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Humor digital
Há algum tempo a TV veiculava uma propaganda de computadores que aludia à revolução causada pela tecnologia - mais especificamente pela informática -, mostrando bárbaros assustadores, montados em truculentos cavalos, laçando pessoas na rua com fios de computador. À medida que a cidade era "tomada", vitrines e carros eram destruídos por monitores arremessados como fundas certeiras. A louca imaginação dos publicitários comparou as mudanças promovidas pelo avanço tecnológico à queda de impérios que davam lugar a novos, mais fortes, porém nem sempre mais sofisticados. De fato, hoje, o mundo todo se vê irreversivelmente tomado pela nova ordem: a máquina. Desnecessário dizer que o computador está em todos os lugares. Nas casas, nas escolas, nos escritórios, nos estúdios de música, nos ateliês de arte e, fortemente, nas redações de jornal, acelerando vertiginosamente o trâmite de informações e imagens. Os relatos sobre atentados terroristas no Oriente Médio nos chegam quase em tempo real, o último ensaio fotográfico de uma famosa modelo pode ser acessado pela internet antes mesmo de ser publicado e a música inédita de um cantor famoso circula pelos PCs do mundo antes de o disco chegar às lojas. Embora tal "invasão" encontre resistência, até os "rebeldes" concordam que não há como negar o fato.
A era digital chegou. Esse novo contexto se mostra paradoxal quando, ao mesmo tempo que exclui - por questões econômicas e culturais -, também atinge a todos. Inclusive aqueles velhos repórteres que, por meio de seus desenhos, charges e cartuns, narram a evolução do mundo muitas vezes sem sequer usar palavras. Os artistas gráficos - desenhistas, quadrinistas e ilustradores -, longe da proteção da aura da obra única - como é caso dos primos próximos, os artistas plásticos e pintores -, se viram soltos no mar da internet, tendo de se adaptar às novas técnicas de impressão, reprodução e mesmo produção. Com os novos programas de computador, que colocam um leque infinito de cores a partir de um clique, ou criam formas a partir de um simples comando, como fica o velho desenho à mão? E as intermináveis pesquisas em busca daquele tom de cor? E o traço que difere um chargista do outro não importando a distância do olhar? A utilização do computador versus as técnicas de desenho à mão é a discussão do dia. "O computador surge como uma nova possibilidade da imprensa", começa contando o quadrinista Gualberto Costa, o Gual. "Trata-se de uma possibilidade que esconde uma polêmica: ela é rica quando o artista toma posse do instrumento e cria um jeito pessoal de trabalhar com a máquina; porém, deixa de ser rica quando se torna um recurso muito fácil." Gual, também diretor do Memorial das Artes Gráficas do Brasil, foi um dos curadores do evento Humor & Tecnologia, que inclusive abrigou um debate sobre a "batalha" entre o mouse e o lápis (veja informações sobre o evento no Box) e acredita que este seja o momento ideal para discutir o tema. "Daqui a trinta anos, por exemplo, não haverá mais o que discutir", adianta. "Por enquanto a gente ainda tem representantes dos dois lados para argumentar. Ainda tem gente com consciência do que pode estar se perdendo com essa passagem. Daqui a pouco tudo fica assimilado, e o que se perdeu perdeu e acabou." Gual considera-se um "híbrido" - como ele mesmo se define - dentro desse processo. "Eu uso muito o computador. Gosto muito. Mas também sou diretor de um museu que tenta preservar a memória dos artistas gráficos e suas obras." Memória que, segundo ele, corre o sério risco de ficar de fora dos Winchesters tendo em vista o caráter virtual de desenhos feitos digitalmente e que não pressupõem mais um original, muito menos um rascunho.
Originais perdidos
Gual teme que, além da extinção completa de originais que testemunhem um flagrante do momento para gerações futuras, o advento da informática gere uma banalização da arte ou mesmo uma substituição, no mercado, dos nomes já consagrados nas artes gráficas por uma nova leva de profissionais que se aventuram nos computadores sem nenhum compromisso com uma formação artística. O que sacrificaria a qualidade dos trabalhos. "Podem-se queimar muitas etapas importantes", alerta. "O Paulo Caruso, por exemplo, é um artista que vem desde a adolescência trabalhando seu traço e sua arte. E o computador é um meio que passa por cima disso. Aquele degradê de cores que o desenhista tem de fazer com uma aquarela misturando um monte de tintas pode ser feito no computador em alguns segundos, e por qualquer garoto de 16 anos que não entenda nada de desenho." Tendo-se estabelecido o debate, os prós e contras surgem da boca dos próprios atingidos. "Eu tento extrapolar os preconceitos que existem de ambas as partes para conseguir entender o que está se passando", conta o próprio Caruso, notório defensor dos originais e que só se depara com o computador no momento em que vê seus trabalhos escaneados para serem colocados nas páginas dos jornais e revistas para os quais trabalha. "Eu presenciei uma situação maravilhosa a favor da tecnologia. Eu vi o Ziraldo sentado em frente a uma tela de computador vendo a imagem de um desenho que ele fez na parede do Canecão (casa de shows do Rio de Janeiro). Era um desenho que ele fez sem esboço e que o dono do Canecão cobriu com um tapume. Nós estamos recriando esse desenho por meio do computador. Um trabalho de 32 metros de largura por seis de altura que foi dividido em quatro cromos e que a gente juntou na máquina, tentando recuperar sua qualidade gráfica, para depois reproduzir novamente no tamanho original. Nesse processo perdeu-se muita coisa, uma delas foi a imagem de são Jorge brindando um chope com o dragão dentro da Lua. Para recriá-la, o Ziraldo colocou papel manteiga em frente da tela do Macintosh e riscou em cima para depois a incluir no todo do desenho. Trata-se de um verdadeiro processo de arqueologia digital de uma obra que a humanidade não foi capaz de preservar, mas a tecnologia é capaz de recuperar", comenta. Porém, Caruso não está no time dos seduzidos. E alerta: "Por outro lado, eu, como desenhista com 35 anos de profissão, vejo que, de repente, nasce uma nova casta de artistas e de editores que dominam essa linguagem e vão, sim, fazer seu segregacionismo e vão achar que a modernidade é optar por uma coisa em detrimento da outra. Ou seja, só é bom quem está nesse meio". Novaes engrossa o coro dos ressabiados lembrando da vez que teve um trabalho recusado por uma editora somente porque não desenhava com o computador. "O computador em si não exclui, mas ele é o meio. Acho que ele facilita muito o trabalho e acaba nivelando por baixo."
Apenas mais uma técnica
Do outro lado do ringue - como brincou Gual na abertura do debate sobre o assunto no Sesc Pinheiros - estão aqueles que vêem com muita naturalidade o computador como apenas mais um instrumento a favor da criatividade e do talento de qualquer um que queira produzir algo de qualidade em artes gráficas. Antigos ou novos. Entre eles, destacam-se os ilustradores Kipper e Carvall, e o ex-desenhista e atual editor Tony. Coincidência ou não, todos jovens. "Essa discussão para mim é completamente nonsense", dispara Kipper. "O grande problema é um sujeito se apoiar na tecnologia para tentar resolver uma questão que é, na verdade, conceitual. E isso sempre houve. Antes nós já tínhamos, por exemplo, cópias baratas feitas à mão. Não se trata de um problema da tecnologia, mas sim de falta de conceito e cultura do mercado." Tony completa: "Se editores de arte não têm discernimento para diferenciar um bom trabalho feito no computador de um ruim, ou não sabem quando um trabalho feito à mão ficou melhor do que um feito digitalmente, os picaretas ficarão no mercado. Mas esse não é um problema do computador. Eu mesmo, quando trabalhava na Folha de S.Paulo, desenhava à mão no começo e já tinha uma porção de caras ruins também desenhando a lápis do meu lado". O ilustrador Carvall pondera que uma técnica não exclui necessariamente a outra. Para ele pode haver um convívio pacífico. Assim como o que há entre cinema, televisão e teatro. "O cartum é muito mais do que só a confecção. Eu desenho apenas no computador e não vejo problemas na relação entre as duas coisas." "O computador será mais uma técnica", retoma Kipper. "Não se pode esperar que a obra feita digitalmente se pareça com a feita a guache, da mesma forma que não se pode esperar que um trabalho feito a nanquim se pareça com um feito com tinta acrílica. São técnicas e materiais diferentes", conclui.
Lápis e mouse Encontro no Sesc Pinheiros discute as novas técnicas De 6 a 24 de agosto, o Sesc Pinheiros promoveu o evento Humor & Tecnologia, que tratou da produção de cartuns, charges e ilustrações no mundo contemporâneo. Composto de exposição de trabalhos de cartunistas famosos, entre eles Paulo Caruso, Kipper e Jayme Leão; de debates, workshops e também de apresentações de música e de dança, o evento atualizou as opiniões sobre quanto a tecnologia influencia o trabalho de artistas já consagrados e de novos talentos, além de debater como a imprensa e o público enxergam a secular arte de reportar a realidade por meio do traço. Arte, inclusive, da qual o brasileiro Manuel de Araújo, de Porto Alegre, foi o pioneiro ao publicar uma charge em 1837. "Isso que o Sesc proporcionou é muito interessante porque a gente precisa discutir mais esses temas", opina Gualberto Costa, o Gual, quadrinista, diretor do Memorial das Artes Gráficas do Brasil e um dos curadores do evento junto com José Alberto Levetro, o Jal, e Daniela Rangel. "Só se chega a conclusões se a coisa for bem discutida, e por pessoas de peso, como aconteceu nesse evento". O Humor & Tecnologia contou também com as presenças dos ilustradores Gepp e Maia (Jornal da Tarde) e Novaes (Gazeta Mercantil). |