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Aferro pela vida

Ilustração: Editoria de Arte
Ilustração: Editoria de Arte

Venho de um lugar habitado por pessoas que dividiam, dentre outras coisas, o próprio espaço de vida. Falo de uma vila da zona leste de São Paulo, de convívios incendiários, mas também amorosos, de ajuda mútua e tratos singulares. Nesse perímetro, os vizinhos zelavam pelos filhos, uns dos outros. Minha mãe cuidou e educou parcialmente muitas outras crianças, fora as onze que circulavam no mesmo quintal. Herança da minha avó, que dava pouso a viajantes desconhecidos e abrigava crianças sem que a burocracia impedisse. Logo compreendi que a partilha com meus semelhantes era uma forma essencial na manutenção de nossas vidas, um aprendizado pela convivência, para sobreviver às dificuldades de toda ordem.

Numa analogia ao universo botânico, as plantas “companheiras” colaboram para um beneficiamento recíproco, pois, agregadas, produzem condições favoráveis para o desenvolvimento do grupo, salvando as mais miúdas ou com maior demanda de rega. Nesse momento pandêmico pude reviver também o contraponto disso, algumas plantas, na aridez de sua solidão, sucumbiram, outras, não se fortaleceram, mas sobreviveram, assim como as pessoas, diante do ameaçador coronavírus.

No início de 2001 chego ao Sesc Pompeia para realizar oficinas voltadas para o desenvolvimento artístico, inseridas no projeto Sesc Verão. Já conhecia bem a casa por frequentá-la e por ter trabalhado nos educativos de exposições nessa mesma unidade, bem como em outras da capital. Destaco, nesse flerte com a instituição, a oficina Imagem e Poesia. Com formato de um sarau experimental, das leituras saltavam as palavras, sendo elas o ponto de partida para a construção de imagens.

A livre participação e gratuidade, fatores que atraíam um público volumoso e diversificado, complementavam meus estudos e práticas em arte-educação.

Ressalto a presença de um menino de 8 anos, Bento, que chegou sozinho, de forma reservada e com algum desconforto. Buscava ali alguém que pudesse ajudá-lo na escrita de cartas, sendo a destinatária sua irmã, interna na Febem, atual Fundação Casa. Não se adentra uma história dessa subitamente, é preciso engendrar confiança. Em idade escolar, não era alfabetizado, tragédia presente de forma sistêmica num modelo político-social que segrega e hostiliza a população vulnerável. Com seus direitos furtados, sem a devida proteção amparada por lei, Bento suplicou pelo envio das cartas. Comecei a escrevê-las, ditadas por ele, e comumente desenhava-se a mesma despedida: não chore, você vai sair logo daí, tô te esperando, não demore.

Como sentença tatuada no corpo, sua expressão escancarava experiências indecifráveis. Tinha na irmã a referência de amparo, era sua base fortalecedora para continuar (re)existindo. E como as palavras nascem, em sua maioria, num nicho de sentido originário e fecundas de significados, a vida de uma criança deveria ser cravada de sinônimos do verbo cuidar. Bento desapareceu, sem deixar vestígios.

As memórias constituem parcela sensível de nosso patrimônio, venho da continuidade dessa e de tantas outras histórias. Assim, vinte anos depois de ter cruzado a vida de Bento, tempo esse que completo de Sesc, nesse 2021, me volto, uma vez mais, ao Sesc Verão, que nessa edição cumpre um papel essencial com o tema: Cuidar faz bem.

Se Bento não tinha o verbo cuidar conjugado em sua trajetória, no Sesc, seus sinônimos potencializam, de forma transversal, as ações socioculturais e educativas, com as profusas dimensões que ensejam a palavra cuidado.

 

Terê Gouvêa é licenciada em Artes Visuais, mestra em Artes pelo Instituto de Artes da Unicamp. É assistente técnica da Gerência de Estudos e Desenvolvimento do Sesc.

 

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