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Amizade ideal

Bel Pedrosa
Bel Pedrosa

UM DOS MAIS RENOMADOS PENSADORES BRASILEIROS COMENTA A LIGAÇÃO INTELECTUAL DO CRÍTICO LITERÁRIO ANTONIO CANDIDO COM O SOCIÓLOGO FLORESTAN FERNANDES

 

O crítico Roberto Schwarz é autor de alguns dos mais belos e contundentes ensaios sobre a literatura brasileira, entre eles, clássicos sobre a obra de Machado de Assis. Pensador renomado, estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), fez o mestrado na Universidade de Yale (EUA) e o doutorado na Universidade de Paris III. Até que, na década de 1960, como professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP), encontrou este que seria um importante mentor para seu trabalho, o professor e crítico literário Antonio Candido (1918-2017). Candido, por sua vez, foi grande amigo de um dos principais nomes da sociologia no país, Florestan Fernandes (1920-1995), cujo centenário foi celebrado neste ano. Em homenagem a esta amizade, Schwarz participou de uma conversa após a leitura da peça Vicente e Antonio – A História de uma Amizade: Florestan Fernandes e Antonio Candido (assista aqui), do dramaturgo Oswaldo Mendes, realizada pelo Sesc São Paulo, Casa do Saber e portal de notícias UOL, acompanhado do psicanalista Christian Dunker (leia Encontros da Revista E). A seguir, Roberto Schwarz descreve essa amizade versada em ideias e ideais.

 

Ode à diferença

A amizade entre Florestan Fernandes e Antonio Candido foi fraterna, intensa e muito especial. Nada indicava que eles fossem ser grandes amigos, pois eram pessoas muito diferentes, pela origem social, pelo temperamento e pelo estilo social. Florestan Fernandes era filho de mãe solteira, empregada doméstica, analfabeta, da qual ele tinha um admirável orgulho. Já Antonio Candido era filho de uma senhora casadíssima, mulher de um médico muito culto e bem-sucedido, numa casa em que se falava francês fluentemente. Florestan era impetuoso, conflitivo, um gigante para trabalhar, com natureza de líder e gostando de aparecer na primeira fila dos combates de que participava. Candido, pelo contrário, era o equilíbrio em pessoa. Ameno, também um gigante para trabalhar, mas não gostando de aparecer e preferindo dar bons conselhos na sombra.

 

NADA INDICAVA QUE ELES FOSSEM SER GRANDES AMIGOS,

POIS ERAM PESSOAS MUITO DIFERENTES, PELA ORIGEM SOCIAL,

PELO TEMPERAMENTO E PELO ESTILO

 

Papel de vanguarda

Pois bem, esses homens, que em princípio não deveriam simpatizar, foram amicíssimos e companheiros durante a vida inteira, sob o signo do socialismo, da lealdade aos pobres do Brasil e da confiança no papel de vanguarda, de regeneração do trabalho universitário. Sem desconhecer os imponderáveis das simpatias pessoais, era uma aliança política, que unia o ímpeto popular progressista, sequioso de luzes e de transformação social, e a convicção socialista de uma pequena fração da elite brasileira, também sequiosa de transformação social, pois tinha certeza do caráter inaceitável das relações sociais em nossa sociedade.

 

Lugar de transformação

Um dos traços surpreendentes da correspondência [cartas trocadas desde 1942 até a morte de Florestan Fernandes, na década de 1990] entre os dois é a extraordinária valorização da universidade como elemento de transformação social. Eu sou da geração seguinte, 20 anos mais novo, e na minha geração já se era muito cético em relação à universidade. A palavra acadêmico era usada por eles em um sentido muito positivo, o que para a geração seguinte já não era atual.

Essa perspectiva da geração seguinte foi modificada, por sua vez. A valorização da universidade por eles é um assunto. Florestan opina que a universidade é o lugar onde se pode transformar a sociedade e buscar horizontes novos.

 

Cientistas

Tanto Florestan quanto Antonio Candido ambicionavam ser intelectuais e cientistas, de certo modo, de ponta. Eles participavam da discussão mundial, ambicionando uma contribuição de primeira plana para o trabalho brasileiro. Florestan tinha, claramente, a ideia de fazer, a propósito dos negros, uma pesquisa que fosse de mesmo padrão que as grandes pesquisas empíricas norte-americanas. E Antonio Candido, na sua maneira de trabalhar, tinha presente o que se fazia de mais avançado em reflexão social sobre a literatura. Foi um momento em que a universidade brasileira aspirava fortemente à desprovincialização, sem perder contato com a problemática nacional.

 

Momentos históricos

É bom também situar essa amizade do Florestan e do Antonio Candido em seu momento histórico. Eles estavam na universidade lutando contra a ditadura Vargas, lutando pela democracia, em um momento que tinha havido uma espécie de aliança entre o capitalismo liberal anglo-saxônico e a União Soviética para enfrentar o nazifascismo. Então houve um momento no pós-guerra que foi de grande otimismo, parecia que o mundo tomaria um rumo mais decente. Esse otimismo foi derrotado pela evolução recente das coisas, e o problema da feição que a tecnologia tomou hoje tem a ver com essa mudança. Quem sabe numa situação um pouco mais favorável essa tecnologia ganhe, também, um sentido mais favorável.

 

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