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Zuza, homem da música

Ana Ottoni/Folhapress
Ana Ottoni/Folhapress

EM MAIS DE 60 ANOS DE ATIVIDADE, O MESTRE DE ELEGÂNCIA DISCRETA VIVEU INTENSAMENTE SUA HISTÓRIA DE AMOR PELAS CANÇÕES E MELODIAS BRASILEIRAS

 

Não é de admirar que Zuza Homem de Mello comparasse a vida à música, ao dizer que ambas eram feitas de picos, de alternâncias. Os picos para ele transpareciam em “momentos chave da canção”. Em seus 87 anos de vida, encerrados na madrugada do dia 4 de outubro, ficou claro que os momentos altos e chaves foram muitos e estavam imersos em trilha sonora de primeiríssima qualidade. Do contato com o rádio, ainda criança, na década de 1930, em São Paulo, ao contrabaixo que deveria ser estudado profissionalmente, a sério. Esse foi o pedido dos pais, interessados pela rotina do jovem, que na época chegava tarde em casa, depois das apresentações em bares.

O desejo da família se expressava no filho engenheiro, mas Zuza não se identificava com a carreira. O que parecia ser um puxão de orelha foi um impulso fundamental para os estudos musicais, no Brasil e em Nova York, a meca do jazz – uma de suas paixões.

 

Na comemoração dos 10 anos do programa do Zuza no Bar Inverno & Verão, acompanhado pela cantora Angela Maria, pelo museólogo Luiz Ernesto Kawall e pela cantora e instrumentista Nora Ney (São Paulo, 1987) / Coleção Zuza Homem de Mello

 

 

No compasso

Em 1955, trocou de vez a engenharia pela música e, um ano depois, estava com a máquina de escrever tinindo para a produção de seus textos jornalísticos. Sua coluna semanal na Folha da Noite era sobre jazz. Nos anos de 1957 e 1958, passou uma temporada nos Estados Unidos. Foi aluno da School of Jazz, em Tanglewood, teve aulas com Ray Brown, estudou musicologia na Juilliard School of Music e literatura inglesa na New York University e foi estagiário na Atlantic Records, fundada em 1947. Com seu logo emblemático nas cores amarelo, rosa, verde e laranja, com o A de Atlantic em destaque, foi a casa musical de Aretha Franklin, Led Zeppelin, Ray Charles, Otis Redding, The Rolling Stones, Cher.

Sua estadia em Nova York foi profícua em shows. No verão de 1957 assistiu ao pianista Thelonious Monk e ao saxofonista John Coltrane no clube Five Spot Cafe, onde tocaram, semanalmente, por seis meses. A profusão de experiências era a cereja no bolo de sua carreira, seja como crítico, apresentador, pesquisador, seja como colunista. Reportou o passado sem saudosismo e se mostrou um entusiasta do momento presente, como vemos em seus livros, indispensáveis para entender a música brasileira e seus personagens.

Zuza é também uma referência para outros pesquisadores. “Um marco na literatura musical”, resume o historiador e escritor carioca André Diniz, reforçando a formação sólida na linguagem musical. Segundo Diniz, suas experiências internacionais e sua capacidade de produzir programas e artistas resultaram na construção de uma trajetória intelectual por meio da qual pesquisadores de diversos lugares pudessem aprofundar seus estudos. “Aumentando substancialmente a capacidade de entender esses muitos brasis através da música popular”, afirma.

 

De braços abertos à música e aos ouvintes, o mestre dava início à gravação do programa Playlist do Zuza, na Rádio USP (São Paulo, 2019) / Marco Aurelio Olimpio

 

 

Coleções

Dono de um acervo composto por mais de dez mil discos, divididos por seções e em ordem alfabética, selecionava de lá as faixas de suas aulas e programa semanal de rádio, a Playlist do Zuza, uma parceria da Rádio USP com a Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles. Sua coleção de credenciais de festivais era um passeio à parte pela história dos festivais brasileiros e internacionais.

O antes e depois de Zuza Homem de Mello nas pesquisas sobre a música popular brasileira reverbera, também, em sua atuação como produtor e diretor artístico, em diálogo com variados estilos e gerações.

Nos anos 1970, em São Paulo, dirigiu a série de shows O Fino da Música, no Anhembi. Na década seguinte foi a vez do Festival de Verão do Guarujá e a produção da turnê de Milton Nascimento no Japão (1988). Nos anos 1990, dirigiu para o Sesc São Paulo o show Lupicínio às Pampas, em homenagem ao compositor gaúcho; o premiado Raros e Inéditos, com músicas dos anos 1920 e 1930; a série Ouvindo Estrelas, com depoimentos ao vivo e shows de vários artistas; e os dez espetáculos comemorativos dos 50 anos da entidade.

Com o pé no jazz, fez parte da equipe do Festival de Jazz de São Paulo (1978 e 1980), foi curador do Free Jazz Festival (1985) e do Tim Festival (2006 a 2009), e das edições do BMW Jazz Festival (2011, 2012, 2013 e 2014).

 

De olho no novo

Gravado em 2019, Copacabana – Um Mergulho nos Amores Fracassados (Selo Sesc) é uma saborosa trilha sonora para o livro Copacabana (leia O lugar do samba-canção), lançado em 2017 por Zuza (Edições Sesc São Paulo, Editora 34).

O disco traz 14 gravações inéditas de memoráveis sambas-canção, sob a direção artística de Zuza. O intérprete Ayrton Montarroyos, que participou do projeto, lembra de “senti-lo como um garoto”, pelo frescor demonstrado por ele. “Era um garoto vislumbrando tudo o que poderia acontecer amanhã”, explica. De acordo com o cantor, os assuntos sérios eram tratados de maneira leve, sem perder a qualidade e o rigor do trabalho. Conviver com Zuza Homem de Mello, seja lendo seus livros, assistindo a suas aulas, ouvindo a sua playlist no rádio, não abarcavam apenas o status profissional, mas ativavam a paixão. Uma afável conversa que abraçava a todos. “Estava sempre aberto para o novo, com os ouvidos atentos”, comenta o artista. Montarroyos, hoje com 25 anos, sempre foi ouvinte assíduo de Zuza. Ele diz: “Nunca enviei meu disco, não tinha seu endereço ou qualquer contato.

E, mesmo assim, ele tinha ouvido o álbum de um garoto de 21 anos de idade, que tinha saído lá de Recife para gravar em São Paulo. Como ele podia ser tão atento a tudo? Como podia despender tamanha atenção com os iniciantes, apostando nos seus trabalhos? Acho que Tom Jobim revelou a resposta desse enigma quando disse: ‘o sujeito pra saber precisa amar’. Zuza amava, Zuza sabia”.

 

 

Para ler, ver e ouvir

UM ROTEIRO PARA AGUÇAR OS SENTIDOS

Online

Zuza foi presença em lives, formato explorado ao máximo neste ano. Em parceria com o jornalista Lucas Nobile esteve em Muito Prazer, Meu Primeiro Disco, série digital do Sesc Pinheiros, em trabalho de revisão das estreias fonográficas de nomes importantes da música. Os encontros foram mediados pela jornalista Adriana Couto e apresentaram papos surpreendentes com Gilberto Gil e Chico Buarque. https://sesc.digital/colecao/54742/muito-prazer-meu-primeiro-disco

 

 

A Era dos Festivais – Uma Parábola (2003, Editora 34)

Livro clássico e recheado de detalhes sobre a cena artística da chamada Era dos Festivais no Brasil, durante os anos 1960. Testemunha ocular desse período, Zuza fez um relato que se desdobrou no documentário Uma Noite em 67 (2010) – de Renato Calil e Ricardo Terra –, do qual ele foi consultor e intermediário na obtenção de entrevistas preciosas, como a de Roberto Carlos.

 

Zuza, Homem do Jazz (2018)

O documentário de Janaina Dalri apresenta curiosidades, ao mesmo tempo que costura a vida do crítico de jazz e sua vivência nova-iorquina no fim dos anos 1950. https://www.looke.com.br/filmes/zuza-homem-de-jazz

 

Playlist do Zuza

Ao fim de cada edição do programa de rádio, Zuza agradecia ao prezado ouvinte que estava do outro lado, em sua conexão radiofônica, sem limites de gêneros e estilos. O programa foi ao ar, pela primeira vez, em 2017, abordando a diversidade da música popular e seu conhecimento acumulado em mais de 60 anos de atividade profissional. https://radiobatuta.com.br/categoria-programa/playlist-do-zuza/

 

 

Registro de Zuza Homem de Mello conduzindo bate-papos com artistas da música brasileira pelo projeto Ouvindo Estrelas, realizado no Sesc Pompeia (São Paulo, 1994) / Marco Aurelio Olimpio

 

O lugar do samba-canção

Está logo ali, em Copacabana

A trajetória do samba-canção, de 1929 a 1958, é estampada nas páginas de Copacabana (Edições Sesc/Editora 34, 2017), de Zuza Homem de Mello. Imerso nas pesquisas desse tema por uma década, o autor faz uma análise de ponta a ponta do gênero musical, desde a origem, marcada pelo lançamento de Linda Flor, gravada por Aracy Cortes, até o florescimento da bossa nova.

A obra é permeada por estrelas como Ary Barroso, Cartola, Dorival Caymmi e Lupicínio Rodrigues. De acordo com o livro, o samba-canção foi o gênero de maior sucesso da nossa música, entre os anos de 1946 e 1958, guardando em sua musicalidade a leveza e o bom humor.

Para ler com os ouvidos, Copacabana – Um Mergulho nos Amores Fracassados (Selo Sesc, 2020) reserva a sinestesia perfeita entre tom e história, sob a batuta de Zuza e a participação dos intérpretes Luciana Alves, Zé Luiz Mazziotti, Anna Setton, Ayrton Montarroyos, Dóris Monteiro, Toninho Ferragutti e Edy Star. Entre as músicas, Copacabana (Braguinha e Alberto Ribeiro) e Sábado em Copacabana (Dorival Caymmi). “Amigo e parceiro do Sesc São Paulo, Zuza era uma verdadeira enciclopédia da música brasileira e esteve conosco em diversas ações. Nos deixa um generoso legado por sua paixão e devoção à música brasileira e internacional”, afirma Danilo Santos de Miranda, Diretor do Sesc São Paulo.

 

 

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