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A saída é crescer

 

Ilustração: Arte PB

Uma estratégia para retomar o desenvolvimento

Em palestra proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), no dia 9 de agosto de 2001, o professor Antonio Dias Leite defendeu a necessidade de traçar diretrizes para recuperar o crescimento econômico.

Antonio Dias Leite – Repensar uma estratégia nacional de desenvolvimento é preocupação crescente para muitos de nós, habitantes de um país subdesenvolvido, que não está hoje conseguindo retomar o ritmo de crescimento que já teve nem resolver as tensões que se acumularam no campo social, tanto em decorrência do longo período de desorientação econômica da nação como das necessidades incontornáveis da rígida política de estabilização da moeda. No âmbito de políticas públicas, trata-se de matéria familiar aos mais antigos, que acompanharam diversas etapas e variantes da estratégia nacional de desenvolvimento e estão agora presenciando, perplexos, a tentativa de condução do país sem um projeto, ao passo que, no âmbito empresarial, o conceito estratégico goza do maior prestígio.

Para as empresas, para setores de atividade, bem como para a sociedade como um todo, estratégia corresponde à busca do rumo de longo prazo que se deseja seguir e dos objetivos que se julga possível alcançar. Ela se baseia em análise de trunfos e de obstáculos e se consubstancia num conjunto de diretrizes. Para nós, a questão central e dominante é a superação do subdesenvolvimento. Mas, no quadro atual, a economia não tem demonstrado condições de fazê-lo. Repensar uma estratégia nacional de desenvolvimento é, pois, uma necessidade.

Conceito de estratégia

As estratégias nacionais decorrem de definições formais ou são construídas, de maneira cumulativa, através de ações concretas, tacitamente aceitas pela sociedade, por caminhos democráticos ou autoritários. São também influenciadas por movimentos de opinião pública.

À medida que as sociedades se tornam mais complexas, fica mais difícil compatibilizar objetivos conflitantes. Em contrapartida, a abundância de informações estatísticas, de métodos de análise, de instrumentos de trabalho e de pessoas habilitadas permite a elaboração de bases quantitativas mais seguras para a definição das diretrizes e metas de uma estratégia nacional de desenvolvimento.

No princípio do século 20 os ciclos econômicos atraíram maior atenção. Os surtos inflacionários ocorridos depois da 1ª Guerra Mundial estimularam a obtenção de melhores informações sobre moeda, preços e emprego. A crise de 1929 induziu a montagem, na década de 30, de sistemas de avaliação da renda nacional, sua estrutura e suas variações. Só depois da 2ª Guerra é que tomaram corpo o conceito e a medida do desenvolvimento econômico e se intensificaram os estudos das suas relações com a estabilidade monetária.

Foi na discussão da política de pós-guerra que se tornou nítido no Brasil que, independentemente da direção em que se encaminhasse a política econômica nacional, faltavam bases estatísticas para avaliações seguras. Esse debate ocorreu em 1944, na Comissão de Planejamento Econômico, criada pelo Conselho de Segurança Nacional. Foram protagonistas Eugênio Gudin e Roberto Simonsen. Daí surgiu o projeto de levantamento da renda nacional e do balanço de pagamentos, bem como da reformulação dos índices de preços, a ser desenvolvido no âmbito da recém-criada Fundação Getúlio Vargas. A primeira divulgação da renda nacional ocorreu em 1951, com base no triênio 1947-49, e deu início às análises quantitativas da economia brasileira.

Evolução até 1990

Antes de 1950, e desde a Revolução de 1930, a estratégia nacionalista, com importante apoio de círculos militares, era baseada em conceito de segurança nacional e na necessidade de redução da dependência externa, representada pela importação de insumos considerados estratégicos. Desdobravam-se planos setoriais a serem desenvolvidos com forte presença do Estado. A integração dessas iniciativas em um projeto global desenvolvimentista, mais quantificado, só ocorreu com o Plano de Metas, dedicado em grande parte à infra-estrutura.

No início da década de 60, a descontinuidade política e econômica, que envolveu greves e desabastecimento, culminou em um assustador surto inflacionário de 80% ao ano. O governo militar, que se originou dessa crise, promoveu reforma econômica e administrativa, procurando abortar o surto inflacionário, recompor as finanças públicas e conter o populismo irresponsável. Em seguida, o crescimento econômico voltou a ser prioridade estratégica. Ocorreu, nessa época, nova e ampla discussão de política econômica.

Nos governos militares subseqüentes formalizaram-se Planos Nacionais de Desenvolvimento Econômico, cada vez mais abrangentes. Através deles foi-se consolidando uma estratégia econômica, baseada na construção de sólida infra-estrutura e na industrialização para a substituição de importações, que se manteve, sem muitas variações, até o final da década de 70. Asseguraram-se, simultaneamente, oportunidades de emprego e de ascensão social.

Paralelamente às discussões e definições que iam acontecendo, desde a década de 40, quanto à estratégia nacional de desenvolvimento, as diretrizes gerais adotadas foram bem-sucedidas, já que a economia, apesar de oscilações, cresceu ao ritmo médio anual de 7,4% por 33 anos, até 1980, durante os quais conseguiu-se conciliar o crescimento econômico com certo controle da inflação, embora em nível médio relativamente alto quando comparado ao que prevalecia nos países desenvolvidos. Foi o "tempo ganho", no qual se devem distinguir várias configurações de crescimento, inflação e dependência externa. As vitórias econômicas e sociais superaram as derrotas. Em todo esse percurso cometeu-se, infelizmente, o erro de não atribuir suficiente importância à educação pública, fundamental e universal.

No período seguinte, a partir de 1981, perdemos o rumo e não tivemos condições de nos reorganizar. Deterioraram-se a administração pública e a maioria das empresas sob o controle do Estado, e enfraqueceu-se a economia. Foi o "tempo perdido", durante o qual, e não obstante a redemocratização e a abertura política, as perdas superaram os ganhos. Sucederam-se tentativas espasmódicas de recuperação econômica, mas a cada novo passo ressurgia, com maior força, o processo inflacionário, que acabou por tornar-se explosivo e incontrolável. Praticamente desapareceu o planejamento econômico que se havia organizado no país de forma progressiva.

O período seguinte foi marcado por crises políticas e hiperinflação, com algumas conseqüências positivas e muitas negativas.

Reforma e Plano Real

A reversão do processo inflacionário baseou-se na execução de um plano de reformas monetária e cambial, na redução drástica do papel do Estado na vida econômica e na abertura comercial e financeira para o exterior. O objetivo nacional único passou a ser o combate à inflação. Não existiu, nem mesmo como um segundo passo, estratégia de desenvolvimento. O pensamento dominante, em voga nos meios financeiros e no governo, pressupunha também que o país tivesse condições de uma retomada espontânea do crescimento, só porque se estava estabelecendo uma moeda estável e fortalecendo a economia de mercado.

A retomada do desenvolvimento não ocorreu, mas no final de 1998 estávamos com três anos de inflação decrescente, obtida todavia à custa de forte dependência financeira externa.

Estava em voga depreciar o que fora feito, nos últimos 50 anos, em termos de desenvolvimento e criação de oportunidades de emprego e ascensão social, como se se tratasse de época que pudesse ser caracterizada como um período de administração pública irresponsável. No entanto, na realidade, a conta do governo na área social foi normalmente superavitária até 1980, excetuado o período de crise e recuperação de 1962-69. A conta das transações comerciais e de serviços com o exterior apresentava déficits da ordem de 2% até o segundo choque do petróleo, ocorrido em 1979, quando então ela passou a crescer. A dívida externa era insignificante até essa época.

Proposta

Já no princípio do ano 2000, mantinha-se a inflação sob controle e o país alcançava importante progresso na disciplina fiscal e no saneamento financeiro da administração pública.

Parecia então claro que se havia esgotado o tempo da preocupação exclusiva com o curto prazo, que se impusera nos anos do combate à inflação, e das crises externas que atingiram a economia brasileira. A evolução do cenário nacional produzia otimismo em relação à possibilidade de retomada do crescimento.

Ocorreu-me levar ao presidente da República uma sugestão para a elaboração de proposta estratégica para o século 21. Procurei mostrar a necessidade de uma formulação que buscasse a conciliação entre os objetivos e instrumentos de promoção do crescimento e os da estabilidade, e que essa conciliação requereria avaliações minuciosas e cautelosas de diretrizes e ações que compusessem a nova estratégia, cuja elaboração necessitaria de um novo processo e organização.

Exposta desse modo, a tese pareceu-me que havia sido bem recebida em Brasília. Procurei pessoas que tivessem disposição e disponibilidade para colaborar nessa tarefa de elaboração de um roteiro mais detalhado. Participaram comigo da composição do texto 22 brasileiros de elevado espírito público: Adilson de Oliveira, Alfredo Lamy, Antonio Barros de Castro, Carlos Antonio Rocca, Cláudio Contador, Francisco Eduardo Barreto de Oliveira, Francisco Eduardo Pires de Souza, Henrique Brandão Cavalcanti, Henrique Saraiva, João Camilo Penna, João Geraldo Piquet Carneiro, João Paulo de Almeida Magalhães, José Luis Bulhões Pedreira, José Pastore, Josef Barat, Mario Borgonovi, Mario Gibson Barboza, Paulo Rabello de Castro, Roberto Cavalcanti de Albuquerque, Roberto Rodrigues, Sergio Corrêa da Costa e Sonia Rocha.

O trabalho foi concluído em outubro e entregue em Brasília em novembro de 2000, e previa-se então uma discussão no âmbito do governo, com a participação de pessoas vinculadas à proposta. Infelizmente nunca tive notícias do que ocorreu com esse documento. Passados quatro meses e convencido da sua utilidade para outros que também estivessem repensando nossa estratégia de desenvolvimento, tomei a iniciativa de divulgá-lo, apesar de se tratar de uma primeira etapa de trabalho inconcluso (o texto da Proposta de Estratégia Nacional de Desenvolvimento está disponível no site do Instituto de Economia da UFRJ: www.ie.ufrj.br ).

Conteúdo da proposta

Concebido como texto que servisse para dar início a uma discussão disciplinada da estratégia nacional, avaliaram-se, preliminarmente, os obstáculos que se interpõem ao nosso desenvolvimento e os trunfos de que dispomos para vencê-los, examinaram-se desperdícios, tanto físicos como de recursos públicos, e identificaram-se as principais contradições que teriam de ser enfrentadas. Tudo isso foi feito com a preocupação de apontar os aspectos críticos, evitando-se sugerir desde logo soluções.

Na proposta foi enfatizada a íntima relação entre política externa e estratégia nacional, que adquire novas e relevantes conotações, diante da intensa negociação de pactos regionais de que o Brasil está participando. Dessa relação poderá surgir, ou não, a contribuição para a melhoria de nosso balanço de pagamentos, e podem resultar, ou não, constrangimentos ao nosso desenvolvimento.

Ao concluir a proposta, estávamos todos convencidos da oportunidade de uma Estratégia Nacional de Desenvolvimento, apoiada em forte crescimento econômico, com recursos predominantemente próprios, na continuada melhoria da distribuição de renda, na diminuição rápida da pobreza absoluta, na redução das desigualdades regionais e no respeito ao meio ambiente, com vistas à melhoria generalizada da qualidade de vida da população.

Registramos também a opinião de que uma nova estratégia de longo prazo deveria tirar o maior proveito das reformas estruturais e da política monetária que criou o Plano Real. Essa estratégia teria de ser inovadora, evitando-se a opção simplista, ou saudosista, de retorno aos planos que se sucederam desde o pós-guerra até o início da década de 80, em outras condições internas e externas.

De novo a questão do crescimento

No intervalo entre a entrega da proposta e sua divulgação, a possibilidade da retomada do crescimento continuou preocupando. Revi grande parte das contribuições recentes de autores nacionais, concentrando-me, naturalmente, na questão do desenvolvimento. A dispersão dos temas e dos pontos de vista das análises de especialistas torna complicada sua inserção no debate sobre a estratégia nacional de desenvolvimento, que requer uma sistematização prévia. Infelizmente, nas discussões correntes não tem havido suficiente distinção entre o que devem ser as diretrizes de longo prazo, para compor uma Estratégia Nacional de Desenvolvimento, e as políticas e planos de ação de governo no curto e no médio prazo. Freqüentemente são contrapostas visões de curto para médio prazo e de médio para longo prazo.

Entre as duas atitudes a aparente dificuldade de entendimento está no processo de transição da relativa estagnação em que nos encontramos para um desenvolvimento sustentado. A discussão se torna improdutiva porque a maioria dos analistas acadêmicos e econômicos tem sua visão focada na política de estabilidade a prazo curto, cujo horizonte só excepcionalmente alcança um ano. Já os que tratam do desenvolvimento do país estão preocupados com a produção física de bens e serviços e a produtividade nacional, que requerem ações que só propiciam resultados em prazos maiores que um ano.

O predomínio do raciocínio de curto prazo tem origem na hiperinflação e na adoção, pelo governo, da decisão de liquidá-la. As prioridades nacionais, com ampla adesão da opinião pública, passaram a ser, e ainda são, a estabilidade da moeda e o saneamento financeiro do Estado. Não obstante as reformas estruturais que foram sendo implementadas, a visão de longo prazo ainda não retomou o corpo que já teve.

Acredito que, na hipótese de ainda se pretender elaborar uma estratégia, fosse eficaz uma divisão da tarefa em etapas. A primeira, abrangente, poderia pautar-se pelo roteiro da proposta de outubro passado, na busca de compatibilização de objetivos. A seguir se concentraria a atenção no núcleo do processo de desenvolvimento: a compatibilização da retomada do processo de crescimento com a redução da vulnerabilidade externa e a sustentação da estabilidade monetária.

Antes disso cumpre colocar como preliminares, para eventual nova discussão, dois temas contraditórios: a diferença essencial entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos; as relações atuais entre crescimento e inflação em contexto realista.

Daí pode surgir um caminho que nos leve a uma análise racional, e não dogmática, da questão crucial da transição de uma atitude estática para a de retomada do crescimento, que seja adequada a um país como o nosso, ainda nos primeiros estágios do desenvolvimento.

Diferença essencial

O Brasil continua a ser um país subdesenvolvido. Estamos aderindo à modernização, mas é um equívoco tentar nos comportar como se pertencêssemos ao grupo dos desenvolvidos.

Na comparação entre as nações de vanguarda e os países em vias de desenvolvimento não se pode esquecer que as primeiras consolidaram há muito tempo, através de continuado crescimento, invejável nível de renda compatível com o bem-estar da maioria da população. Toda a infra-estrutura já foi construída. No campo estritamente econômico, a preocupação principal é com a estabilidade da moeda, mantendo-se nível de atividade suficiente, a juízo dos respectivos Bancos Centrais, para arejar negócios e iniciativas. A organização da economia, fundada em grande parte em mercados competitivos, resultou de longa, e por vezes acidentada, evolução.

Para nós, no Brasil, a imposição de criar empregos provém da mudança estrutural que se processa no país e também da necessidade de incorporação não só da parcela da população que ainda não faz parte da economia de mercado como do contingente de jovens. Sem crescimento econômico não há como construir a infra-estrutura que nos falta, nem como reduzir a tradicional má distribuição de renda. A corajosa abertura de mercados não pode ser, no entanto, entendida como pretensão de nos igualarmos, subitamente, ao que demandou décadas para implantação no mundo desenvolvido.

As estatísticas mostram que, de modo geral, a superação do subdesenvolvimento tem sido mais difícil do que as formulações teóricas tendem a sugerir. Vamos analisar alguns números, mesmo sabendo que são insuficientes para explicar tanto a estrutura como a complexidade da evolução econômica e social das diferentes sociedades. Baseio-me em comparação recente, relativa ao período de 1990-98, elaborada pelo Banco Mundial, entre 136 países, que arbitrariamente classifiquei em função de PIB per capita.

O primeiro bloco, com PIB per capita inferior a US$ 2 mil, compreende 79 países pobres, abriga 70% da população do mundo e tem apenas 9% do PIB mundial. Nesse grupo devem ser destacados países populosos como a China, a Índia, a Indonésia e o Paquistão, que, pela própria dimensão, têm condições excepcionais para crescer de forma autônoma. A maioria dos outros tem pouca probabilidade de superar a pobreza.

O bloco das nações em desenvolvimento admite um desdobramento em dois estágios: o primeiro, das 27 ainda na fase de tentativa, com PIB per capita entre US$ 2 mil e US$ 5 mil, e o segundo, das 14 que já estão a caminho do clube dos ricos, com PIB per capita entre US$ 5 mil e US$ 20 mil. O Brasil estava passando do primeiro para o segundo estágio quando regrediu.

O clube dos ricos, com PIB per capita superior a US$ 20 mil, compreende apenas 16 países, detém 13% da população do mundo e 72% do PIB mundial, e é o grupo no qual se inclui o poderoso G-8.

Essa classificação dá idéia da posição em que estamos e da distância que nosso país deve percorrer. Ainda não chegamos aos US$ 5 mil, e temos de nos aproximar pelo menos dos US$ 10 mil, que correspondem à soleira da porta de entrada do clube dos ricos. Necessitaríamos de pelo menos 13 anos de forte crescimento econômico, da ordem de 7% ao ano, para duplicar a renda. Se formos esperar o crescimento admitido como possível pelas nossas autoridades, de 4%, seriam necessários 23 anos. São números de fantasia, só para acentuar a disparidade das formulações.

Crescimento e estabilidade

A idéia de promover o crescimento traz à tona discussões antigas sobre sua compatibilidade com a estabilidade. Trata-se de dois conceitos que, para se tornarem úteis, devem ser associados a valores numéricos.

A estabilidade monetária em economias de mercado, se considerada em termos absolutos, correspondendo à inflação zero, é uma abstração. Na Europa apenas Portugal, no tempo de Antônio Salazar, conseguiu isso, em associação com crescimento também zero. Há agora um padrão de bom comportamento, arbitrado pelos Bancos Centrais dos países desenvolvidos, sob inspiração disciplinar germânica, que limita em 3% a inflação máxima admissível para países em desenvolvimento. Mas é preciso considerar também outros graus de inflação, alcançados ou aceitos em diversas situações, épocas ou países. Existem ainda limites máximos de inflação além dos quais os mecanismos do mercado deixam de funcionar adequadamente e se inicia processo inflacionário explosivo.

É necessário distinguir entre mito e realidade, no que se refere às relações entre crescimento e estabilidade. O correspondente debate pode adquirir alguma precisão novamente com auxílio da aritmética. Volto, por esse motivo, às estatísticas do Banco Mundial relativas ao período de 1990-98, simplificadas com a eliminação dos países com menos de 4 milhões de habitantes e com PIB inferior a US$ 4 bilhões, bem como os que tiveram inflação explosiva. Fiquei com as 70 nações remanescentes para análise dos ritmos comparados de crescimento e inflação.

No primeiro bloco, com PIB per capita inferior a US$ 2 mil, há 33 países, dos quais 32 tiveram inflação (média de 16,2%) superior ao crescimento (4,4%). No grupo de 13 países ditos em desenvolvimento, com PIB per capita entre US$ 2 mil e US$ 5 mil, 11 tiveram inflação (média de 18,4%) superior ao crescimento (média de 4%). Entre os 7 países a caminho do clube dos ricos, com PIB per capita entre US$ 5 mil e US$ 20 mil, 3 tiveram inflação média (5,9%) maior que o crescimento (3,8%). Finalmente, dos 17 países com PIB per capita superior a US$ 20 mil, apenas 7 tiveram inflação maior que o crescimento (na média, 3,4%, contra 2,2%).

Em resumo, conter o ritmo da inflação abaixo do de crescimento é um privilégio de alguns países ricos e dos que estão próximos deles, o que não é nosso caso. Mas, mesmo nessas situações e nos quatro blocos considerados, a inflação média foi sempre superior ao crescimento.

A viabilidade da meta ambiciosa, para país subdesenvolvido, de inflação menor que 3%, defendida pela equipe financeira do governo, com a indicação de que seria compatível com o crescimento medíocre de 4%, não encontra respaldo na evidência empírica.

Se considerarmos agora os 19 países, na maioria asiáticos, desse conjunto de 70 que alcançaram ritmo de crescimento acima de 5%, índice necessário para uma saída vigorosa do subdesenvolvimento, independentemente do bloco de renda em que se encontram, 5 tiveram inflação inferior ao crescimento e 14 inflação superior.

Imobilismo dogmático

O Brasil, apesar de estar entre as dez maiores economias reais do mundo, tem comércio externo limitado e posição insignificante no mercado financeiro. Não obstante essa característica estrutural, o plano de estabilização optou por uma supervalorização do real na sua implantação e não deu maior atenção à expansão do comércio exterior. O equilíbrio de caixa das contas externas só foi sendo alcançado através de entradas de capital de risco e de empréstimos, muitos destes últimos em condições onerosas para o país, exatamente pela constatação da nossa vulnerabilidade, que assume, por esses motivos, posição-chave na nossa estratégia econômica. Entre os países subdesenvolvidos, o Brasil ocupa hoje o primeiro lugar em termos de passivo externo e também detém a mais alta relação entre encargos desse passivo e o valor de suas exportações, segundo a revista "The Economist".

No entanto, o governo mantém a tese de que o bom comportamento, a juízo do mercado, assegurará o fluxo de capitais necessário à cobertura dos déficits em conta corrente. E continua entrincheirado atrás de dogmas que o imobilizam: o da não-intervenção nas decisões soberanas dos "mercados", o da abertura comercial sem restrições e, principalmente, o da estabilidade monetária segundo padrão europeu, como objetivo central e sem concorrência. O governo, aparentemente com o temor do recrudescimento da memória inflacionária, compartilhado por grande parte dos analistas financeiros de fora do governo, se autolimita, no campo econômico, à sustentação da austeridade fiscal e às incessantes manobras de curto prazo com o câmbio e a taxa de juros que estiolam qualquer iniciativa de crescimento.

Por outro lado, cabe reconhecer a existência de dificuldades políticas na conclusão das principais reformas, que estão atrasadas mas ainda são necessárias, no campo tributário e político-partidário, bem como a não reestruturação da nossa precária administração pública, que acaba de oferecer o triste espetáculo de desastrada condução da política energética.

O impasse

Não obstante as importantes e corajosas contribuições iniciais para a modernização do Brasil – a generalização da austeridade fiscal, a reconhecida competência da atual equipe do Banco Central na administração da política de prazo curto –, aproxima-se o atual governo do seu término deixando o país em um impasse: sem crescimento, sem estabilidade sustentável e com vulnerabilidade externa crescente. É nítido que a condução da economia nos últimos anos não nos leva a lugar nenhum e nos deixa expostos a crises sucessivas.

O impasse em que nos colocamos se apresenta sob a forma de dois círculos viciosos: no primeiro, o saldo das contas públicas, que se transforma em déficit quando incluídas as despesas com juros, resulta no crescimento da dívida pública interna, que aumenta os gastos com juros, que amplia o déficit; no segundo, o déficit em conta corrente nas transações com o exterior acarreta maior endividamento externo ou entradas de capital que agravam os gastos futuros de divisas, que aumentam o déficit, já que as exportações não crescem suficientemente.

São duas bolas de neve em percurso livre. A saída só pode ocorrer através do estabelecimento, de forma sólida, de dois círculos virtuosos, que se iniciariam com o aumento da produção: no primeiro, crescem a poupança e o investimento em produção, que a incrementam; no segundo, aumenta a receita fiscal que resulta em maiores saldos nas contas públicas, que contêm o crescimento da dívida, o que reduz o encargo de juros, o que por sua vez amplia os saldos.

É quase consensual que a expansão há de apoiar-se nas exportações, com restrições a importações, para que se reduza a dependência externa.

Mas não é simples armar um conjunto de ações que propicie a transição de um quadro para outro. A questão crucial da retomada do crescimento requer, para ser equacionada, o trabalho de uma poderosa equipe de especialistas, com orientação política definida no mais alto nível, disposta a uma análise livre de dogmas e slogans e, se possível, isenta de pressão política eleitoral imediatista.

Teria sido de grande valia se toda essa discussão tivesse acontecido, com a participação do governo, ainda no ano 2000, como foi proposto. No entanto, tendo ocorrido a omissão ou recusa da discussão do futuro, por parte do presidente e de seu ministro da Fazenda, o debate fica agora irremediavelmente atrelado às vicissitudes próprias do palco da campanha eleitoral.

Todos sabemos que as plataformas dos candidatos ao governo terão de definir, no campo econômico, o caminho para superar o impasse, o que vai requerer inovações das quais podem advir objeções do "mercado" e dos organismos financeiros supranacionais, criando novas dificuldades.

Mas o Brasil tem condições intrínsecas para sair do impasse no qual estamos aprisionados em grande parte pela mediocridade da condução da política econômica nacional. Somos importantes porque somos um grande país, com presença na política internacional e sólida base na economia real. Merecemos respeito no exterior, conforme demonstrações recentes de governos e organismos do mundo desenvolvido.

É triste para o governo que, na ausência da preparação para o futuro, seu eventual candidato à disputa das eleições de 2002 fique sem base para a formulação de uma plataforma de continuidade. Por outro lado, não vão surgindo propostas coerentes e convincentes, da parte da oposição, também entalada nesse impasse da retomada do crescimento com redução da vulnerabilidade externa. Todos os candidatos estão na mesma camisa-de-força que lhes é legada pelo atual governo, e ao mesmo tempo com a necessidade de se livrar dos dogmáticos no poder, já que a perpetuação do impasse por eles criado é inadmissível.

Se conseguíssemos transpor, com sabedoria e prudência, a transição, poderíamos contar com os trunfos que nos são característicos, e que não são poucos: da dimensão e da diversidade de oportunidades de produção de que o Brasil dispõe, da iniciativa do empresariado nacional, que tem dado largos passos na busca de eficiência e competitividade, em padrões internacionais, do saneamento financeiro já feito, bem como da atratividade dos mercados que constituem a economia real do país. Contaríamos sobretudo com a possibilidade de mobilização da sociedade, que já tem demonstrado sua disposição de agir, quando se trata do interesse nacional, como acaba de fazer na recuperação do setor energético, incompetentemente conduzido pelo governo. O obstáculo que se tem interposto no caminho da retomada do crescimento é o da política financeira de curto prazo a que estamos submetidos.

 

Debate

Nota do Editor: As colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para ser respondidas de forma concentrada.

JOSUÉ MUSSALÉM – Em relação a esse modelo de estratégia nacional de desenvolvimento, como o senhor vê a questão social? O Brasil poderia passar, a médio e longo prazo, para o grupo de países com PIB per capita de US$ 10 mil? O ponto crucial, em minha opinião, é a distribuição de renda. Não acredito que governo algum seja capaz de, sozinho, fazer hoje uma política séria de redistribuição de renda.
Quanto ao fomento das exportações, o presidente Fernando Henrique Cardoso declarou recentemente que a desvalorização cambial não trouxe grandes ganhos às vendas externas porque faltam ao Brasil competitividade e agressividade maior do exportador. Em parte ele tem razão. Ele diz que as exportações estão desoneradas, mas não estão. Estão na ponta exportadora, mas no processo da cadeia produtiva sofrem violenta carga tributária.
Itália, Espanha e Portugal são bons exemplos para o Brasil, pois possuem instituições que se preocupam em facilitar a vida dos exportadores.

DIAS LEITE – Benedito Fonseca Moreira disse que existem várias providências relativamente simples que poderiam ser tomadas, mas que esbarram em dogmas, como a não-intervenção na economia, a não ser na questão da CPMF e outros tributos desse tipo. Conversar com grandes empresas estrangeiras também é impossível, porque elas devem ter liberdade para fazer o que acham melhor no mercado. Não se trata, porém, de elaborar nenhuma legislação nem de compelir as empresas a agir desta ou daquela forma, mas de o governo tentar negociar com as empresas que são grandes importadoras e chamar sua atenção para a necessidade de compensar parte das importações com maiores exportações. Isso não é romper as regras de mercado, é negociação. O que certamente acontece nos seus países de origem.

MUSSALÉM – O senhor se lembra de qual foi o resultado do debate entre Eugênio Gudin e Roberto Simonsen?

DIAS LEITE – Gudin defendia a tese de que não se precisava de uma comissão de planejamento, e Simonsen falava na defesa da indústria nacional nascente, na proteção às indústrias brasileiras.

ROBERTO PAULO RICHTER – O senhor acha que existe uma forma de medir índice de pobreza que não seja a renda per capita? Li recentemente que nos Estados Unidos eram considerados pobres os que tivessem renda familiar abaixo de US$ 15 mil por ano. Existe até um sistema de saúde específico para esse grupo de pessoas.
O senhor não falou sobre a carga tributária. Um dos problemas que temos para o desenvolvimento não seria a tão decantada necessidade da reforma tributária, que está sendo prorrogada indefinidamente?

DIAS LEITE – Em relação à pobreza, vou dar minha posição pessoal. O crescimento é indispensável. É difícil fazer redistribuição numa economia estagnada, a não ser num regime de arbítrio. A contrapartida é que o crescimento da renda per capita não significa necessariamente que a pobreza vai diminuir. Precisamos de políticas acessórias, voltadas para a redução da pobreza, especialmente na adequação dos gastos públicos. Na Fundação Getúlio Vargas e no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), alguns técnicos têm mostrado que os recursos que direcionamos para esse fim não são poucos, mas estão mal aplicados. E não atingimos esse objetivo de diminuir a pobreza.
Quanto à carga tributária, vou confessar uma coisa: não consigo entender a reforma pretendida. Faz tantos anos que está sendo discutida que não sei o que ela é de fato. Fernando Resende, do Ipea, afirma que o impacto da briga entre estados pela repartição de tributos é insolúvel, por causa dos interesses específicos de cada um deles. Ele não acredita, assim, que a reforma avance no Congresso.

ROBERT APPY – Minha preocupação refere-se a nossa dependência do exterior, muito excessiva atualmente, que é um freio ao crescimento. O problema essencial no Brasil hoje é criar uma poupança interna, porque não podemos depender tanto de empréstimos externos. Naturalmente, nossa distribuição de renda não favorece a poupança.
Para reduzir essa dependência, temos de resolver o problema da exportação. Fala-se muito no Brasil que a crise mundial explica o fraco desempenho de nossas exportações, mas quando se verificam as vendas externas de outros países, apesar da crise, vemos que o país está bem atrasado. Não se trata de um problema cambial. Com uma desvalorização de 28%, diminuímos as exportações de produtos manufaturados, o que é grave. A questão tributária existe, estamos todos de acordo, por exemplo em relação à CPMF, etc. Sem falar no custo Brasil, talvez o entrave mais importante.
Finalmente, temos a mentalidade empresarial, que não é exportadora. Exportamos somente quando há excedente de produção.
Então somente podemos falar em crescimento se formos capazes de ampliar a poupança interna e as exportações. Nenhum partido político fala em aumento da poupança. Gostaria de ouvir sua opinião sobre esses problemas.

DIAS LEITE – De fato, temos a tradição de não nos interessarmos muito por exportação, e não é de hoje. É uma tradição antiga porque o país tem um grande mercado interno. Então, descobrir como surgiu essa dependência externa é uma questão um pouco acadêmica. Não gosto de criticar fatos que aconteceram em outra época, baseado no que se vê hoje. Existiria uma alternativa para a política que foi adotada quando se criou o real? Do ponto de vista atual, é evidente que o caminho escolhido teve um pecado inicial, uma taxa de câmbio que começou errada. O câmbio valorizado, na hora da conversão da URV, não estimulou as exportações. A idéia que predominou, pelo que sei, foi que, com câmbio baixo, as importações introduziriam a competição no mercado interno e ajudariam a estabilização pós-hiperinflação. Com o objetivo de conquistar a estabilidade, houve a fixação do câmbio que favorecia as importações, com prejuízo para os exportadores. Isso durou muito tempo. Houve um erro original, e foi conscientemente que se fez isso. O ministro Pedro Malan disse várias vezes que não haveria dificuldades em equilibrar o balanço de pagamentos, com a entrada de capitais externos.
Digo que precisamos de um círculo virtuoso: aumentar a produção para ter poupança e investir. Temos de estabelecer esse círculo. Ou a economia se desenvolve um pouco e a poupança cresce, ou teremos de fazer poupança compulsória. A dificuldade que chamo de impasse é sair de um estado de estagnação para o crescimento. Os objetivos a longo prazo do Brasil são atingíveis, sem problema. O difícil é superar a situação atual.

ROBERT APPY – Outro dia observei que, no movimento da Bolsa de Valores de São Paulo de um mês, 28% provinham de capital estrangeiro e 17% de fundos de pensão e de investimentos. Isso não é assustador?

ISAAC JARDANOVSKI – Os estrangeiros estão saindo.

DIAS LEITE – Nossa fragilidade externa ficou muito grande.

JULIAN CHACEL – Da exposição do professor Dias Leite ficou em meu espírito a idéia de que, ao repensar uma estratégia de desenvolvimento para o país, que tinha sido interrompida nos tempos de hiperinflação, em que o curto prazo dominava, há pelo menos uma sugestão implícita de uma política industrial, que não será evidentemente aquela dos anos 60 e 70, de reserva de mercado e protecionismo. Mas nesse desenho de uma nova política industrial, ele se referiu de certo modo a ações que o governo poderia tomar sem que houvesse, digamos, represálias internacionais. Que rumo a diplomacia brasileira adotará em relação à Alca? Vi recentemente um trabalho feito por uma instituição chilena sobre uma pesquisa qualitativa de opinião na América Latina a respeito da Alca. Evidentemente, o país mais reticente de todos é o Brasil, mas Chile e Argentina têm uma posição muito favorável, considerando a Alca um elemento de contribuição ao seu desenvolvimento econômico.
Em relação à exportação, gostaria de lembrar que ainda na década de 90 tivemos saldos comerciais que chegaram a US$ 15 bilhões. Evidentemente, se tivessem sido mantidos, reduziriam nossa dependência de capitais externos. Quanto aos investimentos diretos, que têm sido a forma de sustentar o déficit do balanço de pagamentos em conta corrente, é evidente que eles foram dirigidos para a exploração (e aí não existe uma conotação pejorativa) do mercado interno e só indiretamente puderam repercutir sobre nossa capacidade de competição para promover exportações. Talvez tenhamos de fazer uma reflexão a respeito do tipo de investimento que o Brasil deseja daqui para a frente.
Em relação à manutenção da taxa de câmbio a partir da criação do real, que levou exatamente à passagem de superávits substanciais a déficits também substanciais na balança comercial, em minha leitura a proposta inicial do plano de estabilização era combinar durante certo tempo uma taxa de câmbio sobrevalorizada com a solução para a questão fiscal. Como o problema fiscal não foi resolvido – ao contrário, agravou-se –, evidentemente a taxa de câmbio não se poderia manter por tanto tempo estável e sobrevalorizada como ficou.

DIAS LEITE – Quanto aos compromissos internacionais, é impressionante o fato de o país se lançar nesses debates sem ter uma estratégia. Não se pode discutir na OMC com uma política imediatista, porque os compromissos são de longo prazo. Não invejo os diplomatas que estão debatendo a Alca. Sua posição é dificílima, pois não sabem o rumo que vamos tomar e devem defender posições que não sabemos quais são. Essa incerteza refere-se também à política industrial. O pessoal dogmático acha que é ofensivo falar nisso. Foi a política industrial do passado que permitiu construir nosso parque, mas ela abusou dos subsídios, que duraram demais. Deveriam ser temporários e passaram a permanentes. Mas isso não significa que não se deva ter política nenhuma. Para dar confiança às empresas estrangeiras necessitamos de regras estáveis e definidas. Elas precisam de garantias.
A necessidade de definições de política interna faz parte de uma estratégia que não temos.

CLÁUDIO CONTADOR – É interessante a idéia de tentar resgatar um pouco o passado. Olhando para trás podemos ver como a situação do Brasil hoje é muito mais mesquinha do que se pode imaginar. A nação surgiu de um sonho, sonho e audácia. Quando os portugueses resolveram vir para cá, não sabiam absolutamente nada do que poderiam encontrar, mas construíram este país. Hoje, em vez de sonho, temos um pesadelo. Em vez de audácia, estamos ficando cada vez mais pequenos. É mau português, mas é verdade, o termo não é menores, é mais pequenos. Estamos nos tornando mesquinhos, não podemos mais pensar em longo prazo. Da mesma forma que no passado os portugueses eram loucos, hoje continuamos loucos, só que loucos confusos. A maior evidência de como hoje pensamos pequeno está no fato de que Chile, Argentina e outros países já estão pensando em se juntar ao irmão maior enquanto o Brasil insiste no Mercosul, que é algo pequeno. O governo fica muito satisfeito quando crescemos 3%, uma vitória fantástica, mas esquece todo o nosso passado.
Essa é uma tônica de seu trabalho, de que vale a pena voltar a pensar em alguma coisa maior, principalmente a estratégia. Hoje temos um desafio gigantesco na economia brasileira, que é o nível de mudança demográfica e etária. Nos anos 70, as pessoas com mais de 60 anos representavam 5% da população. Para 2002 prevê-se que esse índice chegue a 9% ou 10%. É uma pressão gigantesca sobre o sistema de aposentadoria, previdência e saúde. Naturalmente, não precisamos construir mais tantas maternidades. A mudança é muito grande e exige mais do que nunca não só resgatar o passado como também construir um pouco mais o futuro.
A questão tributária no Brasil não se resolve e não vai se resolver, porque é objeto de uma visão puramente mesquinha, voltada simplesmente para a arrecadação. Então temos a CPMF, a taxação sobre os lucros de investimentos em Bolsa, etc. Estamos afastando cada vez mais o capital, ficamos no curto prazo, na estabilidade. Nesse zelo excessivo em relação à estabilização, lembro a figura de Salazar, que fez isso e paralisou Portugal.

JOSEF BARAT – Foi mencionado o debate entre Gudin e Roberto Simonsen. Na verdade, quando ocorreu, as cartas relativas ao crescimento já tinham sido jogadas. Todas as ações políticas institucionais para a industrialização do país já estavam lançadas. Por que foi possível nos anos 30 e 40 uma articulação de grupos empresariais, políticos, militares, intelectuais, unidos em torno da idéia da industrialização e do crescimento? Por que na transição dos anos 80 isso não foi possível? Ou seja, por que o Brasil conseguiu tirar partido da crise dos anos 30, fechar a economia, industrializar-se, crescer e, apesar de todos os problemas de má distribuição de renda, ter uma melhoria de padrão de vida da população em geral, e não conseguiu fazer isso nos anos 80?
O fato é que hoje não temos uma articulação que leve à definição de uma estratégia. A prova disso é o autismo do governo, que na verdade significa a impossibilidade do compromisso.

DIAS LEITE – Você fez uma pergunta de 50 anos. Mas sou suspeito para dar opinião relativa a certo período, exatamente o da década de 80. Houve uma estratégia no final dos anos 70, a da ilha de prosperidade do governo Ernesto Geisel. O mundo estava com dificuldades e o Brasil isento de qualquer uma delas. Então, com base em um programa em andamento, não só o governo não fez restrição ou acomodação, como aprovou um plano estratégico descomunal. É bom lembrar que ele se propôs a construir, ao mesmo tempo, as duas maiores usinas hidrelétricas do mundo, Itaipu e Tucuruí, além da ferrovia do aço, duas siderúrgicas – Tubarão e Açominas – e oito usinas nucleares. Não há economia que resista a uma megalomania como essa. Nenhuma dessas obras foi concluída no prazo.
Em seguida veio o segundo choque do petróleo, em 1979, ao qual não nos adaptamos também. Então a economia entrou em parafuso, quando a dívida externa começou a crescer.

CHACEL – E o default do México.

DIAS LEITE – Sim, o default do México. Então não foi tanto a culpa de nossa atuação na década de 80. Mas isso é uma interpretação.

EDUARDO SILVA – Em relação à infra-estrutura, tanto de transporte quanto de energia, ela diz respeito diretamente à intermodalidade e à integração. Essa é uma tarefa exclusivamente nossa, não tem nada a ver com outros países. Temos de cumpri-la, porque ninguém vai fazer isso por nós. Precisamos aceitar de uma vez o fato de que os trabalhos de infra-estrutura demandam tempo. Não só planejamento, mas programação e firmeza na hora da execução.
Gostaria de dizer também que, naqueles empreendimentos grandes, hoje vemos com clareza que não foram as obras que chamaram a atenção. Na verdade, elas ajudaram a fechar os balanços de pagamento daquela época, porque tinham financiamento com dinheiro em parte livre para aplicação em outras finalidades. O resultado é que não construímos as obras, e o balanço de pagamentos continua problemático. A infra-estrutura é indispensável para a solução de quaisquer problemas inclusive os sociais.

DIAS LEITE – As obras de infra-estrutura foram utilizadas como captadoras de recursos, que aumentaram a dívida e não ampliaram a produção interna. Vejamos os casos de energia. A Companhia de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul conseguiu um empréstimo externo para comprar equipamento para uma usina que não construiu. Não pagou o empréstimo e não recebeu o equipamento. O governo federal teve de assumir agora essa dívida, referente a uma obra inexistente.

ROBERTO PENTEADO – A aproximação entre universidade e empresa funcionou muito bem e foi a origem da resolução de problemas, em outros tempos. E o governo sempre procurou as empresas também, através de grupos de trabalho. Fui membro do Conselho de Pesquisa Agropecuária do Cerrado e participei do programa nacional da Embrapa por três anos sucessivos. Existia mesmo uma aproximação. Hoje vejo que muitos cargos públicos são preenchidos politicamente, não com as pessoas certas. Já nem sei se existe a qualidade técnica de mão-de-obra nos ministérios, mas pelo pouco que vejo em São Paulo acredito que tudo esteja comprometido.

DIAS LEITE – De acordo. Na organização política ficamos no meio do caminho, porque em 1988 redigimos uma Constituição parlamentarista, na última hora emendada para ser presidencialista de novo. Ela ficou com os defeitos do parlamentarismo e do presidencialismo. Com essa ingerência política na cozinha interna da administração ela ficou muito ruim, piorou em relação ao que era. Sem mencionar o cataclismo Fernando Collor, que acabou com os quadros de administração pública e fez com que acontecessem os fatos que mencionei aqui.

JAN WIEGERINCK – Gostaria de saber o que o senhor entende por país subdesenvolvido, se isso é definido pela renda per capita, índice de pobreza ou outro conceito. Eu estou mais de acordo com a opinião de Peter Drucker, que quando esteve no Brasil, há uns 20 anos, afirmou que não existe país subdesenvolvido, há país subadministrado. Nesse aspecto, parece-me que o problema piorou no governo Collor.

DIAS LEITE – Em primeiro lugar cito a educação. E esse não é um problema recente, pois sempre descuidamos da educação fundamental, é uma tradição brasileira, não é culpa do governo atual. Sempre se considerou melhor criar primeiro um pouco de riqueza para depois investir em educação. Com a introdução da informática, o problema da educação ficou dramático. O subdesenvolvimento decorre essencialmente desse ponto.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Em face da globalização e dos altos e baixos das crises que eclodem aqui e acolá, com reflexos generalizados, o chamado efeito dominó, seria possível pensar-se em uma estratégia de longo prazo para o Brasil, já que a tal planificação estará sujeita de uma hora para outra a inelutáveis desvios de rumo?
Quero registrar que fiquei muito gratificado com sua colocação a respeito da educação. Costumo dizer que vivemos numa pirâmide invertida. A partir do Império a primeira preocupação foi com o ensino superior e só muito depois com o fundamental. Nós desprezamos o essencial e tentamos construir o edifício pelo telhado, esquecendo o alicerce.

DIAS LEITE – Nossa vulnerabilidade nos impede de seguir o rumo estabelecido. Percorremos uma rota perigosa que nos deixou frágeis e sujeitos ao julgamento de analistas financeiros vinculados aos organismos classificadores de risco. São pessoas importantes, como assessores de investidores, que consideram o Brasil uma questão secundária. Fisicamente o país é grande, mas financeiramente é secundário. O ponto crítico é a transição entre a política de prazo curto e a de prazo longo.

SAMUEL PFROMM NETTO – Vou tocar num ponto que é incômodo e controverso. É o crescimento populacional brasileiro. Diziam os nossos avoengos que a quem nada tem Deus dá filhos. Hoje em dia é consenso internacional que ter filhos, e particularmente ter muitos filhos, custa demasiado caro, tanto para os pais como para o país. Gostaria de ouvir sua opinião sobre o peso que tem na nossa conjuntura atual e futura uma população em expansão. Sem perder de vista que houve, é claro, redução da taxa de natalidade, particularmente na última década. Essas taxas de natalidade constatadas nos últimos dez anos, para ficarmos só num tempo limitado, teriam pouco, muito ou nada a ver com a estratégia de desenvolvimento nacional a médio e a longo prazo?

DIAS LEITE – Havia uma dúvida sobre a redução da taxa de natalidade. Parece que o resultado jamais apurado do recenseamento traria a informação de que a redução da taxa não foi tão grande como se esperava, embora o IBGE tenha perdido um pouco de confiabilidade porque também sofreu o impacto do desmonte dos órgãos públicos. São dois problemas diferentes, e daí a dificuldade de encaixar o crescimento populacional na estratégia de desenvolvimento. Se a redução da taxa for muito forte, o topo da pirâmide populacional vai aumentar rapidamente, acarretando muitos problemas, especialmente na previdência. Por outro lado, houve uma velocidade fantástica na urbanização do Brasil, o que trouxe à discussão as questões de saneamento básico, lixo e excesso de crescimento, que as municipalidades não estão conseguindo administrar. Por coincidência a Constituição, penso que não foi por sabedoria, reforçou o poder dos municípios em detrimento da União. Para os municípios é que vão os recursos. O que acontece é que a administração é perdulária em muitos deles.

RICHTER – Nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo, nos últimos dez anos, a população acima de 85 anos cresceu em 11 milhões de pessoas, o que é fantástico. Vive-se mais, e custa mais, principalmente para o Estado, manter essas pessoas em boas condições de saúde e com qualidade de vida. Lá existe também outro dado curioso: há 70 mil pessoas com idade acima de cem anos.

HÉLIO DE BURGOS-CABAL – Os que preconizam o curto prazo esquecem do longo prazo, que para eles não existe. Todavia, isso se radica na pergunta que está no subconsciente ou na consciência histórica de todos nós. Por que os Estados Unidos, que iniciaram sua colonização depois da portuguesa no Brasil, hoje exportam muito mais que nós? O que teria contribuído para essa divergência? Esse debate necessariamente se baseia nas grandes carências da maioria de nossa população, que não são de hoje, começaram na realidade em 22 de abril de 1500 e se acentuaram ao longo do tempo. Essas carências estão impedindo o desenvolvimento brasileiro, afora quaisquer considerações de ordem econômica, etc. O modelo responsável por elas é o político-eleitoral, que se organizou em função de interesses clientelistas e assistencialistas.
Por que o Brasil não aumenta suas exportações? A resposta já foi dada por você. Evidentemente, o motivo é a baixa produtividade individual, condicionada pela saúde e pela educação. A grande causa também foi aludida por você, quando disse que, tendo o empresário nacional à sua disposição um mercado interno protegido, é claro que não vai enfrentar a competição lá fora. Mas há outra razão mais poderosa, de ordem cultural. O Brasil está preocupado apenas com o presente, por força do imediatismo. O futuro não seduz a inteligência brasileira.

VAMIREH CHACON – Há dias os jornais registraram a declaração de uma alta autoridade da República que afirmou que foram muito poucas as exportações brasileiras de 2000 que não tenham sido resultado de investimentos realizados nas décadas de 1970 e 1980. Portanto, daqueles investimentos, nem tudo foi errado. Posso mencionar em especial uma área, a da energia, por motivos óbvios. Sem ela, evidentemente nada se move. Construir e tornar rentável uma hidrelétrica, por exemplo, leva muito tempo. Segundo consta, em torno de dez anos. Nos Estados Unidos, a maior parte das hidrelétricas é de propriedade estatal. Aliás, não só o Brasil sofre com o apagão, como também a Califórnia. Minha pergunta é a seguinte: a contabilidade do Fundo Monetário Internacional tende a considerar a construção, por exemplo, de hidrelétricas não como investimento mas como custo. Como então compatibilizar investimentos estratégicos na base energética com as exigências do FMI?
Outra pergunta: Petrobras, Furnas, Três Marias e Itaipu foram construídas contra as normas do FMI e deram margem a incidentes políticos que a imprensa muito divulgou na época. Como e quando poderá haver de novo vontade política para outras etapas do planejamento estratégico brasileiro?

DIAS LEITE – A dificuldade de pensar no longo prazo se dá porque não estamos encontrando um caminho para a transição.
Com relação à infra-estrutura, especialmente a de energia, é limitativa ao extremo. Estradas ruins arrebentam pneus, estragam os carros, mas as mercadorias são transportadas assim mesmo. Já no caso da energia, se não tem, não tem. Ela é vista com maus olhos pelo domínio financeiro. Isso ficou claro num depoimento recente do ministro da Fazenda, quando afirmou que os recursos não dão para tudo. Todos sabemos que eles nunca são suficientes. É preciso haver o estabelecimento de prioridades de gastos. E a energia não foi prioridade. O objetivo dos financistas do Banco Mundial também é um número virtual no balanço. Se a Petrobras apresentar um resultado e comprar títulos do Tesouro ou fizer qualquer outra aplicação, o país não será penalizado. Mas se ela investir em uma usina, isso será considerado gasto e aumentará o déficit. É um expediente do FMI para apertar o país, dentro dos objetivos financeiros deles.
Quanto ao passado, o período que Vamireh lembrou, havia uma condição contraditória. O FMI, com mecanismos muito restritos, interferia para exigir certas metas, muito mais toscas do que hoje, enquanto o Banco Mundial nos apoiava. O vilão era o fundo e o benfeitor o banco. Hoje o banco saiu, e não temos benfeitor, só o FMI.

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