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Enquanto corria a barca
O ano de 1972 foi emblemático. Acontecimentos nacionais e internacionais, como os Jogos Olímpicos de Munique, a Guerrilha do Araguaia, a inauguração do primeiro trecho da Rodovia Transamazônica, o lançamento do primeiro disco solo de Lô Borges (o “disco do tênis”), a chegada de Emerson Fittipaldi ao topo como o primeiro piloto brasileiro vencedor de um mundial de Fórmula 1 e a transmissão em cores invadindo as televisões brasileiras, ajudaram a moldar a feição de uma época conturbada, e também muito criativa, no Brasil e no mundo.
Baby Consuelo, Luiz Galvão, Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor e Pepeu Gomes, os Novos Baianos, também tiveram sua parcela nesse caldeirão cultural que se formava, mas em forma de vinil. O lançamento naquele ano do disco Acabou Chorare pela Som Livre criou pontes para novos tempos que então se anunciavam. “A obra-prima dos Novos Baianos nasceu do choque entre o grupo e João Gilberto (...). Por algum motivo inexplicável, João se identificou com a turma de hippies e, logo, começou a frequentar o, digamos, ‘alojamento’ onde eles moravam [no Rio de Janeiro, no início dos anos 1970]”, explica o jornalista Marcus Preto no texto em que classificou o álbum como o primeiro na lista dos 100 melhores discos brasileiros, feita pela Revista Rolling Stone Brasil, em 2007. “De cara, apresentou ao grupo um samba que, mal sabiam eles, se tornaria a peça-chave da transformação sonora que viria em 1972.” Outras lendas e fatos envolvendo a trupe são base do espetáculo Novos Baianos, em cartaz no Sesc Vila Mariana até 15 de dezembro (leia boxe Pra cantar junto).
Moraes Moreira, Maria (Buchinha), Galvão, Natalia, Dadi, Charles Negrita, Marilhinha, Gato Felix, Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil), Paulinho Boca de Cantor, Riroca (hoje Sara Shiva), Pepeu Gomes e Bola Moraes (da esq. para a dir.). Foto de 1973.
Na boa onda
Depois de flertar com o rock and roll, incursão que gerou o disco É Ferro na Boneca, de 1970, gravado em São Paulo, os Novos Baianos dissolveram hierarquias, acoplando a filosofia hippie e a vivência coletiva na criação de Acabou Chorare, que nasceu em ares cariocas e da fusão de gêneros, entre eles o samba e o rock, e tonalidades de choro. Nesse tempo, a banda dividia a mesma casa, frequentada por célebres e anônimos. Entre as estrelas, Caetano Veloso, Gilberto Gil e João Gilberto.
Quem fez a aproximação com o pai da bossa nova foi o letrista Luiz Galvão, pois João era seu conhecido soteropolitano. João mostrou para a banda o samba de Assis Valente, Brasil Pandeiro, composto na década de 1940 especialmente para Carmen Miranda e que virou uma das faixas de maior sucesso do álbum de 1972, acompanhado da orientação: “Voltem-se para dentro de vocês mesmos”.
O sítio em que a banda foi morar, entre 1971 e 1975, no bairro de Jacarepaguá, tinha, logo na entrada, uma bandeira do Brasil com a frase “cantinho do vovô”, substituindo ordem e progresso. João Gilberto ofereceu também a pérola que se tornou o título do disco. No livro Novos Baianos: A História do Grupo Que Mudou a MPB (Lazuli, 2014), o autor, Luiz Galvão, relata o episódio que deu origem à expressão que mistura português e espanhol. Galvão conta que, ainda criança, a filha de João, Bebel Gilberto, ao levar um tombo, disparou a frase “acabou chorare” ao se ver cercada pela família, que estava preocupada em checar se a menina havia se machucado.
Nasceu clássico?
Sobre o legado desse álbum para a música brasileira, os guitarristas e produtores musicais Davi Moraes, filho de Moraes Moreira, e Pedro Baby, filho de Baby Consuelo e Pepeu Gomes, reiteram a genialidade e beleza que o transformaram em clássico.
Além disso, os produtores contam ser evidente para eles, desde a infância, que os pais alegravam a vida com muita facilidade tocando e fazendo música, mas só mais tarde, quando já estavam com seus 17 anos, tiveram a dimensão desse trabalho.
No meio deles
A figura mítica e cativante reluzia na única mulher do grupo, a cantora Baby Consuelo, que na década de 1990 passou a ser chamada Baby do Brasil. Sua voz triunfa cadenciada nos pouco mais de três minutos da canção Tinindo Trincando, terceira faixa de Acabou Chorare. Outro destaque vai para a guitarra de Pepeu. Os acordes abraçam o canto de Baby, revelando a cumplicidade entre os dois.
Em entrevista à Revista E, em 2013, Baby comparou a experiência com os Novos Baianos (o grupo se separou em 1979, mas voltou a reunir-se em outras ocasiões) a um laboratório, onde podiam vivenciar “melodias, arranjos e acordes de manhã ao anoitecer”. Sobre a representatividade feminina do grupo, revelou que ser a única mulher entre os quatro possibilitou “uma visão nova sobre a mulher e uma forma nova de convivência”. No disco, as canções A Menina Dança e Tinindo Trincando foram escritas por Galvão para Baby.
O resto é história
O álbum assume uma sonoridade encorpada e única, sem se parecer com nada feito anteriormente pelas bandas brasileiras. Ao contrário, foi um marco, justamente, por renovar timbres e letras, sem imposição de estilos nem sotaques musicais.
Para a jornalista Ana de Oliveira, organizadora do livro Acabou Chorare (Iyá Omin, 2017), deve-se aos Novos Baianos o feito de trazer à baila uma proposta modernizadora em termos sonoros, artísticos, poéticos e comportamentais. “Numa conjuntura repressora como a do Brasil naquele momento, tornaram-se símbolo, mais do que de resistência, de afirmação da própria existência”, esclarece.
O som da banda tinha uma potencialidade instrumental diversa: bateria precisa e descontraída, e a guitarra de Pepeu revelando um traço autoral que serviu de influência aos instrumentistas brasileiros. Ritmo e atitude em um país cerceado pela censura e por um regime antidemocrático. E, assim, o público foi apresentado a uma brasilidade nada clichê que ganhou as rádios de norte a sul: “Juntos, afirmaram uma nova forma de misturar, antropofagicamente, elementos brasileiros e estrangeiros, samba e rock, canção e música instrumental”, resume Ana.
Ao pé do ouvido
Um guia faixa a faixa para curtir o álbum Acabou Chorare
Brasil Pandeiro
A música passa uma falsa sensação de conforto, tanto que, quando fala “invadiu-me a casa”, remete às buscas do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) por artistas como Caetano e Gil (“respirei eu fundo/foi-se tudo pra escanteio”). Essa sensação de incômodo (“fiz zum zum e pronto”) refere-se à perseguição, mas também mostra empatia pelos perseguidos. Esteticamente, liga a característica de “cantar baixinho” do padrinho João Gilberto ao tropicalismo, que resistia firme e forte mesmo após o Ato Institucional nº 5 (AI-5).
Preta Pretinha
Luiz Galvão – a história é sabida –, escreveu a letra após uma frustração amorosa. Musicada, porém, a composição não evoca tristeza. Esse trunfo vai para Moraes Moreira e Pepeu Gomes. Os dois exploraram o alegre contraste dos instrumentos de cordas na música, com harmonia estruturada em uns poucos acordes.
Tinindo Trincando
A guitarra de Pepeu Gomes se destaca na combinação dos instrumentos e no triângulo ritmado tocado por Baby Consuelo.
Swing de Campo Grande
O largo de Campo Grande, em Salvador, é um ponto fundamental, ladeado pelo Teatro Castro Alves e encravado entre Pelourinho e Barra. A canção fundada no samba do recôncavo nos lembra que os Novos Baianos eram, afinal, baianos. Ela é uma ode ao swing, ao jogo de cadeiras necessário para triunfar no Campo Grande e fazer um Campo Grande em todo o mundo.
Acabou Chorare
Sem adornos ou manobras arriscadas, Moraes Moreira presta homenagem à escola de violão popular brasileira de Garoto, Baden Powell, Jorge Ben e João Gilberto. No canto, ele brinca com onomatopeias e assonâncias ao retratar uma bucólica manhã no sítio de Jacarepaguá. Uma canção de ninar.
Mistério do Planeta
Com uma letra poderosa, põe o indivíduo em um espectro místico, sempre ancorado no fato de “ser brasileiro”. Simples, sofisticada, um convite à melhoria da autoestima.
A Menina Dança
Luz na voz de Baby, que brilha com a interpretação cadenciada na melodia construída entre o samba e o rock. A música foi regravada por Marisa Monte no disco Barulhinho Bom, de 1996.
Besta É Tu
Uma das mais populares do disco, está no imaginário pela sua letra filosófica, referências ao futebol e o samba esperto: “Se não há outro mundo/ Por que não viver?”, diz a letra de Pepeu, Moraes e Galvão.
Um Bilhete pra Didi
Trata-se de um bilhete sem palavras, sendo a única faixa instrumental do disco. Uma mistura aguda de choro, rock e forró para fazer jus à modernidade sonora dos Novos Baianos.
*Fontes: Felipe Maia, jornalista e pesquisador em etnomusicologia pela Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais (École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS), em Paris, e Tiago Ferreira, do site Na Mira do Groove.
Pra cantar junto
Alquimia da banda é revista em musical
Há mais de cinco anos estava na agulha dos amigos e parceiros Lúcio Mauro Filho e Otávio Muller o projeto do musical Novos Baianos (foto), que ganha vida no Teatro Antunes Filho, no Sesc Vila Mariana, até 15 de dezembro, de quinta a sábado, às 21h, e, aos domingos, às 18h.
Embora o texto seja de Lúcio Mauro Filho e a direção de Muller, o fluir dos ensaios com os atores Ravel Andrade, Beiço, Clara Buarque, Barbara Ferr, João Vitor Nascimento, Gustavo Pereira, João Moreira, Julia Mestre, Miguel Freitas, Mariana Jascalevich, Filipe Pascual e Felipe El e a troca com a equipe fez com que o texto inicial fosse sendo modificado para o resultado que se vê no palco. A cereja do bolo é a direção musical dos guitarristas e produtores musicais Davi Moraes e Pedro Baby. O primeiro é filho de Moraes Moreira e o segundo, de Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil) e Pepeu Gomes.
A revolução provocada pela banda vai além da música, tocando em padrões de comportamento e artísticos que são vistos pela nova geração e revivida por quem os acompanhou naquela época.
Também neste mês, o poeta, cantor e escritor Moraes Moreira relembra as histórias dos Novos Baianos e conta sobre seu trabalho mais recente, Ser-Tão, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc. Ele participa da programação Em Primeira Pessoa, no dia 13, às 19h30 (inscrições pela internet ou nas unidades do Sesc).
Já no primeiro trimestre de 2020, será lançado o livro digital Acabou Chorare, segundo título da coleção Discos da Música Brasileira, das Edições Sesc SP. Organizada pelo crítico musical Lauro Lisboa Garcia, o livro traz entrevistas realizadas pelo jornalista Marcio Gaspar com músicos e outros artistas que formaram a grande comunidade dos Novos Baianos.
“EU ME LEMBRO QUE O SUCESSO NA MINHA CASA FOI IMEDIATO QUANDO SAIU ACABOU CHORARE. A FAMÍLIA VIAJAVA NO VERÃO E ESSA ERA A TRILHA SONORA, FOI A TRILHA SONORA DA MINHA INFÂNCIA. DEPOIS, À MEDIDA QUE EU COMECEI A FAZER MÚSICA, OS NOVOS BAIANOS SEMPRE FORAM DETERMINANTES NO MEU TRABALHO. ISSO ATÉ HOJE, QUANDO DADI E PEDRO BABY TOCAM COMIGO.”
Marisa Monte, em entrevista a Marcio Gaspar, em 16/10/2018, para o livro digital Acabou Chorare, que as Edições Sesc São Paulo lançam no primeiro trimestre de 2020.
Foto: André Wanderley