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Mecanismos viciados

 


Jan Wiegerinck: distribuição de renda independe do grau de pobreza / Foto: Gabriel Cabral

Todo cidadão precisa ter direito à liberdade para aprender, empreender, contratar e trabalhar

A distribuição de renda no Brasil foi tema debatido pelo Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, em sua reunião do dia 13 de setembro. Para iniciar a reflexão foi convidado o empresário Jan Wiegerinck. Nascido na Holanda, Wiegerinck mudou-se em 1955 para o Brasil, onde nove anos depois fundou a Gelre Serviços Empresariais S/A. Naturalizou-se brasileiro em 1972. Na década de 90, expandiu a empresa para a Argentina e atualmente preside a seção latino-americana da União Internacional Cristã de Dirigentes de Empresas (Uniapac).

JAN WIEGERINCK – Gostaria de começar contando um episódio que aconteceu comigo na década de 80. Fui participar de um congresso internacional em Oslo, na Noruega, e quando cheguei ao hotel a camareira me perguntou em português: "O senhor é do Brasil?" Eu logo fiquei curioso por saber o que aquela brasileira estava fazendo lá, e ela me explicou: "Eu sou de Maceió, conheci um norueguês, me casei e vim para cá". Ela disse que gostaria de voltar para o Brasil, mas que lá ganhava 12 vezes mais do que aqui. Em três anos, tinha mandado para a mãe dinheiro suficiente para comprar duas casas – uma para morar e outra para alugar e viver do aluguel. O que me chamou a atenção foi que os executivos com os quais convivi naquele congresso ganhavam o mesmo que os brasileiros. Até hoje me pergunto por que ocorre essa diferença. Por que no Brasil os salários são tão mais diversos do que em outros países? É esse ângulo que gostaria de enfocar: como a parcela da renda nacional gerada pelo trabalho é distribuída entre os que trabalham.

É importante notar que a distribuição de renda num país independe de seu grau de pobreza. Sempre haverá os que ganham menos e que portanto poderão ser considerados pobres. Em minha opinião, a pobreza é até aceitável, pois faz parte da estrutura humana, e nunca seremos todos iguais. Não acredito que devamos desejar uma total igualdade de renda. Mas é necessário distinguir os pobres dos miseráveis. Nunca poderemos eliminar a pobreza, mas a miséria, sim. E é esta que nos deve incomodar. Todos devem viver com dignidade – o que não acontece. E não vejo uma vontade firme de mudar essa realidade.

Os miseráveis não conseguem participar dos mecanismos da distribuição de renda, que acontece basicamente de duas formas. A primeira é a troca, na qual, de um lado, alguém trabalha e, de outro, alguém compra o produto desse trabalho. A segunda é a transferência sem retribuição, que pode ser dividida em dois grupos: a voluntária e a involuntária. A transferência voluntária inclui as doações, o trabalho voluntário, as redes de solidariedade. A involuntária engloba os impostos e, até mesmo, os roubos. Há um terceiro território cinzento, que não sei bem como classificar, que são as transferências de renda provocadas pelos monopólios e reservas de mercado.

Esses mecanismos básicos são regidos pela estrutura jurídica, que tem como dois grandes vetores a justiça distributiva e a comutativa. A primeira rege a distribuição involuntária, e a segunda, a troca. Em minha avaliação, é a justiça comutativa que está no cerne da nossa reflexão.

Aquela camareira de Oslo está trocando o trabalho dela por uma remuneração que na Noruega é muito mais alta do que no Brasil. É uma conseqüência do mercado, que faz parte de um conjunto maior, que co-determina sua evolução. O mercado pode ser regulamentado, acompanhado, mas não mudado. Sabemos que a lei de oferta e procura é absolutamente irreversível. Em qualquer lugar onde se tenta regular o mercado, surge a atividade clandestina, informal. Mas isso não impede que, quando esse mercado não atinja os objetivos desejados, como a distribuição de renda, procuremos a intervenção de um poder maior.

O Estado, em minha visão, age em três níveis. Primeiro, ele faz parte da economia comutativa, pela contratação de pessoas e pela compra de serviços. Em segundo lugar, ele intervém na justiça comutativa, impondo regras como a regulamentação do salário mínimo. No Brasil, o Estado tem falhado completamente na tentativa de conseguir uma distribuição de renda mais eqüitativa nesses dois níveis. Para dar um exemplo, há um ano, o salário mais alto do funcionalismo público era 76 vezes maior do que o mais baixo. Por outro lado, o salário mínimo já existe há mais de meio século e continuamos com a distribuição de renda mais desigual do mundo.

Por que a mudança

A terceira dimensão da intervenção estatal é a aplicação da justiça distributiva. Ou seja, ele tira de uns para dar a outros, cobrando impostos e distribuindo serviços de saúde, educação, previdência, entre outros. Também nesse aspecto nosso Estado tem falhado totalmente.

Diante desse quadro, surge a pergunta: por que mudar? Por que faríamos um esforço para tornar a renda mais igual, se a desigual pode ser considerada perfeitamente natural, aceitável e não é em si injusta? Em minha opinião, a mudança é necessária para evoluirmos para uma sociedade que esteja mais perto da conquista do bem comum, onde todas as pessoas possam com suas próprias forças atingir um padrão de vida compatível com a dignidade humana. Esse é o pilar da distribuição da renda: assegurar às pessoas a possibilidade de desenvolverem seu potencial e se realizarem.

Essa mudança levará à expansão da classe média, que é o esteio de toda sociedade bem-estruturada, onde a paz duradoura pode ser implantada. Nosso país não precisa de igualdade de renda, mas de menor desigualdade. Para isso, são essenciais a vontade de ser justos e a consciência de que o bem de cada um depende do bem comum. O estudioso holandês A. de Swaan diz que a percepção das elites européias de que era necessário coletivizar soluções para os problemas sociais (e que resultou nos Estados de bem-estar social) veio da disseminação da cólera, que convenceu a alta sociedade de que a proteção individual era inócua.

Mas aí vem a pergunta: como mudar? Não acredito que vamos resolver o problema através de uma distribuição de renda forçada, com a imposição de novos impostos. Em minha avaliação, é necessário fazer com que a justiça comutativa funcione melhor em nossa sociedade. Para atingir essa meta, precisamos principalmente da idéia de liberdade total, em vários aspectos da vida social.

Em primeiro lugar, deve haver liberdade de conhecimento e capacitação, o que implica educação, que não é bem equacionada em nosso país. O povo brasileiro é ávido por conhecimentos e temos de lhe garantir a possibilidade de alcançá-los. Outro aspecto é o acesso ao crédito. As pessoas precisam ter recursos para ser livres para empreender. Também é essencial a liberdade de contratar. Nosso sistema contratual, sobretudo o trabalhista, é totalmente engessado. Ele não permite a liberdade de contratação nem de barganha. O trabalhador brasileiro é obrigado a se representar através de um sindicato que não escolheu. Também não há liberdade de produzir – basta lembrar a dificuldade para abrir uma empresa.

Mas qualquer liberdade só existe quando há uma limitação de poder dos outros. Precisamos trabalhar por uma transferência de poder, que resulte em melhor distribuição de renda. Para tanto, quem está com o poder deve se dispor a abrir mão dele, e quem o receber deve querer assumir essa responsabilidade. Em geral, nossa estrutura jurídica se baseia na crença de que quem está em nível inferior é hipossuficiente e dependente. É verdade que existe uma acomodação a uma situação de dependência, mas acredito que as pessoas são capazes de cuidar da própria vida. Apenas precisam ter os meios e o poder para tal.

 

Debate

ARNALDO NISKIER – Retomando seu exemplo inicial, acredito que a disparidade entre o salário de uma camareira na Noruega e no Brasil se repita em todas as atividades que exijam mão-de-obra menos qualificada. E, efetivamente, nos cargos dos grandes executivos, os salários empatam. Esse contraste mostra que o Brasil tem um modelo nefasto de concentração de renda. A Noruega, a Finlândia e outros países fizeram opções que não adotamos. Por exemplo, ainda não optamos pela educação. Basta lembrar que o Plano Nacional de Educação, que deveria estar vigorando há cerca de quatro anos, ainda não foi aprovado.

WIEGERINCK – Concordo com a importância essencial da educação. Mas será que as pessoas precisam de mais condições de ensino para conquistar maior renda ou, ao contrário, de melhores condições de renda para poder aprender? Em minha opinião, é o aumento da renda que fará com que as pessoas se instruam mais. Muita gente não vai à escola porque não tem renda, não tem condições de aprender porque está trabalhando para sobreviver. E acho que a solução não virá através do Estado. Temos realmente de garantir a liberdade de as pessoas adquirirem por si mesmas maiores conhecimentos e se autodesenvolverem.

JOSUÉ MUSSALÉM – Concordo com sua avaliação de que o Estado se mostra incapaz de resolver o problema da concentração de renda. Ele é parte do modelo concentrador, e age como um Robin Hood às avessas: tira de muitos para dar a poucos. Temos como exemplo a taxa de juros, que beneficia o sistema financeiro nacional e internacional.

HÉLIO DE BURGOS-CABAL – Queria voltar ao exemplo da camareira. É preciso notar que na Noruega a oferta de camareiras é mínima, ao passo que em Maceió é infinita. Por isso, a disparidade de salários.
Em relação ao Estado, não podemos pensar que ele é uma entidade supraterrena, com vontade própria. Ele nada mais é do que o conjunto das instituições que fazemos e modificamos através da divisão de poder, isto é, através do Legislativo. No caso presente no Brasil, o Legislativo não funciona bem.

WIEGERINCK – Na verdade, não acredito que sobrem camareiras em Maceió. Eu conheço empresas de turismo que têm muita dificuldade de encontrar no nordeste a mão-de-obra de que necessitam. De qualquer forma, o mercado é muito mais complexo do que a simples lei da oferta e procura.
Por outro lado, é verdade que o Estado somos nós, mas ele é sempre apropriado por aqueles que estão no poder no momento. Toda a luta pela liberdade do homem ocidental tem tido como objetivo proteger-se do Estado, contra o abuso do poder.

SAMUEL PFROMM NETTO – Parece pacífica a existência de uma correlação muito forte entre distribuição de renda e garantia de uma escolarização de qualidade para todos. Nós, brasileiros, temos sido hábeis em criar mecanismos para barrar a mobilidade social e perpetuar desigualdades perversas, como, por exemplo, dar ensino de péssima qualidade para a maioria da população e excelente para poucos felizardos. Como estratégia de mudança, tem se destacado muito o chamado empowerment, para o aumento do poder e da competência das pessoas em geral e não de poucos privilegiados. O senhor poderia comentar o assunto?

WIEGERINCK – Gostaria de contar dois casos que aconteceram em minha vida em relação à educação. Quando meus filhos eram adolescentes, fomos passar as férias nos Estados Unidos, e eu e minha esposa decidimos que eles deveriam ficar lá mais dois meses para aprender melhor o inglês. Fomos até uma escola, perguntamos à diretora se eles poderiam assistir a algumas aulas, e eles começaram no dia seguinte. Já aqui no Brasil, minha esposa teve de insistir durante meses para conseguir inscrever os filhos de nossa empregada em uma escola de São Paulo. Todos os empecilhos burocráticos foram inventados para evitar que as crianças se matriculassem. Eu creio que 90% das mães brasileiras desistem no caminho.

VAMIREH CHACON – Não acredito em nenhuma explicação unilateral e muito menos na "mercadolatria". Acho muito oportuna a ênfase na educação como fator de desconcentração de renda. Parece-me que o Brasil, até certo ponto, está encontrando soluções para o ensino fundamental. Entretanto, quando chegamos ao ensino médio, as dificuldades começam a se multiplicar. Sabemos, por exemplo, que é muito mais fácil os alunos de escolas privadas passarem no vestibular das universidades públicas federais ou estaduais. É um problema perverso que nem de longe está sendo resolvido pelo mercado e que precisa de intervenção estatal.

OLIVEIROS S. FERREIRA – Gostaria de fazer uma pesquisa entre os senhores. Quantos de nós chegamos aonde estamos por meio do ensino público? Muitos pudemos contar com uma boa escola e uma faculdade pública. De maneira que é necessário ter um pouco de cautela com essa afirmação antiestatal, porque poderemos incorrer em erro.
Acho que o problema maior que o senhor colocou é a questão do poder. Destacou que os detentores do poder não vão querer abrir mão dele, mas é necessário que o façam. Eu me pergunto se não é uma posição por demais idealista esperar que eles decidam partilhar esse poder de forma espontânea. Possivelmente muitos dos problemas de distribuição de renda que temos no Brasil decorrem da falta de organização da classe operária. Naquele caso da cólera, tenho a impressão de que Bismarck não estava preocupado com a doença quando criou o Estado de bem-estar social, mas sim com a agitação dos socialistas.

WIEGERINCK – Mas, de qualquer forma, ele conseguiu implantar sua proposta porque havia um ambiente social de medo da cólera. Concordo que um de nossos problemas é a desorganização da classe operária, mas isso tem a ver com a falta de liberdade do trabalhador de se organizar como queira, um mecanismo que foi maquiavelicamente implantado por Getúlio Vargas e que continua em vigor.

MÁRIO AMATO – Voltando para o tema educação, acho importante distinguirmos ensino de educação. A educação é dada pela família, pela religião, pelo ambiente social. O resto é uma formação complementar. Tive a oportunidade de ver mais de 250 mil alunos matriculados no Sesi (Serviço Social da Indústria), e verifiquei que a ética, a moral e os princípios sociais básicos aprendidos na primeira infância são os que perduram para sempre.

WIEGERINCK – Concordo com essa distinção e vou além, pois acho que toda a educação do ser humano se realiza em três níveis: educação, ensino e treinamento.
Em relação à deterioração moral, creio que ela exista, mas não que seja exclusividade brasileira. Ao mesmo tempo, a miséria interior não é monopólio das classes menos privilegiadas. José Ortega y Gasset diz que fazem parte da elite aqueles que exigem mais de si do que dos outros, mas nossas elites fazem exatamente o contrário.

CECÍLIA PRADA – Gostaria de retomar a parte inicial de sua exposição, da qual discordo em alguns pontos. Em primeiro lugar, o senhor afirmou que as desigualdades são naturais e que devem ser tomadas como tal. Evidentemente um porteiro de uma universidade não vai poder ganhar tanto como um professor universitário. Podemos dizer que essa é uma desigualdade, digamos, natural, sem questionar por que cada um deles se tornou o que é. No entanto, se formos objetivos, também existem na realidade brasileira outras desigualdades, como no caso da mulher. Por que a mulher chega a ganhar apenas um terço do que o homem ao exercer a mesma função numa empresa ou instituição? Há também as desigualdades e injustiças relacionadas a idade, raça, etnia. Se fizermos um estudo objetivo, vamos verificar que ainda vivemos uma total falta de democracia racial.
Aproveito para comentar a observação de Chacon. O senhor afirmou que já teríamos uma certa democracia no ensino fundamental. Será mesmo? Segundo as teorias pedagógicas, é na infância que se lançam os dados de toda a personalidade da pessoa. Será que podemos comparar a pré-escola, por exemplo, da minha neta de 4 anos, que inclui aula de inglês, desenho, pintura, festinhas, assessoramento psicológico, com a realidade da maioria das crianças que não podem nem chegar à escola pública?

IRANY NOVAH MORAES – Todo mundo diz que a escola pública é uma porcaria e a particular é formidável. Não acredito que a pública tenha piorado em tudo e que a particular tenha melhorado. Fui diretor do serviço de saúde da Universidade de São Paulo e fiz um levantamento de todos os ingressantes durante quatro anos. Foram 6,5 mil alunos, e 50% deles tinham pais analfabetos ou com educação apenas primária.

FÉLIX SAVÉRIO MAJORANA – Gostaria de retomar o comentário sobre a cólera. O senhor acha que a exagerada insegurança em que vivemos hoje é comparável ao medo da cólera no passado? Uma segunda pergunta: a justiça comutativa não exigiria que alguém abrisse mão de um pouco do que tem para que outro pudesse tê-lo? O senhor falou em igualdade, liberdade. Estaria apontando para uma nova Revolução Francesa?

WIEGERINCK – Em primeiro lugar, creio que nossa insegurança institucional possa, sim, provocar num futuro próximo o mesmo efeito que teve a cólera no passado. Claro que a origem dos problemas é bem diferente, mas a violência pode acarretar mudanças.
Quero esclarecer que não sou a favor de nenhum tipo de revolução. Creio que nenhuma delas resolveu realmente problemas, apenas criou outros. O que nos falta é alterar nossa mentalidade e evoluir com vistas a abrir possibilidades de transferência de poder. O Brasil se desenvolveu, o bolo cresceu, mas a classe média não surgiu. Na próxima fase de desenvolvimento, precisamos nos organizar para produzir mais e distribuir os frutos dessa produção de maneira menos desigual.

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