada, no dia 11 de novembro de 1955 o então ministro da Guerra, general Henrique Duffles Teixeira Lott, desarticulou a intentona, colocou o país sob estado de sítio e garantiu a posse do presidente eleito.
O peixe-vivo
Mas quem era Juscelino Kubitschek de Oliveira, que aos 53 anos assumia o cargo de 21º presidente do Brasil?
Nascera em Diamantina, Minas Gerais, a 12 de setembro de 1902 – filho de uma professora primária, Julia Kubitschek, de família tcheca, que para sustentar a família andava 9 quilômetros diariamente até sua escola. E de João Cesar de Oliveira, um caixeiro-viajante ("cometa") que morreria aos 34 anos, de tuberculose, deixando "Nonô" (Juscelino) com 2 anos e "Naná" (Maria da Conceição) com 3. Diz JK, em suas memórias, do casamento dos pais: "Era a atração dos contrários. Ela, a discrição em pessoa, escrava do dever, adversária de festas e folguedos, que freqüentava tão-somente a igreja e as casas dos parentes próximos; ele, o mão-aberta, o gênio expansivo, o rei da noite e das serenatas".
Não é difícil ver no temperamento de JK a fusão das duas tendências – político sério, empreendedor, trabalhador, e ao mesmo tempo festeiro como o pai, bem-humorado, jovial, amante das artes e dos bailes, "pé-de-valsa", como foi chamado. Seu melhor biógrafo, Claudio Bojunga, autor do alentado livro JK – O Artista do Impossível, cita, entre muitas outras, a descrição que o filólogo Antônio Houaiss fazia de JK: "Homem aberto, auditivo, receptivo, fino sistematizador", e acrescenta: " [JK] vivia na transição de dois Brasis [o arcaico, de estrutura agrária, e o moderno, da industrialização] e saltitava na corredeira da história, justificando o apelido pelo qual ficou conhecido [peixe-vivo]".
O menino pobre e inteligente só pôde estudar em um seminário – embora desde o primeiro dia avisasse os padres lazaristas de que não tinha vocação. Aos 21 anos arrumou a mala e foi para Belo Horizonte – somente então viu um automóvel pela primeira vez. Alojou-se durante um ano no porão de uma pensão, preparando-se, com sacrifícios enormes, para o vestibular da Faculdade de Medicina. Aprovado, fez todo o curso trabalhando como telegrafista concursado, à noite, e estudando de dia. Seus colegas testemunharam o grande valor de Juscelino, que muitas vezes era obrigado a faltar às aulas no período da manhã, para dormir, mas continuava bom aluno, e sempre simpático, bem-humorado. Mas, pelo final do curso de medicina, JK estava tão esgotado que temia ter o mesmo destino do pai. Precisou tirar uma licença do emprego e ir restabelecer-se no seu "recreio", isto é, em Diamantina, com uma dieta de excelente cozinha mineira e cuidados maternos.
Formado em 1927 como médico-cirurgião, conseguiu logo um emprego e foi pondo de lado economias, para realizar um sonho antigo: viajar. Em 1929, já noivo de Sarah Gomes de Lemos, resolveu especializar-se na França. A noiva consentiu em esperá-lo. Vendendo seu Ford e levantando empréstimos bancários, arranjou dinheiro para fazer um estágio em uma sofisticada clínica de Paris. Falava perfeitamente o francês, que aprendera com uma professora de Diamantina, madame Louise. Lembraria sempre esse período como "o momento em que adquirira sua autoconfiança e em que descobrira o Brasil em Paris". Como a tantos da sua geração – Oswald de Andrade, Portinari, Flávio de Carvalho –, o afastamento da pátria permitia a reflexão sobre a inferioridade econômica e cultural de seu país, diante da civilização européia.
De volta ao Brasil, Juscelino casou-se, no final de 1931, com Sarah. Na sua qualidade de capitão-médico da polícia mineira, foi convocado para as forças governistas, na Revolução de 1932, e teve tão destacada atuação como cirurgião que, ao término da guerra, foi chamado ao Palácio da Liberdade pelo governador Olegário Maciel, que lhe agradeceu o muito que fizera pelos feridos, na grande batalha do Túnel.
Segundo o historiador Francisco de Assis Barbosa, "Juscelino receberia, na campanha de 1932, além do batismo de fogo, o batismo da política". O interessante é que o jovem médico, lutando nas fileiras governistas, passou a encarar com simpatia a causa constitucional dos paulistas. Mais tarde diria que pudera então observar o comportamento dos tenentes – isto é, dos mesmos militares que em 1930 apoiaram Vargas, mas que em 1955, já como coronéis, quiseram impedir a posse de JK, por "esquerdista e continuísta do regime Vargas", e que em 1964, generais, seriam os autores do golpe militar. Como que prevendo o futuro, Juscelino sentira-se contristado com o seu radicalismo, "tão sincero quanto maléfico à pacificação nacional, o que comprovava a frase de Joaquim Nabuco, ‘não se ganha uma revolução sem os exaltados, mas depois não se pode governar com eles’".
Foi deputado federal de 1934 a 1937– neste ano, após a instauração do Estado Novo, perdeu o mandato e retomou sua profissão de médico. Em 1940 foi convidado pelo interventor em Minas, Benedito Valadares – que fora seu companheiro de trincheira em 1932 –, a assumir o cargo de prefeito de Belo Horizonte, o qual manteve até 1945, tendo realizado grandes obras urbanísticas na capital mineira, com a colaboração de Oscar Niemeyer. Elegeu-se deputado à Constituinte em 1946, e governador do estado em 1950.
O presidente
Enquanto o nacionalismo populista de Getúlio travava a industrialização do país – impossível de ser empreendida sem ajuda de capitais estrangeiros –, Juscelino, dotado de visão mais ampla, sem renunciar a uma política independente, compreendia melhor os novos padrões econômicos mundiais. Antes de tomar posse como presidente, fez uma viagem ao exterior, para se encontrar com os principais líderes políticos e homens de negócios das nações desenvolvidas. Em 17 dias sua caravana percorreu nove países – Estados Unidos, Inglaterra, Holanda, Bélgica, França, Itália, Alemanha, Portugal e Espanha. Em seu livro de memórias, A Lanterna na Popa, Roberto Campos relembra essa viagem e a imagem modernizante que JK transmitia aos investidores estrangeiros: "Era um vendedor de esperanças e um tocador de obras, disposto a quebrar rotinas burocráticas".
Um incidente, relatado por Claudio Bojunga na obra já citada, mostra, porém, que o seu desejo de atrair capitais estrangeiros não implicava subserviência. Ao tomar conhecimento do roteiro dessa viagem, os Estados Unidos e a Inglaterra comunicaram que não poderiam receber Juscelino como chefe de Estado, pois não havia ainda sido proclamado presidente eleito pela Justiça Eleitoral. Em Washington, não gozaria do privilégio de ser hospedado na Blair House. Juscelino não hesitou – cortou os Estados Unidos do seu itinerário. Imediatamente os norte-americanos abriram mão do protocolo: mantiveram a visita e a hospedagem na Blair House, suprimindo apenas a clássica salva de tiros. E quando o presidente Dwight David Eisenhower insinuou exigências – como o afrouxamento do monopólio estatal brasileiro do petróleo, ou uma política mais nitidamente anticomunista – JK esquivou-se, afirmando que manteria o monopólio e que absolutamente não aceitava "a criação de uma agência de análise e filtragem de informações estratégicas", no Brasil – uma espécie de filial brasileira da Central Intelligence Agency (CIA). Na sua opinião (é ainda Roberto Campos quem conta esse episódio), "o melhor antídoto para o comunismo era o desenvolvimento econômico e o fortalecimento das instituições democráticas".
Empossado em 31 de janeiro de 1956, a sua primeira preocupação foi restabelecer o pleno estado de direito no país – que vivera em estado de sítio, com censura inclusive da imprensa, nos últimos meses de 1955. O escritor Josué Montello foi testemunha do fato e contava que JK teria dito: "Quero a imprensa desatada, mesmo para ser injusta comigo. No fim veremos quem ganha a parada. Meu Plano de Metas está pronto. Pronto e retocado. Agora, mãos à obra".
No dia seguinte à posse, em uma reunião ministerial convocada para as 7 horas da manhã, o presidente expunha as grandes linhas do seu governo, consubstanciadas no Plano Nacional de Desenvolvimento, mais conhecido como Plano de Metas (ver texto abaixo), declarava que controlaria pessoalmente toda a sua realização e criava o Conselho Nacional de Desenvolvimento.
O vice-presidente norte-americano Richard Nixon, que estava presente na posse de JK, acabou por se tornar, pela habilidade política do novo presidente, parte atuante na sua primeira iniciativa – ainda no dia 1º de fevereiro JK convidou-o a uma breve viagem a Volta Redonda (RJ) e conseguiu convencê-lo a dar um empréstimo de US$ 35 milhões à Companhia Siderúrgica Nacional. Nixon discursou e disse que pressentia que o Brasil "estava às portas de uma era de progresso".
Época áurea
Os cinco anos seguintes – que segundo JK deveriam "valer 50 anos de desenvolvimento" – veriam o presidente agir com muita firmeza e habilidade política contra a constante oposição udenista. O início de seu governo foi marcado por dificuldades. Carlos Lacerda não cessava de pregar abertamente o golpe que o levaria (pensava) ao poder, pela força, e pedia a renúncia do ministro da Guerra, o general Lott, e de todo o Executivo, em nome de "um governo de emergência" que traria "a verdadeira revolução ao país, eliminando corruptos e comunistas".
Segundo Claudio Bojunga, Lacerda era a única pessoa que JK temia – confessava mesmo que era o primeiro que lhe acudia à cabeça, ao acordar, todos os dias. Incidentes com a aeronáutica e com membros udenistas da marinha sucederam-se. Mas mesmo o surgimento de pequenos focos rebeldes armados, como o episódio de Jacareacanga em 1956 e o de Aragarças em 1959, foram bem resolvidos pelo "peixe-vivo". Os rebeldes foram prontamente anistiados e nenhum ressentimento perturbou a serenidade de Juscelino. Quanto à marinha, JK a teria pacificado com um vistoso presente, a compra do porta-aviões inglês Vengeance, logo rebatizado como Minas Gerais.
Dotado de enorme charme pessoal, bem-humorado, otimista, Juscelino conseguiu assim reverter a situação inicial de desconfiança e caos, que prevalecia no país no começo de seu governo. Joaquim Ferreira dos Santos conta em seu livro Feliz 1958 – O Ano que não Devia Terminar, que JK dizia, lendo o discurso preparado por um assessor: "Espalhe aí umas borboletas entre os parágrafos" – uma expressão da informalidade que sabia associar à gravidade do cargo (sem nunca perder a compostura). Nélson Rodrigues definiu o estilo JK: "Juscelino trouxe a gargalhada para a presidência", enquanto outros presidentes tinham sempre "a rigidez de quem ouve o Hino Nacional, cada um se comportando como se fosse a estátua de si mesmo".
O desenvolvimentismo conseguiu realmente se transformar em um divisor de águas na política econômica brasileira, impondo também no exterior uma imagem respeitada do país. Contribuíram muito para isso os intelectuais que no início da década haviam fundado o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), que elaborou uma ideologia do desenvolvimentismo. Atendendo ao pedido de Darcy Ribeiro, JK criaria também a Universidade de Brasília. Tanto esta como o Iseb foram desmantelados após o golpe de 1964, e seus maiores expoentes sofreram perseguições e exílio. No plano da política internacional, o poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt foi o idealizador da Operação Pan-Americana, um programa diplomático executado por JK e que estabeleceu um amplo diálogo com os demais países latino-americanos e com os Estados Unidos.
Como diz a socióloga Lúcia Lippi Oliveira, em um artigo do livro JK – Imagens da Modernidade: "Os anos JK foram marcados pela idéia da incorporação do que era novo e moderno: o desenvolvimento, as estradas, as hidrelétricas, a arquitetura moderna, a música, e pela idéia de que era possível recuperar o tempo perdido, daí o slogan 50 anos em cinco".
Como prefeito de Belo Horizonte, e depois como governador de Minas, JK criara um estilo próprio de governar, com tal informalidade e otimismo que assustava os políticos tradicionais. Continuou sempre a ser um bon-vivant, "alegre como uma janela aberta", namorador, pé-de-valsa. Dispensava com freqüência a rígida rotina doméstica de dona Sarah para, após prolongar o expediente palaciano até altas horas, reunir-se com uma roda de amigos em algum bar ou restaurante popular ("Um prato de feijão com arroz, carne moída, bastante couve picada!"). Muitas vezes, ainda em Minas, terminava suas noites sentado num banco de jardim, vendo o dia raiar – para acordar poucas horas mais tarde, já completamente ativo, marcando reuniões com secretários às 8 horas, saindo logo depois para vistoriar obras, viajando de avião ou carro, sob qualquer tempo, em qualquer estrada.
Mas por trás da aparência boêmia havia em JK um homem muitíssimo culto, sintonizado com as correntes artísticas e intelectuais de vanguarda. Na arquitetura, cercou-se de Oscar Niemeyer e de Lúcio Costa. Remodelou Belo Horizonte, construiu a Pampulha, erigiu Brasília. Viveu rodeado de escritores e artistas. Em BH criou uma orquestra sinfônica, o Museu Histórico e o Paço das Artes. Em 1944 promoveu uma "Semaninha da Arte Moderna" e levou à sisudez da pacata capital mineira uma verdadeira tropa de choque da intelligentsia nacional. Oswald de Andrade, que em 1924 se decepcionara com a arquitetura afrancesada de Belo Horizonte, chamando-a de "Versalhes de estuque", em 1944 saudou a cidade que, na gestão Kubitschek, se havia transformado "na Bayreuth brasileira – no refúgio da poesia e da arte".
A tragédia
Juscelino Kubitschek não quis se reeleger. Não admitiu violar a Constituição, ou reformulá-la, para permitir o continuísmo – mesmo sendo esse o desejo maior do país, em 1961. Contrariando Getúlio Vargas, que dissera "a Constituição é uma virgem que, como todas as virgens, deve ser violada", JK fez questão de repetir sempre que sairia do governo "deixando a Constituição virgem". Pretendia, porém, concorrer novamente à presidência em 1965 e tinha até um programa definido, o desenvolvimento agrícola, já que a agricultura e a educação haviam sido os únicos pontos fracos do seu Plano de Metas. O destino, porém, pregou a maior peça no grande presidente constitucionalista e na população brasileira: no ato mais irresponsável de toda a história nacional, seu sucessor, Jânio Quadros, sete meses após a posse, em um golpe teatral e malsucedido, renunciaria ao mandato, entregando o país ao caos que acabou resultando no negro período ditatorial militar de 21 anos.
Em 8 de junho de 1964, JK, que era senador por Minas, foi cassado e perdeu seus direitos políticos por dez anos. Iniciou-se então seu calvário. Foi perseguido, humilhado, caluniado, vilipendiado e até preso pelos sucessivos governos militares. Sofreu duramente o exílio, primeiro em Madri e em Paris, depois em Nova York. Quando lhe permitiram regressar ao país, viveu cerceado em sua liberdade, proibido, inclusive, de pisar em Brasília, a cidade que criara. Sua imensa popularidade o transformava em ameaça potencial à ditadura.
JK suportou todas as provações, e mesmo as doenças, diabetes e câncer – na sua opinião de médico, advindas dos sofrimentos morais –, com grandeza e humildade. Teve de trabalhar, para poder viver, até o fim da vida, enquanto seus inimigos procuravam, inutilmente, vestígios de uma fortuna que seria "a sétima do país"...
No dia 22 de agosto de 1976, um acidente de automóvel na Via Dutra tirou-lhe a vida. O carro em que viajava foi violentamente abalroado por um ônibus da Viação Cometa e atirado contra uma carreta que vinha na contramão. Um acidente que tem sido exaustivamente examinado, para decidir se não pairaria sobre ele uma mal dissolvida nuvem de mistério. A mesma nuvem, o mesmo mistério que, segundo alguns, envolveria mais duas mortes: a de Jango Goulart, quatro meses mais tarde, em sua fazenda no Uruguai, de ataque cardíaco; e logo no ano seguinte a do ex-inimigo Carlos Lacerda – por coincidência, os três articuladores da Frente Ampla que visava ao restabelecimento do estado de direito no país.
Planos, metas e Brasília O "planejamento econômico" estava no ar desde os anos 30, influenciado principalmente pelo sucesso da política do New Deal, aplicada por Franklin Delano Roosevelt à Depressão norte-americana. Como governador de Minas (1945-51), JK adotara o binômio energia/transportes como metas de desenvolvimento. O Plano de Metas foi a primeira medida de planejamento econômico stricto sensu, no Brasil.
Constava de 31 metas, agrupadas em cinco setores básicos, para os quais deveriam ser encaminhados todos os investimentos públicos e privados do país: energia, transportes, indústrias de base, alimentação e educação. Os três primeiros absorviam 93,4% dos recursos alocados, dos quais 43,4% para a energia, 29,6% para os transportes e 20,4% para as indústrias de base. O crescimento destas foi de 96%, no período 1956-61. A meta 31, denominada meta síntese, era a construção de Brasília, que foi inaugurada em 21 de abril de 1960.
Entre 1956 e 1961, a economia brasileira cresceu, em média, 8,1% ao ano. Em 1958 atingiu o recorde de 10,8%. A participação do setor industrial no PIB passou de 20,4% em 1955 a cerca de 25,6% em 1960. A fabricação de automóveis e de material elétrico ultrapassou 25% ao ano. Vários outros setores, como siderurgia, álcalis, celulose e papel, construção e pavimentação de rodovias, ultrapassaram as metas estabelecidas.