Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Fazendas alagadas

 


Experimentos com algas em Ubatuba (SP) / Foto: Leonardo Sakamoto

Produção de peixes e crustáceos em cativeiro é negócio da China

ROBERTO HOMEM DE MELLO

Melhor do que dar o peixe é ensinar a pescar. Esse é um argumento bastante comum, usado, por exemplo, para elogiar programas sociais de capacitação profissional e criticar os que se limitam a doar cestas básicas. Para falar mal do mero assistencialismo e bem da sustentabilidade.

Discussões à parte, a frase ficaria mais atual se fosse reformulada. Isso porque pescar já não serve tão bem como exemplo de atividade sustentável. Segundo a FAO, órgão das Nações Unidas dedicado à alimentação, a pesca extrativa parece ter atingido seu limite. Depois de avançar de 18 milhões de toneladas anuais, em 1950, para 56 milhões de toneladas anuais, em 1969, o volume mundial da atividade passou a crescer em ritmo menos intenso. No início da década de 1990, atingiu a marca de 90 milhões de toneladas anuais, "órbita" em torno da qual tem oscilado desde então.

A persistência desse patamar, apesar de toda a tecnologia disponível para a pesca, é um indício claro de que os estoques de pescado "já estão sendo explorados ao máximo", segundo o último relatório da FAO sobre o assunto, com dados relativos a 1999.

As causas desse esgotamento vão desde a pesca predatória, que desrespeita os ciclos de reprodução das espécies e as convenções internacionais sobre o assunto, até os impactos negativos da poluição dos mares e da destruição de criadouros naturais da fauna marinha, como o mangue.

Se o mar não está para peixe, a população mundial continua crescendo e precisando de alimento. Ela só não tem de se conformar em comer uma quantidade menor de pescado porque a produção depende cada vez menos dos espécimes criados apenas pela natureza.

Segundo o relatório da FAO, de 1994 a 1999, embora a pesca extrativa tenha avançado menos que 1%, o total de pescado produzido no planeta passou de 112,3 milhões de toneladas para 125,2 milhões de toneladas. Com tal crescimento – de 11,5%, num período em que a população mundial aumentou 7% –, a quantidade de pescado per capita até aumentou. Em 1994, cada pessoa do mundo tinha uma "cota" teórica de 14,3 quilos de pescado por ano; em 1999, passaram a ser 15,2 quilos.

Mas como? Se uma variável dessa equação – a quantidade de pescado extraída dos habitats naturais das espécies – quase se estabilizou, o que faz a oferta do produto continuar crescendo?

A resposta está numa palavra: aqüicultura. A contribuição cada vez maior dessa atividade na produção mundial tem evitado que falte pescado na mesa do consumidor. Dos 20,8 milhões de toneladas produzidos em 1994, a aqüicultura passou para 32,9 milhões de toneladas em 1999, um salto de 37%. Com isso, apenas nesses cinco anos sua participação na oferta total de pescado elevou-se de 18,5% (em 1994) para 26,2% (em 1999).

Pecuária da água

Definida oficialmente como "cultivo ou criação de organismos que têm na água o seu normal ou mais freqüente meio de vida", a aqüicultura também tem apelido: pecuária da água.

Mais de 200 espécies são criadas em cativeiro com finalidade comercial, mas menos de 20 delas concentram o grosso da produção mundial. Entre esses "rebanhos" mais difundidos, estão peixes de água doce e salgada, como a carpa, o salmão, a truta e a tilápia, além de camarões e moluscos bivalves, como ostras, mexilhões e vieiras (coquilles Saint-Jacques). Apesar de não serem computadas como pescados, também costumam ser incluídas na atividade as rãs e algumas espécies de algas cultivadas sobretudo pelos japoneses.

Embora tenha nichos altamente rentáveis, a aqüicultura guarda uma forte característica de atividade de subsistência ou de alternativa de renda para pequenos produtores (ver matéria abaixo). Tanto que mais de 90% dos empreendimentos aqüícolas são realizados em pequenas propriedades.

É esse o modelo adotado pela China, disparado o maior produtor mundial, com um terço de toda a aqüicultura do planeta. Lá, onde a atividade é praticada há pelo menos 3 mil anos, 5 milhões de hectares são dedicados apenas à piscicultura (cultivo de peixes) e em 1,7 milhão de hectares de terrenos alagados arroz e carpas são produzidos conjuntamente.

No Brasil – onde cerca de 98,6 mil produtores extraíram 115,4 mil toneladas de pescado de 78,5 mil hectares em 1998, ano dos últimos dados completos sobre o assunto – não é novidade a conjugação de agricultura e piscicultura, destinada à subsistência ou complemento de renda. Embora em escala incomparavelmente menor, essa é uma prática comum no país há muitos anos.

Negócio, não subproduto

Mas para Gabriel Calzavara, diretor do Departamento de Pesca e Aqüicultura do Ministério da Agricultura, o panorama tradicional recentemente sofreu mudanças importantes no país. "Desde 1997, começou a haver maior profissionalização e uma abertura para o mercado internacional, e os produtores passaram a encarar a aqüicultura como negócio e não como subproduto da agricultura", diz ele.

A análise de Calzavara busca explicar o extraordinário desenvolvimento que a atividade experimenta no país nos últimos anos. Enquanto na média global a aqüicultura apresentou expansão anual de cerca de 10% na última década – uma taxa que já é notavelmente alta –, no Brasil ela cresceu ainda mais: de 1997 a 2000, foram 26% ao ano.

Segundo o especialista, em 1999, a produção aqüícola brasileira atingiu 157 mil toneladas. Em 2000, pulou para 227 mil toneladas e em 2001 deve alcançar 300 mil toneladas.

Calzavara atribui parte desse resultado ao empenho do ministério em dar apoio técnico e mercadológico ao setor. "Fizemos uma análise para saber quais os peixes mais procurados e quais poderiam ganhar competitividade", diz. Do estudo de cada cadeia produtiva, constatou-se que, das cerca de 25 espécies cultivadas no país, apenas oito eram pelo menos potencialmente competitivas. Depois, com o foco concentrado nessas variedades, foram feitos estudos para resolver obstáculos enfrentados em cada um dos casos.

De cabo a rabo

Uma das espécies selecionadas pelos estudos que o ministério promoveu foi a tilápia. Os técnicos concluíram que esse peixe de água doce, introduzido no Brasil há várias décadas, apresenta uma série de vantagens comparativas (entre elas, o sabor), e pode competir com outros já consagrados como a merluza, o bacalhau e o salmão.

Um dos maiores obstáculos identificados diz respeito à comercialização, uma vez que a produção é muito pulverizada. Para superá-lo, o ministério passou a buscar grupos-âncora regionais para centralizar a distribuição e otimizar equipamentos e instalações de beneficiamento, trabalho que começa a surtir bons resultados, segundo Calzavara.

O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) também desenvolve desde 1996 um programa de aqüicultura baseado na noção de cadeias produtivas agroindustriais. A idéia básica é, por meio de parcerias diversas, apoiar o pequeno produtor no que ele mais precisa: capacitação técnica, acesso aos insumos, financiamento e assessoria na organização e gestão de cooperativas e associações, para viabilizar não só o desenvolvimento da produção mas também a chegada do produto ao mercado.

"A geração de negócios nessa área é muito grande. Pequenos produtores passam do extrativismo ao cultivo com agregação de valor", diz Léa Lagares, da equipe responsável pelo projeto. Para ajudar a difundi-lo, o Sebrae acaba de lançar um manual e uma fita de vídeo com a metodologia desenvolvida até agora.

Aos saltos

O mérito, no entanto, por um dos maiores êxitos da aqüicultura brasileira é dos próprios produtores, que maciçamente adotaram o camarão da espécie Litopenaeus vannamei, o qual se adaptou extraordinariamente bem às águas quentes da região nordeste e passou a proporcionar aos carcinicultores (criadores de crustáceos) saltos de produção e rentabilidade, atraindo muitos investimentos.

De acordo com a Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC), em 1997 a produção foi de 3,6 mil toneladas. Em 1998, já estava em 7,26 mil toneladas; em 1999, saltou para 15 mil toneladas; e em 2000, para 25 mil toneladas (97% na região nordeste).

As exportações apresentam evolução ainda mais espetacular. Os meros US$ 2,8 milhões obtidos em 1998 subiram para US$ 14,2 milhões em 1999 e para US$ 71,46 milhões em 2000. Em 2001, cálculos preliminares indicam US$ 120 milhões.

Graças, entre outros fatores, ao excelente desempenho do camarão na exportação, a balança comercial brasileira do setor de pescados, deficitária há anos, apresentou superávit de US$ 15 milhões no acumulado de janeiro a setembro de 2001.

Animados com a rentabilidade do negócio, os carcinicultores querem expandir a área de cultivo, que em 2000 era de 6.250 hectares. "Em Honduras, são 14 mil hectares; no Equador, país de tamanho equivalente ao do Ceará, são 160 mil hectares", compara Raul Madry, coordenador do departamento de aqüicultura do Ministério da Agricultura.

Em busca de mais espaço nas adjacências da costa, os carcinicultores defendem, com apoio do ministério, uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que permitiria desmatar 10% do mangue para fins de carcinicultura. Mas enfrentam a resistência ferrenha de entidades ambientalistas, que vêem na atividade uma ameaça ao pouco que restou do mangue, considerado pela legislação área de restrição permanente (ver texto abaixo).

A preço de camarão

Bem mais simpática aos ambientalistas é a maricultura, o cultivo de mexilhões. Afinal, a espécie escolhida é nativa, e sua criação foi introduzida sobretudo como alternativa de renda a comunidades afetadas pela crise da pesca artesanal. Antes de esparramar-se por todo o sudeste, a atividade desenvolveu-se muito em Santa Catarina, região tradicional de atividade pesqueira.

Mais recentemente, muitos produtores catarinenses têm aderido à ostreicultura (cultivo de ostras). Graças ao desenvolvimento tecnológico e logístico de alguns grandes criadores, já é possível consumir até em capitais distantes como Salvador e Fortaleza o molusco catarinense – vivo, como deve ser servido. Em Florianópolis, a oferta de ostras – de grandes e de pequenos produtores – é tão farta que os preços estão equiparados aos do camarão, fato inimaginável anos atrás.

Apesar dos problemas enfrentados pelos produtores, a aqüicultura nacional aos poucos começa a colocar alimento de alto valor protéico na mesa do brasileiro. Melhor do que ganhar o peixe é aprender a criá-lo.


Barbas de molho

A carcinicultura tem um inegável potencial de atração de divisas e de geração de riqueza numa das regiões mais pobres do país: o nordeste. Mas também traz riscos ao meio ambiente, que, se não forem evitados, em vez de gerar mais empregos podem eliminá-los.

Basicamente, isso acontece porque há empreendimentos que, para implantar a carcinicultura, devastam faixas de mangue, vegetação protegida por lei como área de restrição permanente por servir de berço a inúmeras espécies. Além de ameaçá-las, a destruição do mangue compromete toda a cadeia alimentar marinha. Desse modo, tira o meio de vida de milhares de pessoas da região que vivem daquilo que extraem do mangue, além de afetar indiretamente a pesca. Isso aconteceu em países como a Tailândia e o Equador, dois dos maiores produtores mundiais de camarão. Tanto que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu ao Ministério do Meio Ambiente que intervenha nos debates sobre a legalização da carcinicultura, a fim de impedir a instalação de viveiros de camarão em áreas de mangue na região nordeste, onde essa atividade cresceu de maneira explosiva nos últimos anos.

Segundo o professor Pedro Galetti, da Universidade Federal de São Carlos (SP), é fundamental desenvolver uma aqüicultura sustentável. Para ele, além de evitar a devastação dos mangues instalando o cultivo de camarões em outros locais, é preciso cuidar dos canais efluentes (que levam a água dos tanques para o ambiente próximo) e desenvolver programas de recuperação das áreas atualmente ocupadas.

Para reduzir esses impactos, Galetti recomenda o policultivo (associação com peixes, moluscos e algas) e o manejo adequado dos tanques de engorda do camarão. "Uma cuidadosa atenção para impedir o escape dos camarões exóticos (não-nativos) também é necessária a fim de evitar riscos de competição com a fauna nativa", diz ele.


Pescado à vista

Novas técnicas de criação revolucionam a vida de antigos pescadores

LEONARDO SAKAMOTO

"Tinha tanto peixe que a praia chegava a ficar roxa. A gente precisava abrir a rede e deixar eles irem embora para conseguir voltar com o barco. E olha que, naquele tempo, não havia essas coisas de nylon... Se existissem, tinha ficado rico." Hélio conta histórias de 40 anos atrás enquanto, lentamente, remenda a trama de sua rede para a próxima pescaria. Mora em uma casa construída sobre as pedras que separam as praias de Almada e do Engenho, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo.

Aos poucos, as coisas foram mudando. Os grandes barcos de pesca começaram a fazer uma concorrência desigual às pequenas canoas de madeira. A abertura da rodovia Rio–Santos levou desenvolvimento para a região e, como conseqüência, profundas alterações ambientais. E o peixe sumiu. "Antes dava para pegar 30, 40 quilos. Hoje, se a pessoa volta com quatro, cinco, já deu sorte."

Nesse contexto, a introdução da aqüicultura vem sendo responsável por uma revolução entre pescadores artesanais e comunidades caiçaras, além de pequenos produtores rurais e até a gente castigada pela seca no sertão nordestino. Pessoas que encontraram nessa forma diferente de fazenda uma atividade rentável, que garante a renda familiar sem prejudicar o meio ambiente.

A criação de mexilhões é um exemplo claro dessa mudança, que está trazendo uma alternativa economicamente sustentável ao litoral norte paulista. A base de desenvolvimento e difusão da tecnologia empregada é o Núcleo de Pesca e Aqüicultura do Instituto de Pesca – órgão ligado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Desde 1976 vêm sendo aprimorados processos de criação que, gradualmente, são repassados às comunidades.

No início, os pescadores eram avessos à idéia da criação de mexilhões. Trabalhos de conscientização em escolas isoladas nas praias sobre os benefícios dessa prática fizeram com que os filhos levassem a novidade aos pais, como conta Ricardo Toledo, pesquisador do instituto. Hoje, a produção anual passa de 200 toneladas, totalmente comercializadas na própria região.

A Associação dos Maricultores do Estado de São Paulo (Amesp), criada em 1998, reúne 114 membros, dos quais 77 são produtores espalhados de Ubatuba a Ilhabela. "Isso se deve ao relevo. Nessa faixa, há praias com remanso onde pode haver criação", conta Alexandre Novaes, ex-presidente da entidade e estudante de biologia. Bons resultados também vêm sendo obtidos na região do Pontal, na ilha do Cardoso, extremo sul do litoral paulista.

A criação de Alexandre fica na ponta do Barroso, no canto direito da baía de Ubatuba, e como todas as outras só é acessível de barco. Para a produção utiliza-se uma estrutura chamada de long-line – cordas com 50 flutuadores dispostos a cada metro. Submersas com os mexilhões, cem redes, de 2 metros de comprimento, são presas nessa linha. A produtividade, segundo ele, é de 10 quilos por metro de rede, ou 2 toneladas por long-line, colhidos a cada sete a oito meses.

O material é simples, e cada estrutura custa em torno de R$ 1,5 mil. A esse valor acrescentam-se gastos com manutenção e outros equipamentos essenciais. No atacado, o quilo do mexilhão é comprado a R$ 3 em Ubatuba.

"Nada vira lixo. A própria rede, quando não dá para usar mais, é trançada e vira coletor de sementes", afirma Alexandre. "Sementes" é o nome que se dá aos mariscos pequenos, colocados para engorda. Metade delas vem da extração cuidadosa, feita nos bancos naturais nas rochas, e o restante de um coletor instalado próximo à criação.

Segundo o produtor Marcos Nogueira, que possui com Alexandre uma parceria de trabalho, o mexilhão atrai outras espécies, o que transforma o entorno da criação num caldeirão de vida. Um verdadeiro recife natural, como se pode observar pela quantidade de peixes, crustáceos e outros moluscos que se prendem nas redes.

Defensores do ambiente

Euzébio Higino de Oliveira, conhecido como "Gino", evangélico, de fala mansa, trabalhou boa parte de sua vida em grandes barcos de pesca. Em 1993, ele e a esposa começaram a cultivar mexilhões na praia de Barra Seca, em Ubatuba, onde moram, usando apenas uma long-line. Depois de muito trabalho, hoje, com cinco linhas e uma média de produção de 5 a 6 toneladas, ele está se preparando para que a safra de 2002 possa render duas vezes mais.

"Estou preservando a natureza, garantindo que tudo isso aqui possa continuar existindo para meus filhos, meus netos. Se o mar não estiver limpo, como eles vão produzir?" Os criadores acabam se transformando em fiscais da natureza, de olho, por exemplo, na proliferação exagerada de marinas e no aumento do tráfego de barcos ou do despejo de materiais poluentes. Gino tem planos de expandir o negócio para o cultivo de ostra, camarão e algas.

O Instituto de Pesca, em parceria com o Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, está desenvolvendo tecnologia para o cultivo de camarão e algas. As espécies de algas pesquisadas produzem dois tipos de gelatina, a carragenana e o ágar-ágar, empregados na fabricação de alimentos industrializados. São utilizados como estabilizantes e espessantes em achocolatados, pastas de dentes, alimentos dietéticos e cervejas, entre outros. Segundo Ricardo Toledo, de 80% a 90% das carragenanas consumidas no mundo são obtidas através de cultivo, e o preço da tonelada da alga seca é de US$ 800. Natural das Filipinas, essa espécie vem apresentando excelentes resultados nos experimentos em Ubatuba, com taxa de crescimento de 4% a 8% ao dia.

Cooperativismo

A fazenda Mandira, em Cananéia, tinha 1,2 mil alqueires, vários escravos e ainda resiste nas ruínas de pedra do engenho de pilar arroz e na comunidade quilombola que levou seu nome. "Em 1860, as terras foram passadas para Francisco, filho bastardo do amo com uma negra", conta Francisco de Sales Coutinho, 43 anos, pertencente à sétima geração de descendentes. "O engraçado é que o sobrenome de quase todo mundo aqui é Mandira."

Os habitantes do local estão requerendo o registro de remanescente de quilombo no Instituto de Terras do Estado de São Paulo. Com esse documento, a comunidade terá maior facilidade, por exemplo, para obter crédito agrícola. Pescadores tradicionais, os moradores de Mandira coletam ostras há 30 anos.

A prática é tão comum na região – uma das últimas áreas de Mata Atlântica preservadas no país – que a fama de suas ostras se espalhou. Durante décadas foram colhidas nos manguezais pela população local, em uma atividade extrativista sem planejamento ambiental ou cuidados sanitários e explorada por atravessadores que pagam o que querem pelos produtos. Isso vem mudando com a união dos moradores e o apoio técnico de institutos, como o de Pesca e o Florestal, além da Fundação Florestal, ligada à Secretaria Estadual do Meio Ambiente.

Um projeto para a criação da Reserva Extrativista do Bairro Mandira (Rema) foi premiado pelo Ministério do Meio Ambiente com uma verba de US$ 180 mil. Esse investimento não beneficiou apenas aquela localidade, mas foi expandido para todo o município com a criação da Cooperativa dos Produtores de Ostra de Cananéia (Cooperostra), que tem Francisco como presidente.

Fundada em 1997, a entidade é formada por 43 pequenos produtores, que utilizam mão-de-obra familiar. São comercializadas, em média, 3,2 mil dúzias de ostras por mês, e esse número cresce nos meses de alta temporada. Em janeiro de 2001, por exemplo, foram vendidas 7,5 mil dúzias. "Por ano, o movimento atinge cerca de 40 mil dúzias", informa Milton Wolf, gerente administrativo. Os produtos da cooperativa possuem o selo do Serviço de Inspeção Federal (SIF), que garante sua qualidade.

A ostra deve ser vendida viva e livre de contaminações, do contrário pode causar intoxicação alimentar. Para garantir a qualidade do produto e eliminar agentes nocivos que o animal possa ter ingerido, a entidade construiu uma depuradora. Como são animais filtradores, as ostras são postas em água salgada totalmente livre de impurezas e realizam uma operação de autolimpeza.

Todo o processo, da coleta no mangue à embalagem (feita com bagaço de cana reciclado), é ecológico e não deixa resíduos. Além disso, a cooperativa realiza as entregas em veículos climatizados – devido ao curto prazo de validade e à perecibilidade do produto. Os clientes vão de quiosques, bares e restaurantes da região de Peruíbe a Ubatuba até os grandes centros, como Campinas e São Paulo.

Tabuleiros

A comercialização do animal ainda vivo é melhor para o produtor, o consumidor e o meio ambiente. A prática comum de vender potes de ostras desmariscadas (fora da concha), além de render valores irrisórios, não possui garantias sanitárias. Segundo Marcos Bührer Campolim, diretor do Parque Estadual da Ilha do Cardoso, desde que o projeto foi implantado, o número de ostras comercializadas dessa forma diminuiu consideravelmente.

Diferentemente do mexilhão, a ostra não tem estrutura de fixação e, uma vez retirada, não volta a se prender. Por isso, foram desenvolvidas técnicas de manejo que incluem a utilização de um tabuleiro construído em madeira e tela, de 1,5 por 10 metros, montado no próprio mangue. Coletadas nos bancos naturais – mangue vermelho – quando têm de 5 a 10 centímetros, como manda a legislação, são colocadas nessas estruturas para a engorda. Manter a ostra em seu habitat durante a engorda garante a produção de larvas e a continuidade do ciclo.

O investimento para iniciar uma criação é mais baixo que o do mexilhão. A estimativa é de R$ 90 por viveiro, mas há criadores que não gastam nem isso para montar um tabuleiro com capacidade para 250 ostras. O produtor recebe R$ 1,70 pela dúzia de ostra média, que é vendida pelo preço máximo de R$ 5 – essa diferença paga a estrutura da cooperativa. Segundo Miguel Pires, responsável pela distribuição, os atravessadores chegam a dar apenas R$ 0,80 pelo mesmo produto ao coletor.

O exemplo da Cooperostra se espalhou e mesmo quem não faz parte da cooperativa já está utilizando tabuleiro para engorda. "O que falta é introduzir a captação de sementes em ambiente natural", afirma Ingrid Cabral Machado, pesquisadora do Instituto de Pesca. O trabalho com as sementes aumentará consideravelmente a produção.

Sertão vai virar mar

A maior parte da água encontrada sob o semi-árido nordestino é salobra, imprópria, muitas vezes, até para o consumo animal. Entretanto, está sendo utilizada com sucesso para a produção de camarões em pleno sertão.

O Programa Xingó, que tem como objetivo fomentar o desenvolvimento sustentável na região de influência do rio São Francisco entre os estados de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, vem implementando projetos de aqüicultura. Dentre eles, destaca-se a criação de camarões de água salgada, utilizando uma estrutura de uso múltiplo da água subterrânea. Após ser bombeada até a superfície, parte dela recebe tratamento para ser usada em consumo humano e animal. O que é rejeitado vai para os tanques de criação e hortas, implantadas com espécies vegetais resistentes.

O camarão selecionado é o branco (Litopenaeus vannamei), natural da costa do Pacífico, do golfo da Califórnia ao Peru. A espécie eurialina (que suporta grande variação de salinidade) é bastante cultivada em todo o mundo e, em nosso clima, pode atingir o tamanho comercial – a partir de 13 gramas – em quatro meses. Segundo Ruy Cardoso Filho, engenheiro de pesca responsável pela área de carcinicultura do Programa Xingó, estima-se uma produtividade de 2 toneladas por hectare por safra (duas ao ano). O sertão tem uma vantagem: as altas temperaturas durante todo o tempo aceleram o crescimento do animal.

Em Morro Vermelho, no município sergipano de Poço Redondo, chove de 300 a 500 milímetros por ano, o que inviabiliza o roçado. Evaldo Correia dos Santos é morador do vilarejo e há três anos participa do projeto com mais 15 famílias da comunidade. A produção atual – considerada baixa – gira em torno de 1,2 tonelada por hectare, num espelho-d’água de 418 metros quadrados. Com o repovoamento feito em 1º de novembro nos três tanques de camarão do projeto, que inclui, além de Morro Vermelho, a aldeia Pancararu, em Jatobá (PE), e o assentamento Japão, em Pão-de-Açúcar (AL), a produtividade deve aumentar.

"Há muitos poços tubulares parados por ter salinidade excessivamente elevada, que os torna impróprios até para o gado, e que poderiam ser aproveitados", afirma Ruy Cardoso. A produção, no entanto, não será igual à obtida no litoral, entre outros fatores, por falta de renovação da água – o que impede a produção em larga escala.

O investimento inicial fica em torno de R$ 22 mil para cada 10 mil metros quadrados de lâmina-d’água, incluindo toda a infra-estrutura e insumos necessários a duas safras. Cálculos preliminares indicam que o retorno acontece entre um e dois anos.

Custo-benefício

"Sempre tenho, pelo menos, 100% de lucro com meus peixes." Em 1996, Orlando Sprcido, 69 anos, instalou dois viveiros de 600 metros quadrados cada para começar uma criação. Os tanques ocupavam uma minúscula porção de sua já pequena propriedade, de cerca de 10 alqueires, no município de Assis, oeste do estado de São Paulo. Na mesma época, plantou 5 alqueires de milho, o equivalente a cerca de 120 mil metros quadrados ou cem vezes a área destinada aos viveiros. Para surpresa de todos, no final, o lucro obtido com a venda do pescado foi apenas um pouco inferior ao do cereal. "E, se não tivesse dado doença em um dos tanques, teria sido a mesma coisa."

De lá para cá, já foram oito safras, e o negócio vem sendo tão bem sucedido que outro viveiro foi construído, este com mil metros quadrados. Com lucro estimado em aproximadamente R$ 5 mil para este ano, a piscicultura se transformou na principal fonte de renda da família, sem que tenha sido feito muito esforço.

Pequenas e micro propriedades rurais estão se beneficiando com a introdução de técnicas de manejo para criação de peixes. Por enquanto, 30 dos 42 municípios que compõem o Comitê da Bacia Hidrográfica do Médio Paranapanema já foram avaliados e têm recebido apoio para o desenvolvimento da atividade. "O levantamento indicou que havia demanda para organizar os produtores e repassar a tecnologia do Instituto de Pesca", informa Luiz Ayrosa, pesquisador responsável pela base da entidade em Assis.

Já havia criadores na região, contudo o acompanhamento do instituto, que se iniciou em 1994, propiciou um salto nos números. Entre 1995 e 1996, a produção era, em média, de 4 toneladas por hectare ao ano, e havia cerca de 180 criadores. Hoje, a estimativa fica em torno de 15 toneladas anuais por hectare para os mais de 600 produtores.

Para se construir viveiros numa propriedade são necessários topografia específica (declividade entre 5% e 10% e solo argilo-arenoso) e água boa e em quantidade. O investimento inicial, incluindo toda a infra-estrutura, é de, no mínimo, R$ 15 mil para cada 10 mil metros quadrados. O negócio pode ser tocado pela própria família, como é o caso de Orlando e sua esposa, que não têm empregados. Eles aprenderam as técnicas e depois foram desenvolvendo as melhores soluções para os problemas de sua criação, como os cercados de tela que instalaram para afastar lontras e ariranhas, que roubavam os peixes.

O retorno do investimento é rápido. Hoje, o custo de produção em viveiros para a tilápia, carro-chefe da piscicultura brasileira, é de R$ 1,60 o quilo do peixe vivo, enquanto é vendido a R$ 2 – quando retirado pelo comprador. O preço varia para outras espécies, como o pacu, o piauçu e a carpa, também utilizadas na região. Segundo o pesquisador, atualmente o principal destino do peixe do médio Paranapanema são os 800 pesqueiros espalhados pelo estado, dos quais cerca de metade está num raio de cem quilômetros em torno da capital paulista.

Segundo Ayrosa, a tendência é começar a vender para redes de supermercados, peixarias e feiras livres ou o próprio Ceagesp, o que garantiria uma remuneração maior que os pesqueiros. Porém, algumas empresas pedem periodicidade semanal na entrega dos produtos. Como, na melhor das situações, colhe-se uma safra por ano nos viveiros e três a cada dois anos nos tanques-rede, teria de ser estabelecido um planejamento com prazos distribuídos entre os criadores.

Hoje, o vínculo principal entre os produtores está na compra de insumos, como ração e alevinos. "O produtor é muito individualista. Se houvesse mais organização, já estaríamos com uma fábrica de rações – que representa 70% do custo de produção – e uma processadora, porque os projetos estão prontos", diz Ayrosa. Para se ter uma idéia, a Associação dos Aqüicultores do Vale do Paranapanema possui apenas 50 associados. "Quando começarmos a agregar valor, produzindo filés, sticks, hambúrgueres, aí o negócio estoura", completa ele.

Tanques-rede

Um importante projeto que está sendo introduzido pelo Instituto de Pesca na região é o de cultivo de peixes em tanques-rede – gaiolas submersas feitas de telas de arame revestido de PVC, que são colocadas em açudes ou represas para o confinamento da criação.

O objetivo é tirar o pescador artesanal da atividade extrativista e possibilitar que ele comece uma fazenda própria de criação de peixe, utilizando, para isso, o próprio Paranapanema. Os reservatórios de Canoas I e II e Capivara, uma lâmina-d’água com mais de 40 mil hectares, têm um potencial de produção praticamente inexplorado. Técnicos de extensão rural serão capacitados para passar a tecnologia aos futuros criadores.

A Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo assinou a liberação de R$ 2,6 milhões do Fundo de Expansão da Agropecuária e Pesca para a implantação de cem projetos de tanques-rede. Dependendo apenas da ratificação do governador, a verba será utilizada para financiar o investimento inicial, com taxas de juros de 4% ao ano e dois anos de carência.