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Entrevista
Ademir da Guia

Em entrevista à Revista E, o campeão, citado até por João Cabral de Melo Neto, fala da emoção de ter participado da época de ouro do futebol brasileiro

Ademir da Guia foi um dos melhores meias que o futebol brasileiro já produziu. Colocação impecável, calma irritante e um passe perfeito talvez sejam os principais atributos do jogador que se transformou no maior mito da Sociedade Esportiva Palmeiras. Com sua técnica apurada e seu estilo tranqüilo e elegante, Ademir deslumbrou multidões e conquistou uma série de títulos importantes. Sua trajetória pelo futebol é o tema do livro do maestro e escritor Kleber Mazziero de Souza, Divino - A vida e a arte de Ademir da Guia, recentemente lançado no Sesc Bauru, que contempla a vida e a carreira do jogador que se tornou símbolo da discrição e da eficiência no futebol brasileiro.

Como foi saber que queriam fazer um livro sobre sua vida?
Nós vínhamos, há uns três ou quatro anos, com a idéia de fazer um livro. Só que existem algumas dificuldades, que fomos superando. Não foi fácil. Agora, ter um livro é uma coisa muito boa. É uma coisa que fica. Você pode deixar para sempre. A gente joga, eu, por exemplo, durante vinte anos, mas a gente passa. O livro é bom porque conta também a história do meu pai, que não teve chance de fazer um livro. A gente mostra um pouquinho do início da nossa vida, minha infância, o futebol.

E como foi o processo com o autor?
Eu e o Kleber conversamos durante bastante tempo, mais de um ano. Depois ele foi procurar as pessoas que jogaram comigo, e também com meu pai, para poderem dar depoimentos. Eu também tinha algumas fotos que passei para ele. Durou algum tempo, mas foi um processo normal.

Dos momentos narrados no livro, qual foi o que mais te emocionou?
Olha, eu acho que os depoimentos dos colegas, o prefácio do Sócrates. Gosto muito das fotos, você vai vendo, vai lembrando. Você pára e fica vendo aquele jogador que você não vê há muito tempo, uma equipe em que jogou. Isso tudo emociona.

No livro tem um poema do João Cabral de Melo Neto sobre o senhor. O senhor lembra da primeira vez que o viu?
Foi emocionante. A primeira vez que eu vi o poema foi no jornal. As pessoas vieram me falar, me cumprimentar. Tudo isso que se fala da gente, coisas que muitas vezes você nem espera que vá acontecer, é emocionante. Também tem uma música que foi escrita pelo Arnon Rodrigues, cantada pelo Moacyr Franco. São coisas que a gente fica contente por fazer um trabalho que as pessoas reconhecem, valorizam.

Você foi eleito o melhor jogador do campeonato paulista algumas vezes, mesmo enquanto o Pelé jogava no Santos...
Naquela época nós tínhamos muitos prêmios. Recebi alguns, como em 72, quando ganhamos praticamente tudo. Eu não me comparo com o Pelé porque acho que ele jogou sempre muito bem. Sempre mereceu troféus. O mais importante é poder participar bem do campeonato, algumas vezes ser o melhor na sua posição.

Durante a carreira de um jogador, dá para imaginar que um dia a glória pode acabar?
Não dá, o jogador está naquilo e às vezes tem a ilusão que depois pode continuar a carreira como técnico, como auxiliar. Mas são poucos que continuam. Só quando ele pára, e as dificuldades vão surgindo, que ele vai entendendo. Antes é muito difícil. Tem que colocar isso na cabeça dos meninos logo no início.

Não dá uma certa melancolia olhar para um passado tão glorioso, sabendo que depois a maioria dos jogadores fica a mingua?
Isso é a nossa vida. Acontece muito. Quando você joga, você é um ídolo, tem uma condição boa. Depois você pára e tudo termina. Existem países que são diferentes. Nosso povo parece que não tem muita memória. As coisas passam muito rápido. Pelo menos você tem aquele presente, porque, depois, no futuro, se não tiver condições de continuar em um trabalho, realmente fica a mingua, é tudo difícil. É importante que os atletas de hoje estudem para que possam, quando parar, continuar num trabalho fora do futebol.

O senhor tem consciência do quanto representa para o futebol brasileiro?
Eu tenho, porque faz 23 anos que eu parei, e o carinho que eu ainda recebo das pessoas é imenso. Muita gente me viu jogar, alguns tiveram contato comigo. Eles me agradecem, falam. Eu sinto esse carinho. Tenho a consciência daquilo que eu representei, daquilo que eu fui.

O senhor se sente recompensado por tudo aquilo fez?
Eu acho que cada época é uma época. Na época do meu pai foi de uma maneira. Na minha época foi de outra. Hoje é ainda mais diferente. Eu acho que a gente não pode falar "se fosse hoje". Hoje tem a televisão e muito mais recursos. Você não pode querer comparar o presente com trinta anos atrás.

O senhor viu seu pai, o Domingos da Guia, jogar?
Não vi, não deu tempo. Quando ele parou, eu tinha seis anos, em 1948. Naquela época não tinha televisão. Mas ele me orientava, a gente conversava, ainda que ele sempre tenha morado no Rio e eu em São Paulo. O futebol é aquele negócio, a gente fala dia e noite sobre a seleção, sobre o Palmeiras ter ganhado ou perdido.

O que ele representa para o senhor?
O que eu sempre ouvi falar é que meu pai foi um dos melhores jogadores da posição dele. Não só no Brasil, mas no mundo. Ele sempre representou um craque, que as pessoas na rua cumprimentavam, falavam, paravam. Eu entendi sempre que ele foi realmente o Divino, apelido que foi dado no Uruguai, o Divino Mestre
.
É uma responsabilidade ser o filho do Divino?
Não, para mim não foi responsabilidade. Sempre me abriu as portas em todos os lugares que eu fui. Mesmo no Bangu, quando eu fui treinar pela primeira vez. E a comparação que faziam não incomodava. Era legal, era bom. Sempre me ajudou ter sido o filho de um grande jogador.

E seu filho? Está começando a carreira?
A gente está vendo que ele está caminhando no futebol. É uma expectativa. Ele está na escola e está jogando. Amanhã, se ele precisar que eu ajude, vou estar aqui. Acho que o pai tem essa alegria de poder levar o filho numa equipe para treinar, para começar.

Como é que você vê essa questão da política ligada ao futebol de hoje? Essa corrupção, essas acusações?
Acho que se a política vem para ajudar a desvendar tudo que é corrupto, que é mal para o futebol, é importante. Hoje nós temos a condição de mostrar isso. O garoto às vezes tem 17 anos e a identidade fica com 14, com 12. Isso só prejudica. É uma mentira, porque às vezes você tem uma equipe de garotos de 15 anos, infantil, e você coloca uma equipe em que todos têm 17. Eles ganham, mas é tudo mentira. Eles estão se enganando a si próprios. Você pensa que tem uma grande equipe, e não tem. No nosso país, nós estamos nos enganando.

Na sua época havia esse problema da corrupção?
Na minha época a gente não sabia de nada. Hoje eu acho que existe e as pessoas estão mostrando. Isso é importante. É importante que a televisão venha, mostre, e que diminua esse tipo de coisa.

Como era o jogador de futebol para a sociedade na sua época, ainda um tempo romântico, início do profissionalismo?
Me parece que no passado, antes da Copa de 58, era mais complicado. Eu não tive muitos problemas. Não é como hoje, mas as pessoas já aceitavam o futebol como uma profissão digna. A partir de 50, com a Copa no Brasil, a transformação começou. No meu tempo as pessoas já viam o futebol como uma coisa bonita, romântica.

Hoje, depois de 23 anos parado, o senhor ainda tem amizade com os colegas de campo com os quais jogou?
Tem uma equipe de masters. De vez em quando a gente joga. O Eurico, o Luís Pereira, o Alfredo, o Dudu, o César, o Leivinha. Um monte de gente. Cada um tem sua vida, alguns foram para outras cidades, mas a gente sempre se encontra quando tem jogo.

O senhor nunca pensou em ser técnico?
Eu trabalhei muito com escola de futebol, mas nunca fui técnico profissional. Pode até ser que futuramente aconteça. Precisa ter tempo, se dedicar.

E o amor à camisa? Mudou de seu tempo para cá?
O amor à camisa vai surgindo com o tempo. O clube vai te tratando bem, te dando carinho. Você vai tendo amor pelo clube. Se só fica um ano aqui e vai embora, não tem tempo de ter esse amor. Mas beijar o distintivo é um gesto que o jogador pode fazer. É um gesto de carinho. Depois ele pode sair e beijar outra camisa. E não é hipocrisia.

O senhor jogaria, por exemplo, no Corinthians?
Hoje os jogadores mudam de clube normalmente. Na minha época, os jogadores do Palmeiras não iam para o Corinthians, e vice-versa. Tanto que o Baldoque, que foi o primeiro jogador que saiu do Palmeiras para o Corinthians, teve problemas. Não queriam deixar ele jogar porque ele tinha saído do Palmeiras. Hoje, o Muller, por exemplo, jogou nos quatro grandes de São Paulo e não tem problemas.

Por que o senhor teve tão poucas participações na seleção?
Naquela época o futebol do Rio de Janeiro predominava. Os cariocas mandavam no futebol. Os técnicos eram do Rio. E no Brasil havia grandes jogadores da posição. Depende muito do técnico, que escolhe os jogadores que ele prefere.

O senhor tem mágoa disso? Da Copa de 74, por exemplo, em que só entrou para disputar o bronze?
Não tenho mágoa. Acho que, para minha carreira, foi importante ter ido com a seleção para um campeonato mundial. Foi uma pena que eu não joguei. Se tivesse jogado seria muito melhor. Mas a gente tem que ser bem realista no futebol. Eu batalhei muito para ir a uma Copa, e consegui em 74, quando já estava com 32 anos.

Dizem que o senhor não foi mais presente na seleção pelo seu temperamento calmo...
A seleção envolve tudo isso. Se você for diferente, é até melhor. Cada um é de sua maneira, eu era assim. Talvez se eu tivesse brigado mais, ido para o jornal, gritado, falado, fosse diferente. É difícil mudar.

E como era a imprensa da sua época?
A imprensa não mudou muito. Quanto às críticas, você tem que procurar que sejam sempre construtivas. Se ela mostra um defeito seu, você pode melhorar. Tem que saber tirar proveito. É como no campo, quando você está jogando bem, o público aplaude, grita seu nome. Se um dia você joga mal e eles vaiam, você tem que aceitar e procurar jogar melhor para no próximo jogo eles voltarem a aplaudir.

O senhor tem saudade do Palestra Itália?
Dá saudade, mas já passou a minha época. Agora eu tenho a expectativa do meu filho. Eu estou querendo que ele vá jogar. Eu já estou fora, quero ver daqui. Tem sempre alguém esperando uma chance. O que eu tinha que conseguir, as alegrias, um monte de coisa, já passou. Que foi uma época muito boa, foi. Que tenho saudades, tenho. Mas passou.

Quais são suas grandes alegrias e mágoas em relação ao futebol?
Ter participado de uma Copa do Mundo, ter conseguido ganhar do Corinthians numa final, ter sido campeão paulista pela primeira vez, em 73, ganhando num jogo contra o Santos, no Pacaembu, em que fiz o gol. Foi um monte de alegrias que só o futebol possibilita. Mágoa eu não tenho. Às vezes perder um jogo deixa a gente triste, mas é uma coisa com que a gente tem que se acostumar. O futebol é isso. São vitórias, são empates, são derrotas.