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Essência caipira

Foto: Adriana Vichi
Foto: Adriana Vichi

Chef e pesquisador fala sobre os bastidores de uma culinária da Paulistânia

Marcelo Corrêa Bastos apreendeu o mundo pela boca. Passou da infância ao começo da juventude em Londrina (PR) envolvido por cheiros e sabores de inúmeras receitas preparadas pela mãe e pela avó materna. E, quando havia uma viagem de família, seu mundo ganhava ingredientes. Um novo destino incluiria restaurantes assinalados no mapa pelos pais. “Fui um glutão desde pequeno por causa deste ambiente em que vivi”, brinca. Movido por essa paixão, trocou o Direito pela Gastronomia pouco tempo depois de chegar à capital paulista. Trabalhou em pequenos restaurantes até abrir o primeiro negócio em 2012, o Jiquitaia, dedicado à culinária brasileira. No ano passado, inaugurou o segundo: Vista, na cobertura do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Também em 2018, em parceria com o sociólogo, escritor e pesquisador Carlos Alberto Dória – de quem Marcelo já era assíduo leitor –, lançou A Culinária Caipira da Paulistânia: A História e as Receitas de um Modo Antigo de Comer (Três Estrelas). Um livro ou, como descreveu Dória, “um exercício histórico, literário e culinário com o objetivo de colocar ao alcance do leitor, tanto quanto possível, a inteireza dessa cozinha que teima em desaparecer”.

Urbano da roça

Carlos Alberto Dória é um pensador da alimentação e da cozinha brasileira, de quem eu era muito fã. Um dia, ele foi ao Jiquitaia, conversamos e viramos amigos. Até que ele chegou para mim e falou: “Quero escrever um livro sobre cozinha caipira e gostaria que você escrevesse comigo”. Na hora eu topei, só que comecei a pensar: “Não sou caipira”. Sou de Londrina e vivi a maior parte da vida no centro da cidade. Então, acho que eu tinha uma vida mais urbana. Eu imaginava que o caipira era só rural. Mas o que é caipira? E quando comecei a pesquisar, me identifiquei. Até que um dia, ao ler Cornélio Pires [folclorista e importante etnógrafo da cultura caipira; 1884-1958], notei que ele descreve a dieta do caipira em Conversas ao Pé-do-Fogo. Lendo aquela lista de ingredientes, pratos e preparos, vi que tinha muito do que eu estava fazendo no Jiquitaia. Era a identidade dos pratos que comi a vida inteira. Foi aí que percebi que eu também era caipira. Por outras coisas também – pelo modo de vida, pelos valores.

À Paulistânia

No livro, a Paulistânia refere-se à região [abrange principalmente partes de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina] onde viveu o caipira. Um povo que viveu à margem dos ciclos econômicos. Pessoas que plantavam o que comiam e caçavam, que desenvolveram uma cultura própria. Quando se começa a expansão da criação de gado nessa região, não há mais o mato para caçar. Darcy Ribeiro fala em O Povo Brasileiro: o aumento das pastagens vai diminuindo a cultura do caipira. Ao contrário do resto do Brasil, o caipira descende dos índios que tinham o milho e não a mandioca como alimento principal. Só que ele não é mais índio, ele não é branco, ele não é negro, ele é caipira. Então, essa é uma cozinha que parte do milho e da carne de caça. Mesmo quando há criação de porco e galinha, estes são para o momento em que não se tem a carne de caça. Tem uma passagem do Cornélio Pires em que ele fala da horta do caipira, de suas abóboras, abobrinhas, batata-doce... Ele também fala dos angus, do feijão engrossado. O que as pessoas pensam ser cozinha mineira é a cozinha caipira.

Eu tinha essa ideia de fazer a cozinha da minha casa, a cozinha de São Paulo, a cozinha do Brasil

 

Experimentar e aprender

Comecei cursando Engenharia, depois larguei para fazer Jornalismo, mas acabei me formando em Direito. Me formei e vim para São Paulo. Durante toda a minha juventude, eu cozinhava bastante em casa. Reunia os amigos, fazia churrasco. Em São Paulo, comecei a buscar lugares para comer. Todo dia tinha novidade. Não tinha tanta grana, então, eu ia aos lugares mais simples. Cada dia me interessava mais pela gastronomia e comecei a ler a respeito, como os livros de Carlos Alberto Dória sobre formas de pensar o Brasil pela alimentação. E eu não tinha o entusiasmo para seguir uma carreira de juiz, promotor etc. Passei um ano fazendo entrevistas, dinâmicas de grupo em empresas grandes, imitando bicho, imitando fruta para avaliarem minha vocação ou não para a vaga do emprego. Até que um dia cansei disso tudo. Imprimi meu currículo e saí distribuindo pelos restaurantes. Entreguei em vários até chegar em um cujo nome era Vira-Lata. O dono falou que estava faltando um ajudante e comecei na mesma noite. Fiquei lá, recheando canapés. Apesar de toda diferença social e cultural com meus colegas de trabalho novo, me senti muito à vontade.

 

 

Minha cozinha

Eu faço cozinha brasileira. Antes de ser Jiquitaia, meu restaurante seria Brasa Bistrô. Desisti da Brasa porque haveria muito custo de mão de obra. Lidar com fogo todo dia é custoso também. Então, fui simplificando e cheguei ao Jiquitaia. Partindo deste cardápio comercial paulista no almoço, a ideia era fazer algo espelhado nisso, e de noite fazer comida de outras regiões como pato no tucupi, moqueca baiana, fazer pesquisas e trazer coisas diferentes. As pessoas conhecem menos ingredientes brasileiros que italianos. Se você pega um cardápio em italiano, você não tem dúvidas do que pedir. Mas quando pega o cardápio do Jiquitaia e lê, por exemplo, “arroz de suã” [arroz com a carne do lombo do porco], ninguém entende nada. Quando eu abri o Jiquitaia havia esse movimento grande de valorização da cozinha brasileira. E eu tinha essa ideia de fazer a cozinha da minha casa, a cozinha de São Paulo, a cozinha do Brasil.

 

Marcelo Corrêa Bastos esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 10 de outubro de 2019.

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