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Empatia em tempos de intolerância

A capacidade de ver o mundo com os olhos de outras pessoas tornou-se um desafio diário na sociedade contemporânea. Isso porque esse “eu” que subjuga a opinião do outro multiplica-se em redes sociais, na esfera política, em ambientes de trabalho e, até mesmo, em casa. “O psicólogo americano Marshall Rosenberg, que sistematizou a Comunicação Não Violenta (CNV), dizia que empatia não é concordar com o ponto de vista e as necessidades dos outros, mas, sim, reconhecê-lo. Tentar compreender o que faz com o que as pessoas falem, pensem e ajam da maneira como o fazem”, aponta a especialista em CNV Carolina Nalon. “Sendo assim, a empatia – palavra que vem do grego empatheia e quer dizer “entrar no sentimento” – é a enzima que possibilita o diálogo”, conclui.

O fato é que “o egocentrismo que vigora nas épocas moderna e contemporânea tornou-se um modo de pensar e uma prática tão assimilada que a comunhão entre os seres humanos está até mesmo para além da utopia”, observa o filósofo Franklin Leopoldo e Silva, professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Com isso, até mesmo figuras como “Gandhi e Martin Luther King são vistas mais como milagres do que como aqueles que teriam assumido o dever de lutar pelo outro”, complementa.
Afinal de contas, como promover escuta e diálogo nos dias de hoje?
E de que forma a empatia pode se sobrepor à intolerância? Carolina Nalon e  Franklin Leopoldo e Silva refletem sobre essas questões.


 

Cultura do diálogo

Carolina Nalon


Você consegue se imaginar sendo empático com alguém de quem discorda, não gosta ou não confia? Fiz essa pergunta a várias pessoas e a grande maioria respondeu que não. O motivo? Elas sentem que ter empatia é o mesmo que concordar com a opinião do outro.

Essa é uma visão equivocada. O psicólogo americano Marshall Rosenberg, que sistematizou a Comunicação Não Violenta, dizia que empatia não é concordar com o ponto de vista e as necessidades dos outros, mas, sim, reconhecê-los.

Costumo dizer que empatia é a enzima que possibilita o diálogo. Se eu tento entender de onde vem o seu ponto de vista, já estamos a um passo de sairmos do jogo de ataques pessoais para conseguir discutir o que precisa ser discutido. Todo mundo com quem converso, independentemente da opinião, diz que se sente muito cansado ao discutir questões polêmicas com quem pensa muito diferente. Isso porque as pessoas têm a sensação de que os outros não as escutam nem compreendem.

Empatia: modo de usar

Se empatia não é concordar com o que o outro diz, o que é então ser empático em uma discussão? A ideia aqui é se colocar no lugar do outro para enxergar o mundo da forma como o outro enxerga, o que é diferente de se colocar no lugar do outro para enxergar o mundo dele da maneira que você enxerga.

Marshall Rosenberg dizia que existem várias possibilidades de tentar fazer esse exercício de imaginação empática, como fazer boas perguntas: “O que será que o outro observou/viu/experienciou que o faz ter essa opinião?”, “O que será que o outro sentiu que o faz pensar assim?”, “Quais são as necessidades do outro para que ele pense/diga/faça isso?” e “Qual pedido será que existe por trás da fala dessa pessoa?”.

Conduzir um diálogo por meio da empatia requer que a gente comece boa parte das nossas observações tentando checar se compreendemos o que o outro disse, para somente então defendermos nossa posição e falar dos nossos argumentos.

Discussão saudável

Conversas saudáveis exigem empatia, mas também precisam ser regadas de dados, argumentos e fatos obtidos em fontes confiáveis que enriqueçam a discussão. Senão, fica um papo estranho. Por exemplo, de um lado uma pessoa pode dizer: “Mas por que você é a favor à legalização do aborto?” ou “Por que você defende esse político?”. Se, do outro lado, a pessoa tentando ser empática responde: “Você gostaria de entender melhor o que eu penso sobre isso?”, provavelmente quem fez as perguntas vai ficar irritado, pois acredita que elas foram bastante objetivas.

Então, é importante que sua resposta comece de maneira empática, dizendo, por exemplo: “Percebi que você ficou um pouco surpresa com meu posicionamento sobre esse tema. Talvez sabendo que eu trabalho com tal assunto você imaginasse que ele seria diferente”. Mas, em seguida, você responde às perguntas e se posiciona: “Eu defendo essa posição porque (insira aqui todos os bons argumentos que você tem sobre o tema). E você, o que acredita sobre isso?”.

Ataques pessoais e generalizações

Saiba que, quando a discussão envolve algum tema polêmico, é altíssima a chance de você receber algum ataque pessoal e nosso impulso é automaticamente começar a nos defender ou acusar o outro de estar nos acusando. O que sobra é uma briga cheia de ressentimentos e a sensação de que “não dá para conversar com essa pessoa” de ambos os lados.

É preciso respirar e relevar essa parte. Seja você a pessoa que não se apega nem faz ataques pessoais. Principalmente naquelas conversas com um tio ou uma amiga que têm uma opinião absolutamente diferente da sua e que querem interagir no seu post de Facebook. Óbvio que não estou sugerindo que você releve ataques, caso o que esteja sendo dito seja um crime digno de denúncia – nesse caso, encorajo você a não responder e tomar as medidas cabíveis.

Aprenda e demonstre

Uma grande fonte de sofrimento para muitas pessoas é que elas entram em uma discussão querendo que a outra parte mude de opinião ali, naquele momento, agora! Isso raramente acontece.
Às vezes, mesmo tendo acesso a bons argumentos, continuamos defendendo nosso ponto de vista pela vergonha de assumir que mudamos de ideia.

Como podemos deixar os outros mais confortáveis para mudar de opinião? Sendo nós mesmos mais flexíveis e abertos para o outro. Sempre que você aprender algo novo em uma discussão, deixe claro que o outro o/a fez aprender. Quanto mais as pessoas sentirem que você é uma pessoa sensata, mais elas vão sentir que precisam ser sensatas também para discutir com você.

Argumentos em rede

A pesquisadora Julia Galef, palestrante da
TED Talk “Por que você acha que está certo mesmo quando está errado?”, fez uma pequena lista de razões pelas quais vale a pena discutirmos com pessoas na internet. Mesmo que dê preguiça, ou você ache que a discussão não vá chegar a lugar algum, talvez esses motivos possam servir de inspiração:

>> colaborar com a mudança de opinião de pessoas que estão observando a conversa e são mais flexíveis do que aquele com quem você está diretamente discutindo;

>> dar conforto e alívio para observadores que compartilham seu ponto de vista e que gostariam que alguém os defendesse;

>> promover um exemplo de argumentação educada e razoável.

Precisamos de mais visões ponderadas nas redes sociais, bares, mesas de família e espaços de trabalho. Se você percebe que toda questão polêmica tem uma complexidade intrínseca que as opiniões extremistas não deixam aparecer, traga essa complexidade para a discussão. O momento em que mais precisamos que exista empatia geralmente é o momento mais difícil de oferecê-la.

Um pergunta importante desses nossos tempos é: Quem sai ganhando quando vivemos em uma sociedade que não sabe dialogar?”. Será que o resultado dessa polarização e intolerância nos beneficia de alguma forma? Eu acredito que não. Dada a história do mundo, a intolerância e a falta de diálogo só continuam propagando corrupção, desigualdades e violência. Por isso a urgência de criarmos uma cultura do diálogo.

Carolina Nalon é especialista em
Comunicação Não Violenta. Fundadora do Instituto Tiê,
palestrante do TEDxTalkPedradoPenedo.
Para saber mais sobre seu trabalho
acesse: www.institutotie.com.br

 

Quem sai ganhando quando vivemos em uma sociedade que não sabe dialogar?

 

Viver, agir e pensar juntos


Franklin Leopoldo e Silva


Nos últimos anos, as tragédias envolvendo refugiados e migrantes têm ocupado os noticiários e demonstrado a intolerância de países que proíbem, expulsam, prendem ou repatriam pessoas atingidas por graus inimagináveis de miséria. Para quem conserva lembranças históricas, isso não é novidade: pelo contrário, parece ser a tônica das relações entre ricos e pobres há muito tempo. Instaladas em seu relativo conforto material, as populações dos países ricos apoiam as atitudes intolerantes de seus governos, julgando assim preservar um modo de vida razoável, sem ter que reparti-lo com desconhecidos.

Se quisermos entender as causas mais profundas desse individualismo egoísta, teremos que remontar aos inícios da modernidade, em que a invenção do Eu e a posição privilegiada que lhe foi atribuída fez do indivíduo o sujeito da teoria e da prática, o lugar de onde se irradiam os valores que os fundadores da modernidade julgavam dignos de cultivo e apreço.

Todos conhecem, ao menos por ouvir dizer, o célebre lema: penso, logo existo. A revolução que essa hegemonia da consciência de si causou até hoje permanece, basicamente, como orientação da teoria e da prática. São incalculáveis os efeitos dessa conjugação em primeira pessoa do ponto de vista científico e tecnológico, haja vista o progresso e o aprimoramento dos meios materiais de vida que derivam dessa perspectiva.

Imperialismo do Eu

Mas a radicalidade e o alcance desse enaltecimento do Eu, bem como a sua condição de princípio absoluto, tornou difícil a percepção dos outros, exceto como projeções da minha consciência ou representações subjetivas de uma realidade alternativa. Podemos falar, sem exagero, de um imperialismo do Eu, que só foi relativamente abalado pelas concepções de Freud que puseram em questão a integridade interna tão veementemente afirmada.

Ainda assim, vivemos num mundo em que nada é mais necessário do que a posse de si e a certeza da identidade. A experiência histórica contemporânea substituiu a certeza de outrora pela busca ansiosa, mas a situação permanece: o desejo de ser si mesmo, realizável ou não, constitui o horizonte da vida. Ora, essa preocupação exacerbada consigo mesmo torna difícil incorporar à experiência vivida a referência ao outro, e as aproximações entre o Eu e o outro acontecem de modo precário, desde a instrumentação do outro para a consecução dos meus fins até o exercício da violência como resposta preventiva à ameaça que o outro possa representar. Assim, a realidade humana parece não comportar a vivência da comunidade, que implicaria a relação com o outro como estrutura da existência.

Interesses próprios

A competição, que o capitalismo coloca como requisito da atividade empreendedora dos indivíduos, os isola. A isso se acrescenta a dificuldade de conviver com a diferença em todos os seus aspectos. Consequentemente, a relação com o outro acontece como cálculo racional das vantagens que posso tirar dele, o que não é surpreendente nas sociedades movidas pelo lucro e pela possibilidade de êxito individual, que impõem sobrepujar o outro, tornando minhas as oportunidades que ele viesse a ter.
Nesse sentido, não há lugar para a solidariedade e a empatia, como poderia ocorrer num regime comunitário de vida. Mesmo o auxílio que porventura prestamos a outras pessoas está comprometido com os nossos interesses, como se vê nas relações humanas e naquelas que se dão entre países e povos. Na verdade, até mesmo o sofrimento do outro o separa de mim.

Uma causa em comum

O egocentrismo que vigora nas épocas moderna e contemporânea tornou-se um modo de pensar e uma prática tão assimilada que a comunhão entre os seres humanos está até mesmo para além da utopia. Por isso nos surpreendemos quando, excepcionalmente, nos deparamos com propostas e modos de vida pautados pelo outro, pois mal podemos compreender que seja possível se colocar no lugar do outro. Figuras como Gandhi e Martin Luther King são vistas mais como milagres do que como aqueles que teriam assumido o dever de lutar pelo outro.

Não podemos compreender que alguém possa sair de si movido pelo desejo de comprometer-se com as causas dos outros, tomando-as como causa comum. A empatia, já em sua raiz etimológica, significa agir, não apenas pelo outro, mas como se estivesse dentro dele, fazendo de sua infelicidade e de suas expectativas a manifestação de meu próprio ser. E, no entanto, nada haveria aí de milagre ou de acontecimento sobrenatural, mas tão somente a visão da igualdade fundamental de todos os seres humanos, merecedores da mesma dignidade.

Disposição ética de aceitação

A empatia seria, pois, o desejo e a ação voltados para a realização da humanidade em todos os seres humanos. Ela é mais do que uma aproximação simpática – a experiência de uma união afetiva (sim-pathos); seria uma identificação motivada pelo reconhecimento do direito do outro à vida e à humanidade, considerada como uma comunidade natural, ética e política.

Pode-se até admitir essa universalidade formal e teoricamente. Mas na prática o que se vê é a incapacidade de tolerar as diferenças, principalmente quando elas nos agridem pela manifestação de uma desigualdade brutal. A tese liberal de que cada um deve ocupar o seu lugar, alcançado com o esforço empreendedor, faz com que aqueles que não chegaram a essa condição possam ser legitimamente excluídos ou marginalizados.

A intolerância, nesse caso, é vista como atitude normal e justificada por via da raça, da condição econômica, do país de origem, das crenças religiosas, da moral e dos costumes. Para superar essa situação não basta conhecer o outro, pois isso poderia agregar razões para a exclusão. A empatia não passa pelo cálculo racional, mas por uma disposição ética de aceitação. Seria essa atitude a única maneira de superar o egoísmo e a indiferença – ou a hostilidade – em relação ao outro. 

Franklin Leopoldo e Silva é filósofo e
professor titular da Faculdade de Filosofia
da Universidade de São Paulo (USP).

 

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