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Ficção
O Clonado

E já o ano de dois mil e vinte, quando os bólidos atravessavam os céus de uma cidade modelo, e os indivíduos deslizavam sobre pistas rolantes, que o futuro nos irá dizer se haverá de existir tal organização em qualquer terra habitada coerentemente submetida às novas regras ditadas pela ordem suprema da biologia progressista: uma história que podemos contar, pois que ainda não lá chegamos: a de um desvio de conduta, a de uma presa que se desgarrou do rebanho, ou ainda, a de uma cobaia que fora premeditadamente sequestrada de um laboratório.

Áli era um jovem senhor solitário. Já na casa dos setenta e cinco anos, e ainda não fizera qualquer contato de acasalação. Sabia que teria pela frente muitos anos de existência, e que esta, porém, poderia estender-se até a sua vontade. Entretanto, todos os seres fêmeas que atravessaram a sua vida nenhum sequer foi de seu inteiro agrado. Ele amava mais o seu espelho, a sua imagem refletida, do que qualquer outra criatura. E de sua rotina não poderia esperar muito além do que ir e vir à Divisão dos Indivíduos Programados, onde trabalhava corno inspetor da sessão de formulação de novos elementos. Logo após o trabalho passava as tardes sem qualquer companhia, ainda que tivesse todo o acesso às redes empenhadas em fazer novos contatos de amizade. E, enquanto todos os seres normais e adaptados às normas da civilização se interagiam com naturalidade através das imensas cadeias que reuniam milhões de pessoas (que, mesmo sem a interação fisica, trocavam idéias, divertiam-se a valer através dos vôos cibernéticos), ele regressava para o seu compacto e cuidava de sua coleção preciosa, pela qual tanto zelava. Talvez a única coleção de computadores antigos de todo o planeta. E, Áli, disso sabia, assim sendo, guardava-a como se fosse relíquia do passado. E o era, sem sombra de dúvidas. Ninguém sabia ao certo onde Áli conseguia tais modelos, pois que todos os que não mais serviam, os que saíam de linha, eram queimados, em uma imensa lixeira, e nenhum circuito sequer era aproveitado.

Vestia-se estranhamente, roupas que decerto deveriam ter pertencido aos seus tataravós. Calças e camisas largas de uma coloração que tangia para o desbotado. E os sapatos! Ah, os sapatos eram excessivamente rígidos, feitos de um antigo material chamado couro. Trajado de maneira bizarra ia trabalhar. E não havia imortal que não o olhasse de esguelha, a cochichar dele para os outros. Mas, nada o importava, a não ser a si próprio. Além da coleção de computadores velhos possuía outra, mais antiga e peculiar: a de espelhos. Sim, seu compacto era repleto de espelhos que cobriam as poucas paredes e pequeno teto, onde residia. E era através deles que o seu amor fluía como um rio de águas límpidas, refletoras. E via-se inteiramente despido, entregando-se às suas formas, seus músculos e contornos, sua pelugem de macho com o sexo que se escondia entre a mata virgem, e que ele intimamente desejava. Jamais conhecera outro ser assim tão belo! Se algum igual surgisse, estaria realizada a sua vida. Acasalaria-se tão imediatamente num ímpeto carnal, saído do fim de suas vísceras.

Mirava-se, mirava-se durante horas, imaginando alguém de idênticas características. Olhos cor de mel, nariz aquilino, lábios finos e rosto quadricular. Cabelos vastos castanhos. Jovem. Era jovem, com tantos anos de vida por escolher. Viveria de maneira saudável ainda por uns quarenta anos e, se quisesse perpetuar-se, bastaria que deixasse seu corpo hirto e perfeito nas câmaras de congelamento por tempo indeterminado.

Naquela civilização, onde todos de um modo geral encontravam um par para a acasalação, que era realizada de forma indireta sem o contato físico que, antigamente, por volta do fim do milênio, disseminara uma praga fatal que por pouco não elimina toda a humanidade. Tudo agora era mais limpo. Sem troca de bactérias ou vírus de difícil eliminação. E, as pessoas relacionavam-se através da grande tela, que comandava o mundo como um todo. O mundo ficara reduzido a uma só nação. Uma só bandeira, somente um idioma predominante. Cada indivíduo vivia em seu próprio compacto, e apenas durante o expediente de trabalho interagia com outros indivíduos. Era uma sociedade perfeita. Sem a violência de outrora, sem vícios, sem conflitos, seria a exagerada ambição que fizera de muitos países um amontoado de cinzas. O homem descobrira que para bem viver necessitava de pouco. Um compacto para morar, um trabalho escolhido não por ele, mas segundo suas aptidões examinadas pela rede central, e nada mais. Viaturas não mais havia, mas pistas rolantes para o transporte. Locais para reunião e degustação aos poucos foram eliminados. Bem como as casas de vício e diversão. Naqueles tempos a atmosfera era limpa como a dos campos rarefeitos de outrora. Não havia ruídos. Os marcadores registravam parcos decibéis. Era terminantemente proibido gritar ou gargalhar acima do permitido. Os presídios, que antes abarrotavam indivíduos meliantes, agora serviam para alojar os seres do segundo segmento. Os subgrupos. Os subelementos. A sub-raça. Os clones. Sim, todos os seres clonados. Elaborados em laboratórios com a simples finalidade de servir à humanidade que, acima de tudo, queria manter-se saudável. Inteira. Sem quaisquer mazelas. Com todos os membros e órgãos funcionando nas condições ideais para uma existência longeva e sem distúrbios.

A humanidade, portanto, contava com dois grupos distintos. Aqueles que nasciam do acasalamento natural in vitro. Fruto de uma combinação de características organizadas segundo as leis vigentes da Grande Rede Interativa. E a outra: a dos elementos construídos a partir de uma célula retirada de um ser do primeiro grupo. E era fato que ficavam encarcerados à disposição dos outros, para doarem seus órgãos aos principais, à raça que contava com a primazia de viver na mais absoluta e enlouquecedora paz.

Viviam separados dos demais. Habitavam cubículos, quase celas, como se fossem animais domésticos. Vez por outra tomavam sol em um grande pátio comum a todos. Tais carceragens, portanto, espalhavam-se pelo planeta e a segurança dessas centrais de clones era a principal força do Estado. Parte da população já havia sido clonada. Uma convocação formal feita pela Grande Rede Interativa obrigava o cidadão do novo milênio a deixar-se clonar. Fácil de concluir que para cada duas pessoas havia um clone correspondente, bem como para os animais, os que restaram logo após a extinção em massa de quase todas as espécimes. E, assim, levavam-se os dias do novo tempo. Silenciosos e organizados. Nunca houve época mais feliz que essa. Mas, perguntou-me se esse sempre não fora o sonho dos Homens? Um mundo sem choques? A temperança reinando qual um deus absoluto. E a subserviência conduzindo os novos passos deste mundo. Contudo, quem regia magnânimo esse quintal planetário? De onde chegavam as leis, as boas regras a serem cumpridas? Ninguém sabia dizer. Apenas, sujeitavam-se à vida que lhes cabia sem nada mais questionar.

Áli possuía reminiscências que não sabia de onde vinham. Se, de um tempo perdido no espaço, que ninguém jamais escutava falar; tempo esse apagado da lembrança de todos. Poeira jogada no cosmo, tal qual uma rotineira cremação. Ou simplesmente os irreversíveis erros que cometera a humanidade, e que não poderiam ser repetidos em uma civilização mais do que perfeita. Fato é que Áli parecia alimentar sentimentos arcaicos, não mais vivenciados na civilização vigente. Ao contrário de seus pares, sentia desejos estranhos, inexplicáveis. Salivava quando tinha fome. E os tabletes vitaminosos não o satisfaziam como aos demais. Entretanto, não sabia exatamente o que ansiava ingerir. Sua memória surpreendente guardava o sabor de uma torta de maçã, ou de um suculento bife acebolado, bem como a diversão de um parque iluminado repleto de jogos rotativos, ou sons que se combinavam harmonicamente instigando o corpo a se movimentar na cadência de um ritmo contagiante.

Ele queria falar. Falar com alguém. Sem a irritante presença de uma tela a separar os homens e as mulheres. Comunicar-se diretamente, pessoalmente. Tocar o outro como tocava a si mesmo. Por que não poderia assim fazê-lo? Perguntava-se. Questionava o mundo em que vivia. Não poderia saber se outros também agiam da mesma forma, pois todos os contatos eram realizados indiretamente. E quem haveria de reclamar de uma situação cômoda e limpa? Deveras. Jamais alguém teria a ousadia de modificar algo pré-estabelecido. A punição para tal ato era apenas uma: passar para o outro lado, aquele sem regalias, o de uma existência voltada apenas para a serventia. O Clonado.

Certo dia, quando Áli trabalhava em sua função de separar as turmas do Clonado por categorias de doadores, avistou, ao longe, na outra fila de triagem, uma dessas criaturas resignadas. Chamou-lhe imediatamente a atenção, tal era a semelhança consigo mesmo. Os mesmos olhos cor de mel, os lábios finos e os cabelos castanhos, em um rosto que parecia ser o seu. O caminhar idêntico às mãos compridas e as pernas longilíneas, torneadas. Estava nu. Todos os clones viviam nus, para melhor identificação de suas partes úteis. E o que sentiu não soube explicar a si próprio. Um irresistível desejo de se aproximar da criatura e dizer-lhe algo. Tocar em seu corpo. Encostar seus lábios nos dele. Interagir-se sim, porém fisicamente, profundamente. Não sabia como poderia fazê-lo, já que se tratava de um subelemento. Mas tão igual a ele, que era como se encontrasse a si mesmo. E mirou-o o quanto pode, o quanto o tempo permitiu fazê-lo, até o fim de seu expediente de trabalho. Partiu com o pensamento longe, enquanto deixava-se levar pelas pistas de rolamento até a porta de seu compacto.

Não conseguia pegar no sono, tal era excitação de seus pensamentos. Olhou-se no espelho, e pareceu ver o seu idêntico. E, de tanto pensar, teve a certeza de que aquela era a sua cópia. O ser que tanto buscou durante sua vida, e que desejava para todo sempre, até a extinção de todas as suas células. Tratava-se, portanto, dele mesmo, melhor dizendo de seu clone.

Na tenra infância, aos quinze anos de idade, fora convocado pela divisão maior de seu Estado. A divisão de clonagem para fins benéficos à humanidade. E, foi naquele momento, que sua cópia fora produzida. De tão jovem que era, não possuía lembranças detalhadas. Apenas o ato de ser conduzido por adultos às salas brancas e frias de uma construção térrea e de dimensões a perder de vista. Logo, era simples deduzir. Seu clone contava com a idade de sessenta anos. Quinze anos mais jovem do que ele; estava na flor da idade, entretanto, essa diferença era imperceptível, devido aos números complexos votamínicos que faziam do envelhecimento um processo lento e administrante.

Vestiu-se como de hábito. Estranhamente aos olhos de seu mundo. A manhã estava como sempre estivera desde que fora inventado o controlador meteorológico. Um sol tênue resplandecia tímido. As chuvas estavam programadas para a semana seguinte, portanto, Áli não precisou levar o seu protetor de precipitações climáticas. Contudo, mal se concentrou em sua função, tanto que procurava discretamente o seu igual. Clone por clone, nas filas que se sucediam, ele observava. Quieto. Em silêncio. Guardando para si a sua maior descoberta. Haveria de reencontrá-lo. Se ignorava, como todos, qual o par de escalamento que o havia concebido, agora descobrira seu maior consagüíneo. Seu tudo. Seu inteiro. Seu amor perdido no tempo. Entretanto, ele não surgia em meio às outras figuras resignadas. De súbito, teve um pensamento horripilante, aterrador. E se o seu amor fora levado para uma das salas de mutilação? Se alguma de suas partes fora retirada para complementar a saúde do grupo prioritário? Por instantes sentiu pavor, e um vento inexistente o fez gelar, a pressão subiu-lhe às temporãs e o coração disparou qual um animal amedrontado. Pressentiu os piores acontecimentos, ao mesmo tempo que todas as suas esperanças pareciam fugir para uma terra cada vez mais distante. Não, aquilo tudo não poderia estar acontecendo. Exatamente com ele, com o seu clone, que em algum momento haveria de aparecer em alguma fila que ainda não fora convocada. Para bem da verdade, jamais fora a favor da organização vigente. Em segredo, revoltava-se. Clones eram humanos, uma vez que possuíam reações, atitudes e necessidades idênticas às do primeiro grupo. Ninguém tinha o direito de torná-los objetos de doação, assim como em tempos idos cortavam as partes de um bovino para alimentação humana.

Adentrou seu compacto. Estava visivelmente abatido. A decepção tomara conta de si, a ponto de se esquecer de cumprir as tarefas de higiene e nutrição. Atirou-se sobre a pequena cama e adormeceu como um ato de fuga, de não querer pensar ou até mesmo sofrer. E quem sofria naqueles tempos perfeitos? Talvez alguns poucos desgarrados do rebanho da plena felicidade. Chorar era pois um ato arcaico, repudiado pela moderna forma de agir. Já não havia mais motivos para tal, uma vez que não existiam problemas, conflitos afetivos, perplexidade. Ninguém se espantava com mais nada. Nem sustos, nem dramas, tampouco dúvidas. Viviam no maior estado de equilíbrio físico e mental que a humanidade jamais atingira em toda a sua intrincada história. A família, célula mater de tempos passados, fora eliminada. Sem pais, sem filhos, os indivíduos viviam na mais pacífica solidão. Para o bem da civilização que se interagia tranqüilamente sob um sistema indireto, e também para evitar alterações que viessem macular o equilíbrio tão arduamente adquirido. Ficava, portanto, estabelecido que a convivência em grupo era pois maléfica à paz. Juntos, os seres humanos se chocam em conflitos de importância menor, mas que alteram a ordem e o cumprimento das normas.

Um novo dia de claridade uniforme. Absolutamente idêntico ao da véspera. As marés, sem ventos, sem chuvas, sem frio ou calor. Como se o mundo inteiro coubesse dentro de uma cúpula. Os cães não latiam, as aves não cantavam, sequer as árvores gemiam. Áli, em sua função rotineira, atento aos mínimos movimentos do Clonado, revelava-se cada vez mais um exemplo em seu trabalho. Entretanto, nas entrelinhas de seus olhos, lia-se uma mensagem secreta que humano algum decifraria. Buscava, buscava, revirando o globo ocular qual uma esfera numa órbita enlouquecida. E, enquanto isso, as filas se sucediam organizadas, silenciosas, rumo ao patamar da classificação quando ambos os sexos desfilavam para que se fizesse a análise minuciosa de seus corpos. O que não significava que todos que por lá passavam estivessem intactos em sua integridade física. Já alguns nem possuíam certos membros ou órgãos que não os impediam ao menos de desfilar para uma nova triagem.

Por onde andará o meu querido? - perguntava-se. Áli estava decidido a permanecer no Clonado até a aparição de sua cópia. Conhecia bastante bem as imediações do grande prédio, portanto, saberia escolher um local onde pudesse esconder-se sem correr o risco de ser surpreendido. Igualmente ciente das conseqüências de seu ato impetuoso, ele já planejava uma fuga sorrateira ao esconderijo estratégico que, ao mesmo tempo que o acobertaria, permitia uma visão total dos acontecimentos noturnos.

Uma legião de seres enfileirados subia resignada a escadaria que levava até a plataforma. Já quase fim do expediente. Os funcionários preparavam-se para a saída quando uma nova fila adentrou a sala de tiragem. Não seriam muitos, talvez cerca de vinte e cinco. Áli virou-se atentamente para o grupo que saía do portão escuro-divisor das áreas de clausura. Porém, estava mais fácil identificá-los. Áli a todos observava. Algo lhe dizia que alguma coisa de muito importante estava por acontecer, quando, de repente, avistou sua própria imagem no final da fila vagarosa . Era ele. Enfim o reencontrara. Haveria de inventar uma maneira de raptá-lo. Levá-lo consigo. Seus passos dirigiam-se resolutos ao seu encontro. Haveria de ser tão rápido quanto imperceptível. Qualquer vacilo de sua parte e estaria condenado a viver o resto de sua vida naquele mundo de subserviência absoluta. Estava perto, jamais estivera tão perto de sua alma gêmea. De seu eu. Posicionou-se então frente a ele, como jamais havia ficado diante de outro ser, quando observou seu rosto, e entristeceu de compaixão. O olhar era vazio e fundo. Sua face sem olhos. No lugar desses, duas cavernas profundas que nada distinguiam. Ele estava cego. Mais do que isso. Sem olhos. "Eles" o haviam pois arrancado para o transplantarem quem sabe em qual criatura. E, por quê? Teria o receptor mais direito à visão do que ele? Penalizou-se de si mesmo. Amaldiçoou os novos tempos de paz em que vivia. Melhor seria a guerra! A luta por melhores dias, pelo direito de escolha. Mas, sequer a natureza escolhia suas mutações. Sequer os acontecimentos transcorriam segundo as leis flexíveis do acaso.

Chamavam-no de vigésimo sexto. Sexo masculino. Cabelos castanhos, lábios finos, mãos e pernas longilíneas. Seguia resignado caminhando atrás de seu clone, seu único amor. E os olhos... Ah! Os olhos. Em seu lugar, duas cascatas de sangue escorrendo pela face.

Denise Emmer é escritora, autora de O Inventor de Enigmas e O Insólito Festim, entre outros.