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Saberes na aldeia e na escola

Imagens: Editoria de Arte
Imagens: Editoria de Arte

Uma vivência escolar específica, intercultural, diferenciada e bilíngue é direito dos povos indígenas, conforme define a legislação nacional que fundamenta a Educação Escolar Indígena. Seguindo o regime de colaboração, posto pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a coordenação nacional das políticas de Educação Escolar Indígena é de competência do Ministério da Educação (MEC), cabendo aos estados e municípios a execução para a garantia deste direito. Na sala de aula, a criança, o adolescente e o jovem indígena devem ter seus costumes e saberes respeitados. Um espaço onde poderão aprender sobre uma cultura tão distinta, a fim de desenvolverem ferramentas de interação e, principalmente, de negociação para preservação dos direitos de suas comunidades. No entanto, ainda são inúmeros os desafios enfrentados neste âmbito. Em relação ao povo Guarani, a escola tem respeitado saberes ancestrais?

“Ouço muitos dizerem que a escola serve para nos tornar alguém na vida, muito pelo contrário, já somos alguém na vida, temos que usar as ferramentas escolares para nos tornarmos guerreiros”, enfatiza a filósofa e professora Cristine Takuá, que ministra aulas de Filosofia, Sociologia, História e Geografia na Escola Estadual Indígena Xeru Ba’e Kua-I, na divisa entre os municípios de Bertioga e São Sebastião, no estado de São Paulo. Será que a Educação Escolar Indígena dialoga, de fato, com a cultura de diferentes comunidades?

“A educação diferenciada garante ao povo indígena a aprendizagem de sua cultura, importante para a preservação, e também a aprendizagem dos saberes do Juruá (palavra que significa não indígena em Guarani), para sua própria defesa e sobrevivência, pois no mundo atual, infelizmente, o indígena não consegue mais ser totalmente tradicional por causa da imposição e do impacto da cidade e da tecnologia dentro das aldeias”, observa Antony Guarani, professor da Língua Guarani na Escola de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e guardião da Floresta da Terra Indígena do Jaraguá (SP). Neste Em Pauta, os professores Antony Guarani e Cristine Takuá tecem suas reflexões sobre o tema.

 

Assista ao debate do Sesc Ideias Povos Indígenas – um debate na

construção da identidade indígena e os direitos diferenciados

 

 

Educação escolar indígena Guarani Mbya

ANTONY GUARANI

A educação escolar indígena tem sido discutida há muito tempo no estado de São Paulo e em outros estados também por se tratar de um povo diferente e com métodos de aprendizagem diferentes, dentre eles os costumes, as crenças e o modo de viver. Neste contexto, se discute a educação diferenciada nas escolas estaduais indígenas.

A educação diferenciada garante ao povo indígena a aprendizagem de sua cultura, importante para a preservação, e também a aprendizagem dos saberes do Juruá (palavra que significa não indígena em Guarani), para sua própria defesa e sobrevivência, pois no mundo atual, infelizmente, o indígena não consegue mais ser totalmente tradicional por causa da imposição e do impacto da cidade e da tecnologia dentro das aldeias.

Atualmente o modelo de educação escolar indígena tem outras duas matérias dentro da metodologia escolar, pois além de ter as matérias seguindo o currículo escolar comum, como Matemática, Ciências, Geografia etc., também há a matéria do ensino da língua materna e da cultura étnica em algumas escolas estaduais indígenas. Só que essas matérias necessitavam de professores indígenas. Com isso, desde 2005, o MEC, junto à Funai (Fundação Nacional do Índio), tem um programa nacional de magistério indígena que visa formar professores indígenas para atuarem em suas aldeias e também ajudar na produção de material pedagógico em línguas maternas de cada povo.

 

Pluralidade

É importante lembrar que cada povo indígena é diferente do outro em costumes, crenças e modos de vida. Por isso a importância de ter dentro das escolas indígenas a matéria da língua materna e da cultura étnica.

Na matéria “língua materna” é ensinada a língua e a escrita de cada povo. No caso do Guarani Mbya, nas escolas estaduais indígenas de São Paulo. É importante essas matérias estarem presentes nas salas de aula, pois isso ajuda na preservação da língua e de sua cultura, ajudando assim na própria identidade indígena.

Na matéria “cultura étnica” fala-se de vários outros povos, culturas, crenças e modos de vida para crianças e adolescentes nas escolas indígenas, ajudando na conscientização de crianças e jovens de que existem povos e etnias diferentes no território nacional brasileiro, evitando assim o preconceito entre povos indígenas. São essas duas matérias que ajudam na luta e na preservação de uma cultura, de saberes ancestrais, da língua e principalmente de sua identidade cultural e indígena.

 

Dois mundos

Os jovens indígenas atualmente vivem esses dois mundos. O mundo do Juruá e o seu mundo de nascença e crescimento, que é a sua cultura e sua etnia indígena. Por isso a escola deve estar preparada para receber e ajudar no equilíbrio entre a sabedoria indígena e a sabedoria não indígena, para não se perder uma cultura e ao mesmo tempo haver uma imersão cuidadosa do jovem indígena na sabedoria tecnológica do não indígena.

Ainda existem muitos desafios para a educação escolar indígena, porém a luta é grande para conseguir uma estrutura de ensino próprio que respeite os modos de aprendizagem e cultura de cada povo.

É muito importante o aprendizado, primeiramente, de sua cultura, costumes e crenças para as crianças e adolescentes indígenas em um contexto atual de impacto sociocultural e econômico imposto dentro das aldeias, principalmente as aldeias indígenas da capital paulista, como a Terra Indígena Jaraguá, na Zona Oeste, e a Terra Indígena Tenondê Porã, no extremo da Zona Sul da capital. 

Nessas aldeias são ensinados valores culturais, incluindo mitologias e cosmologia Guarani Mbya, e também o plantio tradicional e comidas tradicionais, desenvolvendo atividades e jogos culturais, fortalecendo assim a cultura e os costumes dentro das escolas.

 

EXISTEM AVANÇOS NO ENSINO ESCOLAR INDÍGENA,

MAS AINDA LONGE DO IDEAL PARA ATENDER

ÀS NECESSIDADES DENTRO DAS ALDEIAS

 

 

Desafios

Existem muitos desafios para o ensino escolar indígena, dentre eles a questão da alimentação escolar, que não é adaptada ao cardápio e dieta que os Guaranis seguem dependendo da idade e da fase da vida, o que deveria ser levado em consideração. Ainda podemos observar que a escola também é utilizada como uma forma de política integracionista dentro das aldeias indígenas. Ainda é preciso debater essa questão na educação escolar indígena, de como pode ser o ensino ideal, que faça com que a criança indígena possa ir para a escola e não aprender somente o que o estado impõe.

Infelizmente o nível de analfabetismo nas aldeias é muito grande, devido ao fato de as escolas não terem capacidade para receber os alunos do 1° ao 5° ano com professores não indígenas e, logicamente, as crianças não entenderem a lição e a língua portuguesa falada pelos professores não indígenas dentro das salas de aula. Só em algumas aldeias há professores indígenas ministrando aulas para crianças deste período de ensino.

Por outro lado, existem avanços no ensino escolar indígena, mas ainda longe do ideal para atender às necessidades dentro das aldeias, já que, dependendo da fase da vida, o Guarani Mbya segue determinadas obrigações familiares ou em comunidade. Ainda por cima, a criança Guarani Mbya, quando vai para a escola nos primeiros anos letivos, tem uma dificuldade muito grande para compreender e se acostumar com o ambiente escolar, já que as crianças vivem livres na aldeia, brincam no rio e na mata. Por isso, quando as crianças vão para escola, elas não conseguem ficar cinco horas fechadas dentro da sala de aula.

Outra demanda que também existe nas escolas é quando a jovem Guarani mulher entra na fase da adolescência e, com isso, na menarca. Nessa fase da vida da menina Guarani, ela passa por um rito de passagem na qual antigamente ficava cerca de 3 meses a 5 meses em resguardo, mas, hoje em dia, com a preocupação dos pais com as faltas que a menina pode levar na escola, só é feito o resguardo de 15 a 20 dias. Vale ressaltar que nesta fase a menina também não deve consumir nenhum tipo de carne ou laticínios.

Somente os meninos conseguem se salvar, pois os meninos Guarani não têm esse período de resguardo, mas seguem a mesma dieta como as meninas, pondo assim um desafio de entendimento para os órgãos de educação e ensino. Não deveria ser um desafio, já que a própria Constituição Federal, nos artigos 231 e 232, diz para respeitar os modos de vida dos povos originários e reconhecer também a autonomia de cada povo para com decisões que abrangem saúde, educação e organização interna nas comunidades indígenas.

 

ANTONY GUARANI é professor da Língua Guarani na Escola de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Direito, é escritor e guardião da Floresta da Terra Indígena do Jaraguá (SP).

 

 

Teko Porã, o sistema milenar educativo de equilíbrio

CRISTINE TAKUÁ

O atual modelo de sociedade em que estamos inseridos nos faz esquecer de quem realmente somos, não deixando olhar para o fundo de nossa essência, para conseguir atravessar as barreiras do desconhecido. Junto a isso, a imensa fonte de informações na qual estamos mergulhados, os maus hábitos alimentares, o egoísmo, o desamor e a falta de bom senso estão nos conduzindo para uma vida insana.

Sabemos que atualmente vivemos uma emergente e complexa crise social, política e ambiental, a qual nos leva a questionar e a repensar o ser e o saber, resultando numa conscientização de que temos que reaprender a pensar e agir no mundo. No entanto, o ser humano, numa incessante busca de compreensão, dominação, ordenação e controle sobre o meio e sobre si mesmo, acabou por desestruturar a natureza e acelerar o seu desequilíbrio.

 

Lições da natureza

De modo geral, a civilização ocidental está percebendo que uma quantidade de pressupostos que a sustentaram por muito tempo está levando a uma situação totalmente insustentável do ponto de vista da sobrevivência da espécie, notadamente no que diz respeito às condições ambientais. Uma das principais coisas que as sociedades indígenas têm e que torna seu pensamento valioso é justamente uma outra maneira de conceber a relação entre a sociedade e a natureza, entre os humanos e os não humanos, uma outra forma de conceber a relação entre a humanidade e o restante do cosmos.

A existência de um equilíbrio, no qual todos os seres interagem e se respeitam, não só os mais velhos, os anciãos e pajés, mas todos – até os jovens e crianças. Para os povos indígenas, a natureza é quem dá sentido à vida. Tudo em seu equilíbrio.

Como uma imensa teia, na qual tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida.

O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está pra acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que com sua delicadeza e sabedoria vão nos guiando e nos ensinando como bem viver – que em guarani se fala: Teko Porã, um conceito filosófico, político, social e espiritual que expressa exatamente essa grande teia, onde vivemos em equilíbrio, respeito e harmonia. É a representação da boa maneira de ser e de viver.

Porém, toda essa complexa crise de relações que os humanos hoje estão vivendo nada mais é do que reflexos de séculos de uma caminhada malfeita, pois antes quase todos viviam na natureza, com a natureza e da natureza. E, hoje, as pessoas se desinseriram do meio, usam e abusam da natureza para sobreviver. Sem pensar que fazemos parte dessa imensa teia, que não deve e não pode ser separada.

 

HÁ UMA PONTE EXISTENTE ENTRE O CONHECIMENTO VISÍVEL,

LETRADO, E O SABER QUE HABITA NAS PROFUNDIDADES DOS CANTOS,

DANÇAS, TRANÇADOS E EM TODA A COMPLEXIDADE

DA ARTE E ESPIRITUALIDADE DOS POVOS NATIVOS

 

 

Das aldeias para as cidades

Para o povo guarani, não há tekó se não tiver tekoá; ou seja, não tem modo de ser sem o lugar do ser. Sendo assim, é preciso ter terra, com floresta, com água e com toda a sua vida incluída para poder viver sua cultura e para ser guarani.

Vivenciar o sentido pleno do bem viver nos dias de hoje pode, muitas vezes, parecer algo contraditório, devido a diversas situações que nos afastam dele e nos levam para o Tekó Vai, o mal viver, que está presente no consumo desenfreado e na esquisita mania de servidão voluntária em que muitos vivem escravos de seus quereres, está presente nas guerras, no individualismo, na poluição dos rios, no empobrecimento, na depressão, enfim em diversas situações que colocam o ser humano numa incessante busca de viver melhor, na ilusão de que os bens materiais, o conforto, o luxo irá lhe trazer a delicada e profunda satisfação da experiência que penetra no próprio ser e no estar quando se alcança o bem viver nas ações diárias da vida.

Mas é possível aplicar esse sistema, esse hábito indígena do bem viver nas cidades, justamente como pressuposto para revolucionar, metamorfosear as relações, a própria democracia, que está despedaçada em meio a tantos abusos e egocentrismos. Por meio desse amplo conceito, uma vez praticado, podemos equilibrar todo o caótico cenário de violências, poluição, intolerância religiosa que pairam sobre as cidades.

Os povos indígenas, de um modo geral, resistem há séculos contra os mais diversos abusos e agressões cometidos contra eles, contra suas culturas, mas, mesmo assim, ainda hoje praticam o respeito, a tolerância, a igualdade, a participação política, a paciência com os mais velhos e com as crianças, enfim, praticam o bem viver em suas múltiplas faces.

 

Práticas educativas

Penso que ainda há tempo de reconstruirmos e de nos harmonizarmos. Há alguns caminhos, como as práticas educativas do Tekó Porã. Mas as sociedades urbanas devem repensar as formas de educar suas crianças. Valorizando o potencial que jaz dentro de cada uma, e principalmente fazendo uma escola que seja útil para a vida das pessoas.

Ouço muitos dizerem que a escola serve para nos tornar alguém na vida, muito pelo contrário, já somos alguém na vida; temos que usar das ferramentas escolares para nos tornarmos guerreiros. Guerreiros esses que possam compreender o complexo sentido do bem viver e transformar o mundo à sua volta.

Penso que, assim como os grãos, as pessoas precisam conhecer sua origem, a fala que habita em cada semente. Todo ser que consegue escutar a voz do silêncio, ouve as suas verdades. Há uma ponte existente entre o conhecimento visível, letrado, e o saber que habita nas profundidades dos cantos, danças, trançados e em toda a complexidade da arte e espiritualidade dos povos nativos. No entanto, é necessário romper as barreiras da aparência, sempre penso nisso. Porque, enquanto alguns ficarem se baseando e presos no “não ser” das coisas (aparência), jamais chegarão à dimensão maior do verdadeiro conhecimento, da sabedoria dos que sabem e conseguem sentir sua própria sombra!

 

CRISTINE TAKUÁ é professora indígena, formada em Filosofia na Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) em Marília. Ministra aulas de Filosofia, Sociologia, História e Geografia na Escola Estadual Indígena Xeru Ba’e Kua-I, pertencente à Terra Indígena Ribeirão Silveira, na divisa entre os municípios de Bertioga e São Sebastião, no estado de São Paulo.

 

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