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Quando o Natal não tinha Papai Noel
Era uma vez um lugar esquecido nos confins do tempo, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas, num remoto sertão onde ninguém jamais ouvira falar de Papai Noel. Esse lugar existe. Eu nasci lá.
E se lá não tinha Papai Noel, não havia presentes, ceias, cartões de boas festas, propaganda, votos de um feliz Natal. Desconhecíamos essas coisas, o que era bom. Não faziam falta. O nosso Natal era uma festa singela. Para o menino Jesus.
Como era? Quando dezembro chegava, a meninada se assanhava:
— Oba!
Estava na hora de reunir a turma, dormir uns nas casas dos outros, aninhados aos magotes em camas, redes e esteiras, na maior algazarra. Na verdade, ninguém queria dormir. E isso era o melhor da festa, que começava com uma espécie de desafio: vencer o sono e a noite numa animação sem fim, à espera do sol raiar, quando finalmente pegaríamos a estrada, a caminho dos pés de serra e dos tabuleiros, em busca dos ornamentos para a lapinha. E o que era a lapinha? Um presépio. A representação da manjedoura onde nasceu o menino Jesus.
Meninos, eu conto: íamos ao mato em bando, em bíblica alegria. Priminhos de mãos dadas com priminhas, que não escapavam de uns beliscões safadinhos, incentivados por animadíssimas tias.
E assim íamos: cheios de prosa e dando muita risada, à cata de jericó — uma planta prateada que seca sem morrer — e de gravatá, que vocês conhecem com o nome de bromélia, para a instalação da lapinha no melhor canto da sala de visitas.
Passávamos dias e dias na montagem de um cenário que correspondesse ao imaginário do velho povo, como rezava a tradição, que vinha dos pais de nossos pais e assim para trás, desde que o mundo, aquele mundo, passou a comemorar o Natal.
Depois, era esperar as visitas para contemplar a nossa réplica da gruta sagrada, feita de pedras e galhos de árvores, ao fundo de uma planície de areia, repleta de boizinhos de barro, rios de cerâmica com peixinhos de verdade e os reis magos em seus cavalos. E tudo sob uma tênue luz de um candeeiro, porque assim eram as nossas noites, tão simplesinhas quanto no tempo de Jesus.
Um dia chegou o motor da luz no povoado. Fechamos a casa, lá na roça, com lapinha e tudo. Fomos ver as novidades.
A igreja estava toda acesa, promovendo quermesses e anunciando a Missa do Galo. Era um novo tempo. Ali na praça iluminada, cheia de atrações nunca antes vistas ou imaginadas, íamos de casa em casa, disputando espaço em suas janelas, para apreciar os presépios, cada um mais deslumbrante do que o outro, graças aos efeitos da eletricidade. Com o motor da luz, chegava o Serviço de Alto-Falantes A Voz do Sertão. E, com ele, as músicas de Natal. Começava uma outra história, um outro Natal.
Era a chegada de Papai Noel.
ANTÔNIO TORRES é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), escritor que passeia por cenários urbanos, rurais e da história. Da sua obra, destaca-se a trilogia formada pelos romances Essa Terra (1976), O Cachorro e o Lobo (Record, 1997) e Pelo Fundo da Agulha (Record, 2006, Prêmio Jabuti 2007) e o livro de contos Meninos, Eu Conto (Record, 2003). Nasceu no dia 13 de setembro de 1940, num distrito de Inhambupe chamado Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), no sertão baiano.