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Encontros
Futebol sem povo
por Juca Kfouri
Eu acho que se simplificou muito a situação do futebol no Brasil. É claro que o governo brasileiro usou o futebol, como os Estados Unidos usaram o basquete, ou o governo soviético, o cara que foi para a Lua. É comum que os governos queiram explorar seus heróis, mas é obviamente uma simplificação querer imaginar que o eleitor brasileiro confundiria o general Médici com o Tostão. Basta ver que imagem a história reservou para um e para outro.
Enfim, comecei a trabalhar, e começei então a ter uma visão diferente como torcedor e como espectador. Uma visão muito menos romântica e idealizada, muito mais sombria. O futebol não é uma coisa separada da vida nacional. Ao contrário, ele integra a vida brasileira de tal sorte, que eu diria, sem medo de errar, que o futebol será a última coisa a mudar no Brasil. Se a gente tem consciência de que o pior da ditadura não é o período em que ela vigora e sim o pós - as gerações castradas, a pouca prática democrática, todos os medos que se manifestam -, o futebol brasileiro será a última instituição nacional a ser sacudida, limpa e a permitir que o torcedor seja tratado como cidadão. E aí está muito da origem da minha cruzada, do meu sacerdócio, ou, o que muitos tentam pejorativamente tratar como quixotismo, desta minha permanente indignação com a corrupção no esporte brasileiro.
Futebol como negócio
Com freqüência as pessoas reclamam, e com certa razão, dizendo: "No domingo vai ter decisão do campeonato e hoje você fala do Ricardo Teixeira e não da decisão". Eu falei de um contrato ilegal ou antiético e não do gol do Marcelinho. Mas sei que pra falar do gol do Marcelinho tem um monte de gente, mas não tem quem ponha o dedo na ferida, por mais chatos e áridos que sejam esses temas. O que me leva a essa indignação é a necessidade de tratar o torcedor de futebol brasileiro como cidadão. E quando falo de cidadão não estou falando de consumidor, porque agora tem essa confusão, estão reduzindo o cidadão a consumidor. Acho ótimo o código do consumidor, que é um passo adiante, acho que é um aspecto indiscutível da cidadania, mas não se reduz uma coisa a outra. O cidadão torcedor do Brasil é maltratado em todos os aspectos. Nos estádios e na frente da televisão. Os horários são os mais incômodos, a desorganização faz um jogo programado para sábado ser adiado para domingo. A gente planeja a vida pra assistir ao jogo, mas não adianta nada, às vezes doze horas antes de o jogo acontecer tudo muda. Há um total desrespeito ao torcedor. Ele simplesmente não vai ao campo, ele vira de costas. O campeonato brasileiro tem uma média de público de 7 mil pessoas, enquanto os europeus têm uma média 32 mil. Cinco vezes mais do que a do país do futebol.
A estrutura do esporte é extremamente reacionária e corrupta, não é capaz de raciocinar a não ser nesses termos. Isso explica nossa miséria esportiva, porque aí, por mais paradoxal que seja, não estou preocupado se o Brasil vai ser campeão olímpico. Ao mesmo tempo temos desperdícios que são indesculpáveis. Temos equipe de remo, de canoagem, e não tem ninguém do rio Solimões.
Por que a imprensa, que está fortemente cobrindo essa questão de corrupção, não avança na questão de moralidade? O Rubem Braga já dizia que o esporte precisava de uma Semana de Arte Moderna, e continua precisando. Boa parte da imprensa esportiva brasileira vive promiscuamente com esse poder. Os mais notórios viraram empresários de atletas, vendedores de placa, promotores de evento, muito menos do que jornalistas. Por outro lado, a pequena banda preocupada com isso, se não consegue vitórias jornalísticas, consegue que hoje existam CPIs examinando essa questão.
Mas existe uma barreira ideológica. Por ser chato, o assunto não atrai leitor, espectador. "Vamos falar do gol, não da corrupção. Até porque não adianta falar, ela vai continuar". A sentença pré-julgatória é dizer que a CPI vai acabar em pizza. Não há nada mais confortável do que isso. Porque é uma maneira de se desresponsabilizar, de não investigar. O relatório da CPI da Nike possui setecentas e poucas páginas. É um belíssimo guia para mim. Uma pauta infindável para jornalistas não preguiçosos.
Jogos Olímpicos
Um pretenso boom de outros esportes começou a ser vendido pela mídia, uma imagem de que o país deixou de ser um país monoesportivo. Mentira. Porque se vemos um ginásio de 2,5 mil pessoas com 2 mil, falamos que é um fenômeno. Mas se colocarmos esse público no Maracanã ou no Pacaembu, o estádio estará vazio. E dessas 2 mil pessoas, 1800 estão com a camiseta do Banco do Brasil, do Leite Moça, porque foram pagas, são funcionários dessas empresas. Aí as pessoas vão para as Olimpíadas de Sydney e dizem que foi um fracasso, mas na verdade foi um sucesso. Por que acharíamos que o Brasil poderia ter um desempenho melhor do que teve? Por conta de que política? É espantoso que o Brasil fabrique um Guga, um Gustavo Borges, um João do Pulo. É tudo geração espontânea.
E vou além, não estou nem um pouco preocupado se o Brasil vai ser campeão olímpico. Eu estou preocupado com que as pessoas pratiquem esportes pelo simples prazer de praticar esportes, que tenham acesso aos esportes, que pensem que o Ministério da Saúde é o Ministério dos Esportes, e que haja a possibilidade da prevenção de doenças por intermédio dos esportes, que se dê acesso aos menores carentes, à terceira idade, aos portadores de deficiência.
O Brasil acabou em Sydney na frente da Suécia e do Japão. Em Atlanta, o Brasil acabou na frente da Grã-Bretanha. Nós praticamos mais esportes do que esses países? Obviamente, não. Isso quer dizer que a medição de medalhas é falsa, principalmente quando se trata de um país com as nossas carências. Falta política industrial, educacional e esportiva para o Brasil. Nunca tivemos nem arremedo disso. É obrigação do Estado prover esporte para o cidadão. Esporte de alto rendimento não é questão do Estado, é para a iniciativa privada, porque dá muito dinheiro.
Eu acho que ainda tem jeito. Se algumas coisas começarem a ser feitas hoje, em dois anos começaremos a ver os resultadol. A cada eleição, eu acho que as coisas melhoraram, as coisas caminharam. No esporte, estamos vivendo o desespero final de muita gente. Estão raspando o tacho porque sabem que vai acabar, que vai entrar uma nova era. Porque esse negócio é bom demais - e o capitalismo vai ganhar dessa gente. O capitalismo vai falar: "Ora, não estamos mais na fase da acumulação primitiva. Isso é pirataria. Vamos fazer isso direito".