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Educar para transformar

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FILÓSOFO E PEDAGOGO, MOACIR GADOTTI FALA SOBRE OS DESAFIOS NO TRABALHO DE FORMAÇÃO DA CIDADANIA


Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra, o professor Moacir Gadotti tem papel significativo no debate sobre a educação no Brasil, área à qual se dedica há mais de 57 anos. Filósofo, pedagogo, presidente de Honra do Instituto
Paulo Freire (IPF)
e autor do recém-lançado A Escola dos Meus Sonhos (IPF), Gadotti acredita que a mudança social depende do grau de conhecimento da população sobre sua realidade. Diante de um expressivo quadro de evasão escolar – um em cada quatro brasileiros entre 15 e 17 anos abandona a escola anualmente, segundo levantamento do Banco Mundial realizado em 2018 –, o pesquisador joga luz sobre questões essenciais a serem debatidas na atualidade. Desde a necessidade de repensarmos didáticas nas escolas até a importância de uma nova dinâmica entre mestres e aprendizes.
Gadotti também participou da terceira edição do ciclo Educar Hoje, uma ação do Sesc São Paulo que neste ano trouxe como tema A Importância da Escuta e foi realizado de 21 de agosto a 23 de outubro em 30 unidades do Sesc São Paulo.

Vagas abertas em áreas de tecnologia não são preenchidas. No entanto, há milhões de desempregados no Brasil. Podemos fazer um paralelo dessa realidade com o cenário do começo da Revolução Industrial, quando faltavam profissionais para certas vagas enquanto outras profissões se tornaram obsoletas?

Para responder, precisamos retomar a história do projeto liberal nos anos 1920 e 1930. Os [pensadores, educadores e escritores] liberais, entre eles Fernando Azevedo, e socialistas, como Anísio Teixeira, Pascoal Leme, Cecília Meireles, lançaram um manifesto chamado “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”. Era o momento da passagem do modelo agroexportador para o modelo urbano industrial de desenvolvimento no Brasil. E o que esses pioneiros da educação nova queriam? O manifesto começa assim: A reconstrução nacional passa pela reconstrução educacional. Um grande incentivo à formação para o trabalho, porque a educação é extremamente elitista. Só frequentava as escolas – eram poucas as escolas públicas que existiam – uma elite. As escolas públicas eram da elite, assim como os grandes colégios religiosos. O ensino era voltado para a cultura individual, e não para o trabalho. Era voltado para a formação do dirigente da sociedade, do político, do administrador, do médico, do advogado. Um ensino que exigia uma formação geral e não uma formação para aquela sociedade que estava nascendo: uma sociedade industrial e urbana.


Então, naquele momento, já havia uma dissociação entre educação e trabalho?

Acho que, naquele momento, pioneiros como Fernando Azevedo – que cheguei a conhecer – tinham uma visão de país desenvolvido e, para isso, ele deveria incorporar as grandes massas para uma revolução educacional. Mas essa revolução
não aconteceu até hoje. Houve uma mudança em 1942 no ensino médio para a qualificação. Em 1972 tentou-se fazer com que todas as escolas fossem profissionalizantes, mas foi um fracasso total. Já em 2003, houve um aumento das escolas técnicas federais. O que quero dizer é que essa relação entre escola e trabalho – porque o trabalho é um princípio educativo e fundamental – não foi equacionada até hoje. Então, hoje, temos 81 milhões de brasileiros e de brasileiras acima dos 18 anos que não completaram o ensino médio. Aí se incluem de 13 a 14 milhões de analfabetos, chamados analfabetos iletrados, segundo terminologia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e uns 40 milhões de analfabetos
funcionais – pessoas que concluíram o ensino fundamental, mas não sabem ler e escrever. Nós não conseguimos implementar uma política educacional que fizesse com que a mão de obra especializada e a mão de obra técnica não precisasse ter nível superior, mas que fosse adequada.


Quais motivos dificultaram essa implementação?

O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) me convidou para conhecer as escolas no Japão, há mais ou menos 20 anos, quando o país entrou como membro do BID. Foi uma surpresa para mim. Na apresentação introdutória que os japoneses faziam nas escolas, eles me apresentavam como Moacir Gadotti do Instituto Paulo Freire e falavam sobre ações
importantes no Brasil no âmbito da educação, e sua influência no mundo. Mas eles destacaram duas: uma delas foi o Sistema Paulo Freire, que nasceu durante o período em que Paulo Freire trabalhou no Sesi em Recife, Rio Grande do Norte e Paraíba. A outra foi o Sistema S. Essa foi a primeira vez que ouvi isso. Porque eles tinham lido o livro Educação e Atualidade Brasileira, de Paulo Freire, do ano de 1959, em que ele fala muito sobre a ideia de desenvolvimento, da formação do trabalho, de uma formação consciente.

Em que contexto Paulo Freire desenvolveu essa ideia?

No Sesi, ele teve a oportunidade de encontrar os trabalhadores de uma classe média baixa que tinham seus filhos nas escolas. Paulo começou a dialogar com eles e fazer círculos de pais e mestres, quando disse: “Não dá para a gente separar a educação infantil da educação de adultos, porque o adulto tem uma influência muito forte. Se ele é analfabeto, em casa, a criança não vai ter nele um espelho”. Então, acho que faltou enfrentar, desde logo, a formação de um sistema nacional [de educação] que começa na educação infantil. Paulo é conhecido como professor de educação de adultos, mas ele não dissociava uma da outra. Então, há uma história por trás do nosso atraso educacional, um imenso atraso. Nós não temos um sistema educacional. Estamos fragmentados. E uma das causas do nosso atraso é a falta de um sistema nacional de educação. Isso não sou eu que digo, houve duas conferências nacionais de educação com milhares de participantes em 2010 e 2014, em que se apontou como causa central a falta de um sistema articulado de educação. Acredito que esse atraso educacional não será superado enquanto o direito à educação não for para todos. A começar pelos que estão excluídos
do sistema, porque são milhões os que optam por, ou precisam – por causa de um trabalho –, abandonar a escola.

Foto: Adriana Vichi

 

Qual seria o caminho para outro cenário?

Nós temos que unir a formação geral com a formação técnica. Há um prefácio no livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, escrito em 1968, que tem por título: “Aprenda a dizer a sua palavra”, escrito pelo professor Ernani Maria Fiori (1914-1985). Quando Paulo recebeu de Fiori o prefácio, ele disse que o texto valia mais que o livro por sintetizar o que é educar. Educar é aprender a dizer a sua palavra, constituir-se como sujeito para construir a sua própria história. Tive a felicidade de estudar com Jean Piaget [biólogo, psicólogo e epistemólogo suíço, considerado um dos mais importantes pensadores do século 20] e numa das aulas ele disse: “Você só sabe realmente aquilo que você construiu autonomamente”. Também disse: “O cérebro aprende de dentro para fora”. Então, o professor tem que estimular esse cérebro, e acreditar naquilo que ele faz.

Que mudanças precisariam ser adotadas nas escolas?

A didática precisa caminhar nesse sentido de empoderar o aluno. Por isso, o professor também tem que ser um leitor, estar atualizado, dominar as tecnologias de hoje. Ele não precisa dominar tudo, são milhões de aplicativos, mas precisa pelo menos estar aberto a aprender junto com o aluno e o aluno aprender junto com ele. O que significa que o professor aprende ao ensinar e o aluno ensina ao aprender, como dizia Paulo Freire. Há uma troca. Além de se perguntar o que ele precisa saber para ensinar, perguntar-se como ele deve ser para ensinar. E falta essa formação. O aluno precisa sentir que é ele quem vai construir sua própria história, que ele vai se assumir como sujeito da sua história. Acredito que o ser humano tenha essa capacidade. Ou seja, a escola é, sobretudo, um conjunto de relações sociais humanas. Não é para competir um com o outro, mas para cooperar um com o outro. Paulo definiu a escola numa entrevista duas semanas antes de falecer, em abril de
1997. Quando lhe perguntaram com que escola ele sonhava, disse depois de um bom tempo: “É uma escola de companheirismo, que divide o pão, em que as pessoas se amem. Uma escola de comunidade, que vive a experiência da democracia”. Essa é uma definição de escola na visão de Paulo Freire. Nela há o sujeito, a comunidade, que precisa participar dela, bem como os pais. Uma escola que também seja capaz de construir um país, um desenvolvimento sustentável.

Há pelo menos 20 anos se fala em robotização e outras tecnologias que tornarão muitas profissões obsoletas. O que estamos fazendo a respeito?

Acho que não foi equacionado o problema da relação entre escola e trabalho no Brasil. A educação continuou elitista e tecnicista. E o trabalho não é só uma questão técnica, mas uma questão de formação geral. Então, essa formação geral é importante para o trabalho, para que você consiga ser flexível às mudanças, para criar competências e para se adequar
a novos trabalhos. A base é a leitura, a escrita, a matemática, o português. Se você não sabe ler, escrever e não tem uma base sólida de matemática, você tem dificuldades. Acho que houve uma tentativa com as escolas técnicas federais, que deveriam ter continuado porque têm uma formação geral e técnica boa, bem como laboratórios. Mas não adianta decretar que todas as escolas sejam profissionalizantes se elas não têm equipamento para isso.

Por que ainda se privilegia o ensino superior em detrimento de outros cursos de menor duração, mas de caráter profissionalizante?

A educação é cultura e a nossa cultura é elitista. ‘Formar doutor’, como disse Mário de Andrade, ainda continua à mesa. O gargalo está no ensino médio. Basicamente, todos que concluem o ensino médio vão para o ensino superior. Então, o ensino médio acaba sendo propedêutico [que visa dar ao aluno a formação geral e básica para que possa ingressar num curso superior]. Ele não tem a função de formar o trabalhador que poderia ganhar tanto quanto um professor universitário. O ensino médio está em crise e é nele que devemos mexer nesse sentido para a formação posterior.


Para que ao final do ensino médio o estudante tenha uma profissão?

As profissões, atualmente, se reciclam rapidamente, mas o ensino médio precisa também promover essa formação geral. O trabalhador tem que ser formado tecnicamente com bons laboratórios, usando as últimas invenções da ciência, incorporando
todas essas tecnologias. A escola sempre foi alheia e eu diria que até se contrapôs à tecnologia. Sou professor há 57 anos e continuo dando cursos a distância, mas com muito mais alunos do que tive antes, como um curso para 47 mil alunos. Lancei esse curso pensando que não haveria tantos alunos e fiquei assustado com esse número. Foi algo extraordinário. Na década de 1950-1960, lá no começo, na escola secundária, eu queria aprender a datilografar, e um professor me falou que eu não precisava usar a máquina de escrever porque eu ia acabar com minha caligrafia. Depois veio a calculadora e a professora de matemática falava para eu não usar a calculadora porque tinha que exercitar a memória. Depois veio a tevê, o vídeo... Tudo demorou até ser incorporado. Paulo Freire usava o rádio em 1962. E a máquina de slides, que ele importou da Polônia porque não tinha ninguém que fabricasse no Brasil. Ele usava a tecnologia. Ele sempre uniu a ideia de tecnologia com o humanismo.


Mesmo quando o celular está presente em sala de aula?

Quantas vezes um aluno não acessou o aparelho por debaixo da mesa? Hoje a Unesco tem diretrizes políticas para a aprendizagem móvel, mostrando que o celular é fundamental. E como poderíamos usá-lo para a alfabetização? Estamos pesquisando muito sobre isso. O WhatsApp, por exemplo, é muito usado no ensino superior, porque nele formam-se grupos de discussão. Então, nós demoramos muito para incorporar as tecnologias. Ainda não compreendemos a questão de colocar a tecnologia a serviço da educação. Por isso, os professores precisam ser formados para o uso da tecnologia. Nos Estados Unidos, faz parte da cultura querer produzir suas coisas, fazê-las – learn by doing [aprenda fazendo, em português], dizia um
dos três maiores educadores de todos os tempos, John Dewey (1859-1952). Aprender pela experiência, pelo fazer. Mas nós não tivemos essa experiência na cultura brasileira. Por isso admiro muito os pioneiros [da Educação Nova], porque eles tinham o projeto de uma sociedade aberta e de um desenvolvimento naquela época de transformação de sociedade rural e
oligárquica para uma sociedade democrática.

A educação a distância poderia, no caso brasileiro, ser um avanço para formação de novos profissionais?

Para cursos livres, ela funciona muito bem. Agora, fazer tudo a distância? Acho que a educação a distância precisa ser mais exigente. Precisa haver uma devolutiva, uma comunicação ativa. É preciso que a educação a distância avance para ser aplicada no ensino superior – para alguns cursos funciona melhor que para outros –, mas ela não deve substituir a relação professor-aluno. Piaget reclamava dos americanos que faziam experiências por vídeos e não presencialmente, pelas próprias
mãos dos alunos. Ele dizia que o olhar e a presença são insubstituíveis. Mas acho que a educação a distância tem que ser reinventada. Da mesma forma, a educação presencial tem que ser inventada no sentido de mais autonomia para o aluno,
e que o professor seja um organizador da aprendizagem e não um lecionador. Porque é isso que afasta muita gente [da escola]. Afasta porque o professor vai ensinar “despejando” matéria, quando, na verdade, ele tem que atender às dificuldades dos alunos, como um organizador da aprendizagem do aluno.

Tirar os alunos da sala de aula para que façam atividades de biologia, física ou português, por exemplo, em espaços públicos, colabora para o aprendizado?

Essa é a noção de aula invertida, que é justamente a sala de aula sair, mesmo que o professor não esteja lá fazendo a experiência, ele está presente na orientação. Essa educação híbrida, como também se chama – meio presencial, meio a distância –, é uma experiência válida porque o aluno quer participar. Ainda acredito naquilo que Piaget dizia: “Você só
sabe realmente aquilo que aprendeu por vontade própria, por você”. Por que estudar para vestibular só para “passar” e, depois de um ano, não se lembrar de mais nada do que usou na prova? Incorporar o que aprendeu é outra coisa. Por exemplo, em Genebra, nós tínhamos um curso de epistemologia genética, cátedra de Piaget. Ele nos fez uma pergunta: “Por
que alguém aprende?”. Nós nos dividimos em três grupos. O primeiro grupo disse que só se aprende quando se sente prazer em aprender. Ou seja, a escola tem que ser divertida e propor ações fluidas. O segundo disse que só se aprende quando se deseja – ou seja, se o desejo é grande, o ensino não precisa ser, necessariamente, prazeroso. Já o terceiro grupo disse que só se aprende quando se tem necessidade, quer dizer, nem por prazer, nem por desejo, mas por necessidade. Ficamos convencidos das três explicações.

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