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Voz Nagô

O talento e a paixão pela percussão fizeram
do pernambucano Naná Vasconcelos referência
mundial da música instrumental

Foto: Itamar Crispim.


No registro de nascimento está Juvenal de Holanda Vasconcelos, mas foi com o apelido de Naná carimbado no passaporte que o percussionista e compositor pernambucano levou seu ritmo para conhecer o mundo. Nascido em 1944, no Recife, desde muito jovem se aproximou da música e se identificou com os instrumentos de percussão, que começou a tocar com 10 anos. O menino era bom de batuque e nada passava ileso: incluindo caçarolas, panelas e penicos.

Embora nunca tenha frequentado escola de música, aos 12 anos já tocava maracas no clube Carnavalesco Batutas de São José. Além disso, acompanhava o pai, que se apresentava em casas noturnas da cidade. Para tanto, precisou até de autorização do juizado de menores. Como era criança, durante os intervalos de shows, tinha de permanecer no palco. Tudo para não ver de perto o clima de romance que se espalhava pelo salão quando a banda fazia uma pausa e os casais começavam a namorar.

 

Foto: Divulgação.

 

Do Brasil para o mundo

Em 1968, foi ao Rio de Janeiro participar do festival O Brasil Canta no Rio. O plano era permanecer na cidade por uma semana; porém, o destino fez sua mágica e ele acabou ficando por lá. Naná foi levado por Geraldo Azevedo a uma festa na casa de Milton Nascimento e e logo começou a amizade entre os músicos. Era uma sexta-feira e Milton chamou Naná para participar da gravação de seu terceiro disco, Milton Nascimento, que começaria dali a alguns dias. O álbum, lançado em 1969, marcou o início de uma longa parceria.

A trajetória internacional deslanchou nos anos 1970, com o convite para fazer parte do grupo do saxofonista argentino Gato Barbieri. A estreia mundial foi em grande estilo: como cenário o elegante palco do festival de jazz de Montreux, na Suíça, onde o brasileiro arrebatou público e crítica.

O talento de Naná também se desdobrava em prêmios: foi eleito por oito vezes o melhor percussionista pela revista norte-americana Down Beat e levou para casa oito Grammys (o Oscar da música). O músico morou por 27 anos nos Estados Unidos, mas se engana quem pensa que a calçada de estrelas o seduzia. Naná não dava bola para o glamour, mesmo tendo gravado com nomes reluzentes de vários estilos musicais, como o guitarrista norte-americano B.B. King, o violinista francês Jean-Luc Ponty e a banda de rock Talking Heads.

Para Caíto Marcondes, diretor musical do projeto Viva Naná! (veja boxe Batucada de primeira), a capacidade de ouvir e a generosidade eram sua marca principal, além da musicalidade intrínseca, que tinha o potencial de induzir o ouvinte a imaginar cenários: “Ele conseguia nos transportar para vários estados de contemplação e ambientes, como toda boa música deve fazer”, diz.

No rol de parceiros nacionais de Naná figuram nomes como Jards Macalé, Luiz Eça e a Sagrada Família, Som Imaginário, Gal Costa, Os Mutantes, Egberto Gismonti e Gilberto Gil.

 

Legado no cinema

Versátil, reafirmou o apelo visual de sua música, trabalhando em trilhas sonoras de filmes, como Procura-se Susan Desesperadamente (Susan Seidelman, 1985). Voltou à cena no instrumental do documentário Revelando Sebastião Salgado (Betse de Paula, 2013), sobre o fotógrafo brasileiro, que assim como Naná é mundialmente conhecido, e O Menino e o Mundo (Alê Abreu, 2014), animação nacional indicada ao Oscar.

Em vida, dizia não fazer parte de nenhum movimento: “Faço coisas que só eu faço, porque não tenho compromisso, ‘tô noutra’, faço parte da world music”. O cineasta e autor do documentário Diário de Naná (2006), Paschoal Samora, , reconhece bem essa força. O filme é resultado de um convite feito a ele em 2005. Samora convidou Naná para uma jornada em busca do som do sagrado, e do sagrado do som, no Recôncavo Baiano.

“Nessa viagem, tudo tinha que fazer sentido, nada era ensaiado, então preparamos uma série de vivências para ele durante as filmagens”, relembra o cineasta, que menciona o improviso – elemento de grande força em sua obra musical – como fio condutor da experiência.

Segundo Samora, a situação mais emocionante do projeto foi tocar com Virginia Rodrigues – cantora baiana – nos subterrâneos do Mercado Modelo em Salvador. “Uma sequência que se deu como um rito e que foi feita em uma única tomada, brilhante, sagrada e inesquecível”, relata. Samora explica que esse subterrâneo abrigava africanos escravizados que chegavam a Salvador. “Um lugar carregado da nossa triste história, e de uma força de resistência que transbordou e nos atingiu fortemente”, acrescenta.

 

Poeira de luz

Atuar com crianças carentes e promover uma transformação por meio da música eram objetivos centrais em sua vida. Desde 2002, Naná comandava as nações de Maracatu e os batuqueiros no marco da abertura do Carnaval em Recife. Um ano após sua morte – em 2016, em decorrência de um câncer pulmonar –, não havia uma figura para substituí-lo e capitanear os mais de 600 batuqueiros que se reuniram no marco zero da cidade. Os mestres de cada conjunto se juntaram e, então, o representaram. Seguiu o carnaval, e Naná foi saudado. Em 2018, um boneco gigante nos moldes de Olinda foi apresentado na Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde o músico havia recebido o título de Doutor Honoris Causa em novembro de 2015.

 

Batucada de primeira

 

Uma seleção de composições preparada e analisada pelo contrabaixista,
compositor e produtor musical Paulo Lepetit dá os primeiros
passos para viajar na produção do instrumentista

 


Batuque na Panela (2015)

Essa parceria de Naná com Zeca Baleiro e Paulo Lepetit deu início ao projeto Café no Bule, lançado em 2015, pouco antes de sua morte. Nasceu a partir de um delicioso groove rítmico feito com panelas e outros utensílios culinários. “Foi o começo de um trabalho prazeroso que se estendeu por alguns meses e acabou sendo o último registro fonográfico que Naná realizou e do qual tenho um orgulho muito grande de ter participado”, informa o produtor musical.

Assim Naná Ensina (2004)

Itamar [Assumpção] fez a música para Naná assim que se encontraram para iniciar o projeto Vasconcelos e Assumpção, Isso Vai Dar Repercussão (2004). Essa canção sintetiza a sintonia musical criada a partir daí. “Um mantra que vai crescendo pela construção rítmica que Naná desenvolve”, diz.

Fim de Festa (2004)

Outra música que faz parte do disco em parceria com Itamar Assumpção. O curioso neste caso é o minimalismo que Naná imprimiu em sua performance. “Diante de uma canção totalmente nua, ele preferiu vesti-la com o mínimo possível, mas com elegância máxima”, detalha. “Gravou os sininhos e um canal de voz percussiva. E falou: ‘É isto, não precisa de mais nada’. E precisa?”

Hey Da Ba Doom (1983)

Essa faixa faz parte do disco Codona 3 (1983), do grupo de mesmo nome que Naná integrou nos anos 1980, com Collin Walcott e Don Cherry. É uma síntese de seu trabalho, com o berimbau virtuoso, uso da voz e as onomatopeias. “Uma base que norteou seu trabalho durante a carreira como um dos maiores músicos do mundo”, afirma.


 

Tem café no bule

Álbum e shows para saudar Naná Vasconcelos


No mês de junho, o Sesc 24 de Maio dedicou parte da programação musical ao artista pernambucano. Com o nome de Viva Naná!, o projeto contou com apresentações de antigos parceiros do músico, como o multi-instrumentista Egberto Gismonti. Também foram realizados workshops de percussão, rodas de conversa e espetáculos para as crianças, inspirados no trabalho do artista. Além disso, pelo Selo Sesc foi lançado em 2015 o último registro em vida do compositor e percussionista. Em Café no Bule, Naná gravou canções inéditas feitas em parceria com os músicos Zeca Baleiro e Paulo Lepetit, que também participaram do disco.

 

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