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Habitar Palavras: Juliano Brolo
50 anos de história, 20 nas ruas
Meu nome é Ivo, acabo de completar 50 anos, em outubro, e vocês foram lá cantar parabéns pra mim, não vou esquecer nunca!
Eu nasci lá em Lavínia e estou há 20 anos em situação de rua. 20 anos, acho que é a sua idade né?! Quando saí de Lavínia vim direto pra Birigui, o porquê de Birigui, até hoje eu não sei te contar. Na rua, a nossa maior dificuldade é a chuva; quando chove, não temos muito pra onde correr. Entrei nessa situação por causa da bebida, é muito álcool! Eu sei que tenho que parar, mas eu não consigo viver sem ele e ele não consegue viver sem mim... O álcool acabou com tudo que eu tinha na vida: minha família, minha casa e meu emprego. Eu não volto, por que não consigo viver sem ele. E nós dependentes químicos somos muito humilhados pela sociedade, mas eles têm que entender que a gente é ser humano também. Eu não culpo ninguém pelas minhas escolhas, são minhas.
Agora, durante “a corona” (covid-19) não posso reclamar não; graças a muitas pessoas, ganhei muitas doações. Fomos bem assistidos, ganhamos coisas de pessoas que jamais deram doações pra gente. Onde eu passo, alguém sempre me dá álcool, mas não é o álcool que você está pensando não, é o álcool em gel. Hoje mesmo ganhei uma máscara, queria que o mundo vivesse sempre mergulhado nessa onda de ajudar uns aos outros. O que vocês fazem por mim, eu não tenho palavras. Aliás, até tenho. Peço a Deus que ele continue os abençoando, por que assim, ele vai me abençoar também. Deixa-me ir ali na fila senão eu perco o rango. Até logo!
Sr. Osmar e seu pedido de escuta
Tô sabendo que você está escrevendo histórias, posso contar a minha?
Meu nome é Osmar, tenho 45 anos. De rua eu tenho uns 3 anos, de rua não né, de calçada. E muitas vezes até consigo onde me esconder. Eu durmo um dia em uma casa ali, outra dali e por aí vai. Eu morei e trabalhei na roça por 25 anos, quando vim pra cidade não tinha profissão, aí fui ser ajudante de servente. Tá vendo aquele predião lá, eu ajudei a fazer. Pra mim é o meu troféu. Depois que terminamos ele, fiz um bico ali, outra acolá, e veio a pandemia... e não consegui mais nada. Graças a Deus consegui o auxílio, mas agora acabou ne. É com ele que me virava. Meu maior sonho é poder voltar a trabalhar, minha paz era poder chegar em casa depois do trabalho, poder dormir e no outro dia ir trabalhar. Agora eu vivo nessa angústia, sabe? Acordo, não tenho o que fazer, onde ir trabalhar. As vezes aparecem alguns terrenos para carpir, e isso me ajuda bastante também. Eu estou doido para tomar essa vacina logo, a minha esperança é de tomar ela e poder voltar a trabalhar. Dizem que as coisas depois dela vai melhorar, tomara né? A luta não é fácil, mas com ajuda de vocês tenho esperança de viver, é uma corrente que me faz viver.
Posso te falar a real? Durante a pandemia, muita gente ajudou. Parecia ser natal todo dia. Todo dia chegavam marmitas, doação de coisas pra gente se proteger... mas claro, também teve dias de não chegar nenhuma doação. Os dias mais difíceis pra gente são os domingos, segundas e terças feiras. De domingo todo mundo quer descansar né, de segunda e terça todo mundo tem seu emprego e seus corres. As coisas começam a melhorar depois de quarta-feira, aí os grupos começam a doar comidas, a vir na praça.
Eu me protegi bastante dessa “corona” (covid-19). Aqui das ruas, só um que partiu por conta disso né? E será que foi por causa disso mesmo? Todo mudo entendeu a situação, a gente dormia um longe do outro, todo dia a gente ganhava álcool em gel, máscaras... está dando pra correr dessa doença. Muita gente tem medo de passar do nosso lado e pegar. Mas na real? Somos nós que temos medo das pessoas, e de pegar delas. Tá vendo um monte de madame e um monte de burguês pegando? São eles que mais pegam, nós somos tão esquecidos que até disso a doença esquece um pouco da gente. Tem dias que passo nos lugares, vejo essas festas, e não sei como todo mundo fica juntinho um do outro, é ali que está o perigo. É dali que corro. Quando vejo mais de um, eu mudo de calçada. Até um está dando medo, imagina mais de um. Agora, se me dá licença, vou ali na fila. Qualquer dia quero que você escreva mais da minha história, tenho muita coisa pra contar.
Eu sou Geovana, uma mulher trans em situação de rua
Oie! Meu nome é Geovana, meu nome artístico, social ou como queiram chamar. Tenho 24 anos e cheguei a situação de viver nas ruas há um ano. Ainda é cedo para lhes contar toda minha história, mas como você vê, os maiores preconceitos que o pessoal tem comigo são dois né, o preconceito que a sociedade tem por eu ser uma moradora em situação de rua, e o preconceito pela a minha sexualidade. E como o nome diz, estou em situação de rua e isso vai passar, mas minha sexualidade não. Eu sou uma mulher trans.
Agora durante a pandemia, minha maior dificuldade foi a fome. Dentro das categorias de subgente, onde ficam as pessoas em situação de rua, eu me sinto menos gente que os subgente. Parece que o fato de eu ser uma mulher trans nas ruas me torna ainda mais invisível. Tem dias que as pessoas passam pela gente e nem sequer um oi dá, e você acha que elas vão oferecer comida? Também tenho vergonha de pedir, acho que as vezes o problema é minha vergonha. Agora que vocês voltaram do recesso, não vou ter mais fome aos sábados, vocês são muito importantes pra mim. Torço muito para que muito mais gente continue ajudando.
Muita gente dá mascaras e álcool em gel, mas a gente não consegue comer isso, né? Durante a semana a gente tem o pop que salva e ajuda muito a gente. Mas aos finais de semana, a coisa é feia, até pra tomar banho é difícil. Eu sofro muito preconceito, sofri muito quando era mais novo, sofro até hoje, mas tenho fé que um dia vai passar, não faço mal para ninguém.
E a vacina hein, você sabe quando eu vou tomar?
Sobre o Autor
Juliano Brolo é voluntário e fundador de diferentes ações de mobilização social realizadas na cidade de Birigui, noroeste paulista. Uma dessas ações é o ‘Birigui visível’, onde Juliano junto a outros voluntários se propõem a ouvir e registrar histórias que as pessoas em situação de rua lhes contam sobre sua vida. Além desta, eles mantêm também a ‘Rede solidária’ que tem uma sede física na cidade e serve de referência às pessoas em situação de rua para diversos serviços e o ‘Bem da madrugada’ que semanalmente percorre as ruas da cidade a fim de atender também pessoas em situação de rua, principalmente com marmitas.
Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui
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